Justiça

Proposta de Moro é vista como "bomba-relógio" para o sistema carcerário; entenda

Ex-juiz e ministro da Justiça e Segurança Pública quer importar modelo estadunidense de acordo entre acusação e réus

Brasil de Fato | São Paulo |

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Moro comanda o ministério da Justiça e Segurança Pública do governo Jair Bolsonaro (PSL)
Moro comanda o ministério da Justiça e Segurança Pública do governo Jair Bolsonaro (PSL) - Marcelo Camargo/Agência Brasil

Durante o discurso de posse como ministro da Justiça e Segurança Pública, na última semana, o ex-juiz de primeira instância Sérgio Moro apresentou propostas polêmicas, que motivaram críticas por parte de especialistas em sistema penitenciário e Direito Penal. Uma delas é o chamado plea bargain, um modelo que prevê acordos a portas fechadas entre o Ministério Público e o acusado. A ideia é que o réu seja convencido a confessar o crime, em troca de benefícios, para que o processo não se arraste. 

Ao fechar o acordo, no modelo plea bargain, o acusado abre mão do direito de não se autoincriminar e aceita que não será julgado por um júri imparcial. Como há disparidade de forças entre as duas partes, há casos em que o acusado se sente pressionado a aceitar o acordo mesmo sem ser culpado.

Nos Estados Unidos, a aplicação desse modelo levou ao aprofundamento dos problemas do sistema carcerário -- o maior do mundo, composto basicamente por negros e pobres. 

Para entender as possíveis implicações jurídicas e sociais da importação do plea bargain, a reportagem do Brasil de Fato apresenta abaixo a interpretação de diferentes juristas sobre o tema.

Histórico

Antes de integrar o governo Jair Bolsonaro (PSL), Moro atuou como magistrado em Curitiba (PR), durante a operação Lava Jato, de 2014 a 2018. Naquele período, a delação premiada tornou-se um método preferencial de investigação e foi alvo de questionamentos, porque ameaça o direito de defesa dos cidadãos brasileiros.

plea bargain é considerado ainda mais grave. A legislação brasileira que trata das chamadas "colaborações premiadas" obriga que os processos sejam levados adiante mesmo nos casos em que haja confissão do acusado. No modelo estadunidense, não. É o que explica Clarissa Nunes, advogada criminalista e integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

“Na delação premiada, o processo é garantido. Existe a inscrição de testemunhas, produção de provas, e o réu que faz a delação premiada tem que provar que sua delação tem base e tem provas”, analisa, apesar dos problemas decorrentes do uso irrestrito de delações na Lava Jato. 

Nunes afirma que os resultados do plea bargain nos Estados Unidos desmontam a tese de que ele seria um instrumento eficaz de combate à criminalidade. Além disso, caso seja aplicado no Brasil, esse modelo seria uma espécie de "bomba-relógio" e poderia agravar o problema da superpopulação carcerária do país. 

“Os Estados Unidos têm, hoje em dia, 2,3 milhões de pessoas presas, sem que fossem reduzidos os índices de violência. Existem estudos recentes de 2017 que demonstram que a taxa de homicídios nos Estados Unidos, por exemplo, é seis vezes maior do que nos países desenvolvidos. E justamente esses países aplicam muito mais penas alternativas, como a Holanda, que está fechando presídios ao mesmo tempo que tem uma redução da criminalidade muito grande”, compara Nunes. 

Outros olhares

Ao portal Conjur, o criminalista e doutorando em processo penal pela Universidade Humboldt de Berlim, Luis Henrique Machado, lamentou a proposta de Moro: "Os EUA possuem [...] a maior população carcerária do planeta, formada na sua grande maioria por negros e pobres. Nesse mesmo país, crianças cumprem prisão perpétua e a pena de morte ainda está em vigor em alguns estados da federação. Importante lembrar que aproximadamente 95% dos casos criminais são encerrados via plea bargain, onde há inúmeras queixas de condenados que acusam o órgão investigatório de coação para entabular o acordo. Estamos, infelizmente, importando o que há de pior dos EUA".

Para o advogado criminalista Aury Lopes Júnior, a ampliação do espaço de negociação é uma tendência mundial, maso modelo defendido por Moro representa uma completa ausência de jurisdição sobre as investigações. “Essa americanização a la carte é um grande erro, além de ser incompatível com nosso modelo civil law e com os poderes do nosso Ministério Público. Isso representa ausência de jurisdição”, pondera.

O juiz Luis Carlos Valois é contra a proposta e denuncia que ela afasta ainda mais o Judiciário dos problemas reais do povo. “Porque o Judiciário não se populariza, não se democratiza? Porque ele tem privilégios, tem um salário que não dá pra pagar para muitos juízes, então ele aceita a redução da sua própria atividade para fazer de conta que está atuando em nome da justiça. O plea bargain não é justiça. O plea bargain é um subterfúgio administrativo de uma atividade que deveria ser judicial. Isso é um absurdo”.

Outro perigo da proposta apontado por Nunes é a ampliação do poder do Ministério Público, em contradição com o próprio objetivo da instituição. 

“Seria aumentar em muito o poder do Ministério Público, que, com certeza, é um órgão muito importante para a Justiça, mas também é um órgão de fiscalização da justiça. Ele não tem só o dever de acusar. Através de um acordo no qual se pressupõe a igualdade entre a acusação e o réu, e essa igualdade normalmente não é o que a gente vê, sem a homologação de um juiz, acaba gerando mais desigualdade ainda”, finaliza.

Mais poder

O Ministério da Justiça e Segurança Pública, sob comando do juiz Moro, ganhou uma nova estrutura, incluindo áreas que antes estavam sob a guarda de outros ministérios. A partir de 2019, fazem parte da pasta a Polícia Federal (PF), a Polícia Rodoviária Federal (PRF), o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), os conselhos nacionais de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual, de Política sobre Drogas, de Política Criminal e Penitenciária, de Segurança Pública, de Imigração, de Arquivos, além do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e do Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos.

Edição: Daniel Giovanaz