Entrevista

Padre Júlio Lancelotti vê crise ética no Brasil: "Insensibilidade com a dor do outro"

Defensor dos direitos humanos, religioso convive com a população em situação de rua em São Paulo há 35 anos

Brasil de Fato | São Paulo |
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O padre Júlio Renato Lancelotti é um dos mais conhecidos defensores dos direitos humanos da cidade de São Paulo (SP). Pároco da Igreja São Miguel Arcanjo, na Mooca, zona leste da cidade, coordenador da Pastoral do Povo da Rua, há mais de três décadas o paulistano do bairro de Belém, hoje com 70 anos, trabalha junto à população em situação de rua na maior metrópole brasileira.

Esta semana, o Brasil de Fato publicou uma videorreportagem sobre as pessoas que habitam o Minhocão, como é conhecido o Elevado João Goulart, na região central de São Paulo. Reveja:

Lancelotti é formado em Pedagogia pela universidade Oswaldo Cruz, com mestrado na mesma área na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Ele é fundador da Casa I e da Casa II, ambos projetos de acolhimento de crianças com HIV. Em 2007, recebeu o Prêmio dos Direitos Humanos da Presidência da República.

Em março do ano passado, o padre foi vítima de ameaças de morte nas redes sociais por parte de moradores e comerciantes do bairro Mooca, que não aceitam a assistência oferecida à população desabrigada do bairro.

Em uma das mensagens, o agressor -- um advogado, segundo o padre -- disse “morte ao padreco”. Outro internauta concordou: “Tem que começar mandando esse padre pro inferno, e depois seus seguidores”, sendo saudado com aplausos virtuais.

O Brasil de Fato entrevistou o padre Júlio em busca de respostas que expliquem o aumento de pessoas em situação de rua em São Paulo e no Brasil, e também o questionou sobre quais seriam medidas eficazes que o poder público poderia tomar para ajudar estas pessoas. Confira os melhores momentos:

Como o senhor iniciou seu trabalho com a população em situação de rua? 

Eu não digo que tenho um trabalho com a população de rua: eu convivo com a população de rua. E essa é uma convivência longa, de mais de 35 anos, e sempre foi estando disponível, aberto para encontrar, conviver, ouvir, para junto com eles construir respostas e achar caminhos.

O senhor realiza um trabalho, muitas vezes entendido como raro dentro das instituições religiosas no Brasil de hoje, próximo à populações marginalizadas e perseguidas pelos governantes eleitos. Já pediu desculpa aos LGBT, tem uma militância de anos próxima à população de rua. Como você vê seu trabalho dentro do Brasil que temos hoje?

Muitas pessoas estão aliadas dos grupos descartados, desconsiderados, dos insignificantes. Hoje é uma luta de sobrevivência, nós estamos vivendo uma noite tenebrosa, um massacre. Estamos vivendo um desprezo muito grande aos grupos indígenas, ao grupo LGBT, aos quilombolas e a juventude negra. E é impressionante o que está aparecendo de ações contra a população de rua. 

Aqui em São Paulo é alarmante. [O pedido para que] os seguranças do shopping Higienópolis peguem os meninos de rua e entreguem para a Polícia Militar.

Se você pudesse resumir brevemente: qual é a situação da população de rua em São Paulo hoje? Como ela se transformou nos últimos anos? É possível dizer que o centro de São Paulo hoje é palco de uma crise humanitária?

Acredito que sim. Porque aumentou o número. O número de jovens é muito grande, também o número de idosos. Há uma negligência na questão da saúde e da moradia. Na questão do trabalho, há uma exploração. Em São Paulo são 20 a 25 mil, no Rio de Janeiro são 16 mil, no Brasil são mais de 100 mil.

O que motivou esse aumento?

A causa passa pela crise socioeconômica e política, pela crise econômica, pela crise ética, do individualismo, do fechamento, da insensibilidade para a dor do outro. Esse individualismo que vê o diferente como incômodo. Então, a população de rua é vista sempre como suspeita, como ameaça, como um grupo não atraente, com o qual não vale a pena viver ou estar perto.

O tratamento dado a eles pelo poder público é suficiente? Piorou nos últimos anos? Como você avalia as diferentes gestões?

A população de rua sempre foi descartável. Embora se coloque grandes valores nos orçamentos, eles acabam ficando nas estruturas, não chegam nas pessoas. Hoje há uma crise de desemprego, uma crise na habitação, e isso se agrava muito para a população de rua, mas o poder público sempre tem dificuldade de entender e ouvir essa população, e com ela conjugar respostas.

Quais seriam medidas mais eficazes? O que precisa ser feito emergencialmente?

Cessar a violência e a perseguição. Respostas ligadas à moradia -- principalmente no que chamamos de repúblicas ou aluguel social. E um atendimento que não seja massivo, em que as pessoas sejam levadas em conta na sua complexidade e no heterogêneo que é a população de rua. 
 

Edição: Pedro Ribeiro Nogueira