O governo de Jair Bolsonaro (PSL) rompe com o princípio do Estado laico brasileiro, ou seja, a neutralidade em assuntos religiosos. Durante a campanha, o capitão reformado aliou-se às maiores lideranças evangélicas do país. No primeiro discurso como presidente, em sessão solene no Senado, nesta terça-feira (1º), prometeu valorizar "a nossa tradição judaico-cristã”.
Bolsonaro conta com os evangélicos para aumentar a musculatura da sua base de apoio, pois a expectativa da população sobre um possível governo positivo dele é a pior desde a redemocratização -- segundo levantamento do Instituto Datafolha. Mas as negociações e jogos de poder para contentar os aliados colocam sob suspeita as futuras medidas do novo governo de extrema direita.
Para agradar parte do eleitorado, o presidente eleito e sua equipe têm feito concessões e moldado a agenda política do país conforme princípios religiosos. Por outro lado, sinais de insatisfação e recados "velados" são cada vez mais comuns entre os líderes evangélicos que impulsionaram a campanha do candidato de extrema direita.
O pastor Silas Malafaia, que criticou o ex-candidato a presidente Fernando Haddad (PT) e atacou sua vice Manuela d'Ávila (PCdoB) durante toda a corrida presidencial, por exemplo, não compareceu à posse. O convite só chegou no sábado (29), a quatro dias da cerimônia.
Segundo a página oficial do religioso, hoje é o aniversário da filha dele. Ao jornal O Globo, Malafaia disse que seria "muita mão de obra" ir à posse, mas mandou felicitações por WhatsApp.
Outro aliado evangélico da campanha que não estará na posse é o senador Magno Malta, que esperava ser convidado para ser ministro no novo governo. No primeiro pronunciamento, logo após o resultado das eleições, Malta estava ao lado do candidato eleito e fez até uma oração. Já na posse, e sem cargo no primeiro escalão, o senador está em Jerusalém, a 10.200 km de Brasília.
Sob pressão por vaidade ou por disputa de poder, Bolsonaro que já se declarou católico, tenta sustentar as suas alianças políticas na sombra do slogan de campanha "Brasil acima de Tudo. Deus acima de Todos", mas sem saber qual será o rumo desse exercício de equilíbrio e concessões.
Decoração
Há duas semanas da cerimônia de posse presidencial de Jair Bolsonaro, a imprensa brasileira veiculou a notícia de que obras sacras seriam retiradas do Palácio da Alvorada, local onde o presidente eleito irá morar com sua família.
A informação foi publicada primeiramente pela Folha de S. Paulo. Segundo o veículo, a recém empossada primeira-dama, Michelle Bolsonaro, de religião evangélica, demonstrou desejo de retirar peças da simbologia católica da residência oficial.
Um par de anjos barrocos, quatro estátuas de santos e uma representação em madeira de Santa Bárbara, do século 18, fazem parte do mobiliário. A reportagem também relata que a pintura “Orixás”, de Djanira Motta, que representa divindades do candomblé, também está exposta na residência oficial. Durante a ditadura militar, Ernesto Geisel, de religião luterana, solicitou que a obra fosse retirada e a peça só voltou a ser exibida anos depois, a pedido da ex-primeira dama Ruth Cardoso, então cônjuge do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Bolsonaro, no entanto, se pronunciou publicamente e negou que as obras sacras seriam retiradas do Palácio. Apesar de ter sido batizado em 2016 pelo ministro evangélico Pastor Everaldo (PSC), nas águas do Rio Jordão, no nordeste de Israel, o presidente eleito alega ser católico e afirma que sua esposa não vê problemas em objetos da sua religião na residência do casal.
Para Jorge Cláudio Ribeiro, professor titular de Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), representantes do Estado não podem impor suas convicções ou regras em espaços públicos.
“Ela [Michelle Bolsonaro] tem direito de querer, mas não pode, dentro de um aparelho do Estado, de uma instalação pertencente ao povo brasileiro, impor seu ponto de vista e retirar coisas que são reconhecidamente obras de artes. Mesmo que tenham características religiosas, elas são, sobretudo, arte”, afirma Ribeiro. “[O Palácio da Alvorada] É uma instalação que pertence a todo povo brasileiro, assim como tudo o que existe dentro dela”.
Já o pastor Ariovaldo Ramos, evangélico assim como a primeira-dama, acredita que não deve haver nenhum objeto permanente no mobiliário da residência presidencial relacionado à qualquer religião.
Todos os logradouros públicos, todos os edifícios públicos, tem de ser absolutamente isentos de qualquer alusão religiosa, de qualquer natureza que seja. Se forem obras de arte, devem ir pro museu, porque o Estado é laico”, defende Ariovaldo, da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, com o argumento de que nenhuma religião deve ser privilegiada.
Busca pelo poder
Com o último pleito eleitoral, polarizado e com forte presença dos evangélicos em campanha pró Bolsonaro, o crescimento dos adeptos à religião nas instituições de poder do país esteve no centro das análises políticas.
Segundo levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), feito com base nos dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a bancada evangélica terá 91 congressistas em 2019.
Antes mesmos das eleições, a Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional lançou o chamado “Manifesto à Nação: O Brasil para os brasileiros”. Com 180 signatários, o documento propôs uma agenda de governo conservadora e neoliberal. Algumas indicações já foram adotadas pelo presidente eleito.
“Quando os evangélicos tomaram essa posição, de tentar impor uma pauta moral e com isso apoiar um candidato que se diz defensor dessa mesma pauta, de alguma maneira deixou claro, ainda por entrelinhas, que estaria à disposição dessa religião, isso é um equívoco. É um equívoco histórico. Um ataque à democracia. Uma quebra da Constituição. Nossa Constituição é laica”, reforça Ariovaldo.
Na opinião do religioso, o intenso alinhamento do governo Bolsonaro com os evangélicos representa a tentativa de uma hegemonização religiosa no país, a partir do momento que os valores conservadores se fundem com o fazer político.
“É lamentável que grupos que se dizem herdeiros do movimento evangélico estejam, de alguma maneira, tentando lançar mão do Estado para impor sua moral a toda nação, ou para garantir benefícios ou privilégios de qualquer natureza. Isso é um equívoco e vai custar muito caro ao movimento evangélico“, ressalta o pastor. Ele complementa que, ao contrário do que alguns setores evangélicos pró Bolsonaro aparentam, não há um apoio unânime ao novo governo.
“O Estado detém a representação do poder, da democracia ou do poder estabelecido por qualquer outro meio. Quem assume o controle do Estado tem acesso, e a prerrogativa, do uso desse poder, e isso não pode ser dado a uma religião, porque isso seria um ataque ao direito humano, à liberdade de culto. A religião não pode ser uma imposição, tem que ser uma escolha voluntária e pacífica de qualquer ser humano”, continua.
Laico e confessional
A Constituição Federal Brasileira faz menção a Deus em seu preâmbulo, mas não determina uma religião oficial, o que configura o país como um Estado laico. Outros territórios como Afeganistão, Arábia Saudita, Argélia e Iraque, por exemplo, possuem o islamismo como religião oficial e são considerados Estados confessionais. O mesmo acontece com outras religiões: No Reino Unido, por exemplo, a religião oficial é o cristianismo anglicano. Na Grécia, o cristianismo ortodoxo. Já em Israel, a religião oficial é o judaísmo.
“Estado laico não é um Estado ateu, mas é um Estado que ao não professar uma determinada religião ou adotar os princípios da mesma, preserva o espaço para todas as religiões e para quem não é religioso. O Estado Laico, portanto, assegura a todos os cidadãos e cidadãs, a oportunidade de uma convivência pacífica a partir do respeito pela diversidade”, explica Lusmarina Campos Garcia, teóloga e integrante da Igreja Episcopal Anglicana.
A também integrante do Instituto de Estudos da Religião (ISER), reforça que a imposição de valores religiosos à sociedade brasileira coloca em risco o princípio da laicidade prevista na Constituição. Ela critica enfaticamente os posicionamentos sinalizados pelo novo governo e afirma que a agenda moral defendida por Bolsonaro representa o esvaziamento do processo democrático e a negação de noções caras à democracia e ao cristianismo progressista, tais como: pluralidade, tolerância, justiça social, direitos humanos e justiça de gênero.
“O governo eleito tem a intenção de fazer avançar um projeto teocrático cristão de sociedade cuja matriz ideológica e teológica se define a partir do capital e do mercado. Não é à toa que as igrejas de apoio ao candidato eleito são, majoritariamente, as igrejas de mercado. A tentativa de impor um Estado religioso cristão definido por uma visão de mundo capitalista e de uma humanidade branca, hetero, proprietária, cristã e masculina, não condiz com o Evangelho, nem com as práticas teológicas, eclesiásticas e pastorais”, diz a pastora anglicana.
Jorge Cláudio Ribeiro detalha que, na experiência ocidental, a predominância de um grupo religioso resultou na imposição sobre outros grupos, o que gerou guerras religiosas porque cada religião buscava se impor por meio de armas.
O professor de Ciência da Religião comenta que tais guerras religiosas cessaram no século 17 devido ao acordo Paz de Augsburgo, que autorizou a presença de luteranos no Sacro Império Romano-Germânico. O momento histórico consagrou o princípio de que cada rei poderia ter sua religião e findou conflitos entre os católicos romanos e protestantes luteranos. Segundo ele, o princípio da laicidade se fortaleceu durante a Revolução Francesa (1789-1799), e, conforme as sociedades amadureceram e o princípio republicano se afirmou, o Estado Laico também se consolidou.
Ribeiro concorda com a avaliação de que na sociedade brasileira atual, a intolerância faz com que a laicidade esteja em risco. “Voltamos 300, 400 anos atrás. Voltou o clima de guerra religiosa e é isso que não se quer. Todas as religiões deveriam ter direito de praticar seus rituais, suas crenças, em boa convivência, em paz umas com as outras. E não promover a tomada do poder para que possa favorecer a pessoa de determinado grupo religioso”, critica o especialista.
Na avaliação de Ribeiro, é preciso deixar claro que a “boa religião” respeita a todos e contribui para uma a política de acordo com critérios de uma ética comum, de uma moral civil que atenda aos direitos de todos os cidadãos. Para ele, Nelson Mandela, Martin Luther King e Gandhi são exemplos de figuras históricas no que tange à relação entre política e religião.
Edição: Mauro Ramos