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Artigo | Onde passa um boi, passa uma boiada

Aprovação da Emenda Constitucional 95, em 2016, abriu as porteiras para as reformas desestruturantes do Estado social

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"Antes que a sociedade conseguisse perceber os danos, aprovou-se também a reforma da legislação trabalhista e a terceirização"
"Antes que a sociedade conseguisse perceber os danos, aprovou-se também a reforma da legislação trabalhista e a terceirização" - Foto: Guilherme Santos/Sul21

Essa expressão enquadra-se muito bem no que estamos vivendo ultimamente. Parece que vínhamos há muito tempo evitando que passasse o primeiro boi, até que se aprovou a Emenda Constitucional 95, em 2016, e, aí, abriram-se as porteiras para as reformas desestruturantes do Estado social.

A Constituição Federal de 1988 estabeleceu as bases para a construção de um Estado de Bem-estar, fundado na ideia da proteção social. Ali estava firmado um pacto social de solidariedade que seria balizador das políticas que deveriam ser implementadas para futuro. Era o nosso projeto de Nação. Além da proteção social, alicerçada sobre os pilares da saúde, assistência e previdência, todo um conjunto de direitos sociais foi estabelecido e precisava ser garantido pelo Estado e pela sociedade.

Diversas emendas foram feiras, a essência da Constituição permanecia intacta. Continuamos sendo um potencial Estado de Bem-estar, ainda que alguns defendam que voltemos a ser um Estado mínimo. É evidente que a trajetória para implementar o Estado de Bem-estar exige a manutenção do crescimento dos gastos em políticas públicas, o que pudemos observar no período de 1990 até 2015. Os gastos primários saíram de 12% do PIB, em 1990, e chegaram perto de 20% do PIB, em 2015, o que é absolutamente coerente com o que resolvemos ser em 1988. Os países que serviram de referência aos nossos constituintes, já estavam com seus gastos primários acima dos 30% do PIB, em 2015.

A Constituição determinava também a responsabilidade para o Estado de encontrar os meios para viabilizar os direitos. Na agenda das medidas necessárias estava a construção de um sistema tributário progressivo, o que, até hoje, no entanto, não conseguimos implementar. Aliás, a tributação tornou-se mais regressiva pelos efeitos da onda neoliberal que assolou o País, no final dos 80 e nos anos 90. Recém inaugurada a Constituição, em 1989, a alíquota máxima do Imposto de Renda das Pessoas Físicas foi reduzida de 45% para 25% e o número de alíquotas caiu de 7 para apenas 2. Em 1995, este imposto passou a não mais incidir sobre lucros e dividendos distribuídos, beneficiando as altas rendas. O crescimento dos gastos, portanto, teve que ser suportado principalmente pelas camadas de rendas médias e baixas, por meio de tributos incidentes sobre o consumo.

No final de 2016, aprovou-se, de forma surpreendentemente rápida, a Emenda Constitucional 95, estabelecendo uma abrupta interrupção no crescimento dos gastos primários para os próximos 20 anos. Em 2036, a expectativa é de que voltemos a ter gastos primários na casa dos 12% do PIB, como era em 1990. Abriu-se a porteira, ou seja, começava aí se romper os contornos do Estado social de 88. A inviabilização do crescimento dos gastos foi a primeira medida efetiva para começar a desfazer o programa estabelecido pela Constituição Federal. Antes que a sociedade conseguisse perceber os danos, aprovou-se também a reforma da legislação trabalhista e a terceirização das atividades fins.

Agora, avançam sobre a previdência pública. A proposta de reforma previdenciária retira a previdência social do rol dos direitos constitucionais, transformando-a num produto de aquisição individual e compulsória junto ao sistema financeiro. É isso que significa o sistema de capitalização defendido pelo Ministro da Economia, onde cada um passará a ser responsável por sua aposentadoria. O desmonte do Estado de Bem-estar vem como uma avalanche. A desregulamentação das relações trabalhistas, a precarização das fiscalizações, a promessa de privatização de todas as empresas públicas, a redução da estrutura do Estado, a eliminação de reservas ambientais, etc., etc., etc…. são todas medidas incompatíveis com a ideia de Estado de Bem-estar.

A continuar o processo de minimização do Estado, não haverá salvação para a saúde pública, para a assistência social e para a educação pública. Qualquer política social que signifique distribuição de renda está ameaçada. A previdência pública é o maior programa distributivo do país. Mais da metade da população é beneficiária direta ou indiretamente da previdência pública. Aliás, já estão sendo anunciadas medidas de desvinculação de receitas, antecipando, portanto, a clara intenção de reduzir recursos para as áreas sociais. Estudo do IPEA demonstra que as transferências de renda, via benefícios previdenciários e assistenciais, e os gastos com saúde e educação são os principais fatores de redução das desigualdades sociais [1].

O embate político no Brasil está cada vez mais evidente. A disputa pela riqueza socialmente produzida coloca de um lado os que querem reduzir o Estado a qualquer custo, privatizando tudo o que for possível, previdência, saúde, educação, empresas estatais, patrimônio imobiliário, etc., e, de outro lado, os que defendem o Estado de Bem-estar, ou seja, aqueles que creem que é preciso viabilizar as condições para ampliação dos direitos sociais.

Embora saibamos que este embate sempre tenha existido, agora ele se torna muito mais claro. Os próprios ministros do atual governo não escondem sua simpatia pelo Estado mínimo e anunciam suas pretensões de privatizar tudo inclusive setores essenciais do bem-estar como a saúde e a educação, por exemplo, totalmente na contramão do que deseja a sociedade. Em pesquisa realizada pela OXFAM Brasil e Datafolha [2], 75% da população apoiam a universalização do ensino público e 73% defendem a universalização da saúde pública. Ainda de acordo com esta pesquisa, 84% das pessoas entendem que é obrigação dos governos diminuir as desigualdades sociais. Não é Estado mínimo o que as pessoas querem.

Não se trata de problemas fiscais, como tentam nos convencer. Mas, antes que digam, é inegável que há um déficit fiscal a resolver. No entanto, a questão central por trás das reformas não é o déficit, mas sim, o modelo de Estado, ou, dizendo de outra forma, é o desejo de reduzir a parcela da riqueza administrada pelo Estado, que retorna às classes mais pobres. O déficit, para eles, é apenas a oportunidade. A enorme pressão exercida pelos denominados representantes do mercado, chegando explicitamente ao nível da chantagem, pela reforma da previdência, por exemplo, revela de forma muito clara os interesses que estão em jogo.

Mas, e a questão fiscal, como fica? Primeiro, é preciso ter em conta que grande parte dos problemas fiscais decorre da crise econômica. Desde o final da década de 1990 até 2014, a arrecadação sempre foi superior aos gastos primários, gerando superávit fiscal. A taxa de crescimento da arrecadação é superior a taxa de crescimento dos gastos. Somente a partir de 2014, é que passamos a contabilizar déficits primários. Nesse mesmo período o crescimento dos gastos manteve-se quase constante, com uma pequena redução a partir de 2014. Se a economia diminui, a arrecadação naturalmente diminui, e a preservação dos direitos implica aumento de endividamento, o que é absolutamente normal. As crises econômicas, no entanto, são passageiras. Em algum momento a economia voltará a crescer e com ela crescerá também a arrecadação dos tributos.

Por outro lado, a crise fiscal foi agravada pelo aumento de benefícios fiscais concedidos. Somente em relação às contribuições sociais e previdenciárias as desonerações cresceram mais de 60% em dois anos, saltando de R$ 97 bilhões, em 2013, para R$ 157 bilhões [3], em 2015. Da mesma forma, a falta de efetividade no enfrentamento dos alarmantes níveis de sonegação tributária e das dificuldades de cobrança dos créditos tributários lançados só faz agravar os problemas fiscais.

O discurso do déficit para justificar as reformas não passa de uma armadilha. É apenas um argumento a ser enfrentado, mas que não é determinante para aqueles que defendem a redução do Estado. Os reais motivos são outros. Até porque, no caso da previdência social, pelo cálculo que o governo faz, de comparar a arrecadação das contribuições previdenciárias com os pagamentos dos benefícios, esse resultado nunca seria superavitário. Pelo menos nos últimos 20 anos a arrecadação sempre foi inferior ao valor dos benefícios pagos. Aliás, considerando apenas as receitas referentes à folha de pagamento, quase nenhum sistema previdenciário no mundo seria superavitário. Justamente por isso, é que as fontes de financiamento da seguridade devem envolver vários outros tributos.

A previdência, juntamente com a saúde e a assistência constituem a base da proteção social. São estes os direitos que melhor caracterizam o Estado de Bem-estar. É por isso que os constituintes, definiram, no Artigo 195 da CF, que a seguridade deverá ser financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das contribuições sociais. As contribuições sociais, a que se refere o Artigo, são as contribuições previdenciárias incidentes sobre a folha, mais as contribuições incidentes sobre o faturamento (PIS/PASEP e COFINS), sobre o lucro (CSLL), sobre concurso de prognóstico e sobre importações.

Portanto, para financiar o conjunto da seguridade, além do orçamento fiscal, existem também todas estas contribuições sociais. Até 2016, considerando somente as receitas das contribuições sociais e os gastos totais com saúde, assistência e previdência, o resultado era sempre superavitário. Ou seja, até 2016, nunca tinha sido necessário sequer utilizar os recursos do orçamento fiscal.

Voltando ao título deste texto, não há dúvida de que as reformas já aprovadas anteriormente abrem as porteiras para a reforma da previdência. A Emenda Constitucional 95, impondo limites ao crescimento dos gastos sociais, e a reforma trabalhista, determinando redução das fontes de financiamento para a previdência, facilitam a vida e os argumentos daqueles que defendem a redução do Estado. Por outro lado, se a passagem discreta de um boi pode passar despercebida aos olhares menos atentos, a aproximação da boiada fica muito mais difícil de esconder. Os verdadeiros motivos e intenções por trás das reformas estão cada vez mais escancarados. A reforma da previdência não é a primeira das reformas desestruturantes e, se passar, certamente não será a última. Resistir à reforma da previdência não é apenas defender o direito de se aposentar. É também defender a saúde pública, a educação pública, a assistência social… É defender a Constituição Federal de 1988.

Notas

[1] Comunicado IPEA nº 92, 2011 – Equidade Fiscal no Brasil – Impactos Distributivos da Tributação e dos Gastos Sociais

[2] https://www.oxfam.org.br/nos-e-as-desigualdades-2019

[3] ANFIP/DIEESE (2017, p. 58) – Previdência, Reformar para Excluir?

* Dão Real Pereira dos Santos é diretor de Relações Institucionais do Instituto Justiça Fiscal e membro do coletivo Auditores Fiscais pela Democracia.

Edição: Marcelo Ferreira