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POLÍCIA

"Em 2018, polícias do Rio mataram mais do que na Guerra das Malvinas", diz delegado

Segundo o delegado da Polícia Civil, Orlando Zaccone, ações da polícia geraram um saldo de 1.520 mortos

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |

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Para Zaccone, a mudança do modelo da polícia passa pela identificação do policial como trabalhador, não mais como herói ou bandido
Para Zaccone, a mudança do modelo da polícia passa pela identificação do policial como trabalhador, não mais como herói ou bandido - Fernando Frazão / Agência Brasil

As operações recentes da Polícia Militar (PM) no estado do Rio de Janeiro tiveram como resultado 42 mortos em 10 dias. A incursão que ocorreu no último dia 8 de fevereiro, no Morro dos Prazeres, Coroa e Fallet-Fogueteiro, na região central da cidade, não foi a única com vítimas fatais. Dois dias antes, uma outra ação do 24º Batalhão de Polícia Militar em Queimados, na Baixada Fluminense, registrou cinco óbitos nos Morros da Caixa D’Água e São Simão.

A PM afirma ter apreendido drogas e quatro pistolas com os suspeitos. O Brasil de Fato conversou com o delegado da Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro e doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Orlando Zaccone. Em sua tese, o delegado estudou o arquivamento dos autos de resistência. Zaccone também critica a tolerância com a violência advinda da ação policial e acredita que a desmilitarização é o caminho. Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Gostaria que o senhor comentasse, de maneira geral, quais os desafios da segurança pública no estado do Rio de Janeiro.

Orlando Zaccone: O Rio de Janeiro não é uma ilha separada do restante do país no que diz respeito à forma que a segurança pública tem operado. E essa forma muitas vezes vem com um uso desmedido da força. No ano passado, nós quebramos todos os recordes com as polícias do Rio produzindo mais de 1.520 mortos. O recorde anterior tinha sido no primeiro ano do governo Cabral em 2007 com 1.230 pessoas mortas por ações policiais. Isso significa que nós temos um resultado mais danoso do que a última guerra que tivemos no continente, ou seja, a Guerra das Malvinas que teve um saldo de 980 pessoas mortas. Uma guerra com lança míssil, com a Inglaterra, com a Marinha inglesa não produziu a quantidade de mortos que nós produzimos somente no estado do Rio de Janeiro.

A ação nas operações militares, especificamente a intervenção federal no Rio de Janeiro, teve um alto número de mortes e uma pífia apreensão de armas.

Ainda que tivessem apreendido muitas armas não justificaria essa imensa quantidade de cadáveres que são produzidas diariamente a partir de ações policiais. Eu no doutorado, no departamento de Ciência Política, pude estudar o arquivamento dos autos de resistência. O auto de resistência é um termo que foi criado ainda na ditadura que foi usado durante muito tempo e agora mudaram o nome do procedimento que passou a se chamar homicídio decorrente de intervenção policial, e no Rio de Janeiro é homicídio decorrente de ação legal.

Ou seja, é a legalização do homicídio. É isso?

Sim. Foi esse o meu tema no doutorado, porque a questão é compreender como esses números de produção de mortes maiores que uma guerra conseguem ser contemplados dentro da existência de um estado de direito. Eu fui observar o arquivamento das investigações que são instauradas para apurar a legitimidade da ação policial ao produzir uma morte. Quem pede o arquivamento do inquérito não é o delegado, quem pede são os promotores de justiça. Quando os promotores de justiça do Ministério Público, que faz o controle da atividade policial, são questionados sobre essa letalidade, eles, muitas vezes, costumam dizer que não chegam à responsabilidade dessas mortes, desses autos de resistência por conta do inquérito ser mal feito pela polícia. Só que quando eu fui ver os pedidos de arquivamento, eu cheguei à outra conclusão. Os inquéritos são muito bem feitos porque os promotores se utilizam dos elementos produzidos no documento para pedir o arquivamento. E quais são esses elementos? Não são elementos que definem a conduta policial, ou seja, pouco se fala nesses inquéritos como a polícia agiu. O que se fala muito nesses inquéritos é sobre quem morreu. Eles colocam assim, “ o fato se deu em comunidades faveladas onde constantemente têm trocas de tiro entre polícia e bandidos”. Então, o local passa ser um elemento legitimador da ação. Outro elemento legitimador é o antecedente criminal, coisa que a imprensa repete. Isso é um absurdo, porque não podemos legitimar a ação policial pela condição do morto ou pela condição de vida do morto. 

É a legitimação da pena de morte sem julgamento?

Sim, é uma pena de morte sem julgamento mas ela não está fora da lei, esse é que é o problema. Porque quando você tem uma forma jurídica onde um Estado reconhece que houve uma legítima defesa, mesmo o corpo da vítima com 10 tiros nas costas, tiro à queima roupa, essa violência não é fora do Estado de direito, ela está dentro do Estado de direito. Ou seja, nós hoje contemplamos essa violência, que eu não chamo mais de violência policial, porque ela contempla outras agências que não são a polícia, como o Ministério Público, o Poder Judiciário e a mídia que quando descreve ações letais da polícia com pessoas com passagem pelo tráfico legitima aquela ação, como se a polícia tivesse agido dentro da lei. Ou seja, nós temos uma autorização na sociedade, no Estado brasileiro, para o extermínio de determinadas categorias, principalmente, no caso do Rio de Janeiro, pessoas identificadas como traficantes de drogas. Eu acho que isso é temeroso porque revela a criação de um Estado de direito com um viés assassino, porque define pessoas que podem ser aniquiladas.

Só que, importante dizer, isso não começou agora com a eleição do Bolsonaro. Os números podem estar aumentando, mas eles já eram absurdos mesmos nos governos anteriores. O que significa que nós temos uma leitura, que acho importante ser feita, de que isso é um reflexo do modelo que nós estamos enfrentando no planeta, do atual modelo capitalista, do atual modelo econômico, onde nesse exato momento a forma de controle social que está sendo colocada no planeta todo em relação às periferias e ao local dos pobres é essa forma violenta. 

Esse modelo não está bom para ninguém. Qual seria o caminho?

A crítica ao modelo da segurança muitas vezes é vista como crítica aos policiais e os policiais muitas vezes se identificam na crítica e não conseguem enxergar porque são trabalhadores alienados nessa perspectiva de modelo de segurança militarizada, que joga o policial nessa guerra para matar ou para morrer, é um modelo contra seus próprios interesses, contra o próprio trabalhador. Mas por que que isso não é visto? Primeiro, porque esse modelo militarizado não constrói o policial como trabalhador, constrói primeiro dois estereótipos: o do policial bandido é um modelo que vai dizer que a polícia é corrupta e isso esteve nos discursos do campo da esquerda. E a direita construiu outro estereótipo que conseguiu ganhar os policias, mas é um estereótipo muito pior que o do policial corrupto, que é o do policial herói, aquele que tem que dar a vida, aquele que dá todo o sacrifício por uma causa que ele nem sabe qual é, independente de salário, de condições de trabalho.

Só que o policial não é nem herói, nem bandido. É necessário que a gente construa uma polícia para além desses estereótipos. Como é que vamos fazer isso? Primeiro a gente vai ter que desmilitarizar. A PM hoje é a maior força policial no país, as polícias civis são muito importantes na investigação, mas o grande quantitativo de policiais são policiais militares que são construídos não como trabalhadores, e sim como soldados sendo submetidos a uma disciplina e um estatuto militar que os proíbe de fazer greve, de ter sindicato, ou seja, todo o modelo é construído para que esse policial se aliene da sua condição de trabalhador. Então a luta pela desmilitarização da polícia é antes de mais nada uma luta pela construção do policial como trabalhador. Nós temos que debater isso de uma forma séria. O Movimento Policiais Antifascismo pretende exatamente isso: construir esse policial para que ele possa se identificar na luta dos demais trabalhadores e que possa ser reconhecido pelos demais trabalhadores como irmão trabalhador.

*Entrevista feita durante o Programa Brasil de Fato Rio de Janeiro no dia 12 de fevereiro de 2019.

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Edição: Jaqueline Deister