Drogas e legislação

Como as mudanças das leis de drogas afetam os usuários

Votadas às pressas pelo Senado, mudanças dão protagonismo às comunidades terapêuticas e focam na abstinência como método

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Para Luana Malheiro, da pós-graduação em ciências sociais da UFBA, internação compulsória não ajuda no tratamento contra as drogas
Para Luana Malheiro, da pós-graduação em ciências sociais da UFBA, internação compulsória não ajuda no tratamento contra as drogas - Agência Brasil

Aprovado pelo Senado na última quarta-feira (15), o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 37 altera 13 leis relacionadas à política nacional de drogas, inclusive a Lei de Drogas (11.343/2006), que deve ser reavaliada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 5 de junho. Agora, segue para a sanção do presidente Jair Bolsonaro.

As alterações foram propostas em 2013 pelo então deputado e agora Ministro da Cidadania, Osmar Terra, e comemoradas pela bancada evangélica. O texto endurece as penas aos traficantes organizados em facções criminosas, facilita internações involuntárias, e reforça a abstinência como método de tratamento, deixando de lado a redução de danos.

Além disso, fortalece as comunidades terapêuticas — clínicas religiosas antidrogas, geralmente focadas na abstinência do usuário e que colecionam denúncias de abusos, segundo relatório do Ministério Público Federal. As “clínicas” devem passar a integrar o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad).

O projeto foi votado às pressas pelo plenário, pressionado pela votação da descriminalização das drogas no STF. No entanto, a PLC não deve interferir na discussão do Supremo.

Internação involuntária

Para Luana Malheiro, integrante do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e membra fundadora da Rede Latino-Americana e Caribenha de Pessoas que Usam Drogas (Lanpud), a construção de um vínculo é fundamental para o tratamento de usuários abusivos de drogas. No entanto, isso se quebra quando a porta de entrada para o cuidado é a violação pelo Estado do direito de ir e vir.

“A internação compulsória abre uma brecha para que aconteça a retirada de pessoas em situação de vulnerabilidade dos espaços urbanos. Ela não atinge as pessoas brancas e ricas, mas sim as negras e pobres em situação de rua”, diz.

A especialista comenta que, quando se coloca a internação compulsória como método, a atenção às singularidades de cada indivíduo é deixada de lado, ou seja, é diferente da redução de danos, em que o cuidado é feito em conjunto com o usuário.

A partir das mudanças, o pedido pode ser feito pela família ou responsável do usuário, ou, na falta destes, pode ser realizado por um servidor da área de saúde, assistência social, ou pelo Sisnad. Só o médico poderá dar alta ao paciente.

“Essa PLC quebra um princípio fundamental da Lei da Reforma Psiquiátrica que é o cuidado dos usuários através de serviços de base comunitária, como os Centros de Atenção Psicossociais (Caps).”

O assistente social Vinicius de Melo Nascimento, que trabalha com o tratamento de usuários de drogas, acredita que dificilmente um usuário (mesmo que abusivo) necessite da internação involuntária como método de tratamento. Alguns casos de doenças mentais mais graves combinadas com o uso de psicotrópicos — em situação de surto onde haja risco para a pessoa ou outras — podem exigir contenção e intervenção medicamentosa. Nesse caso, deve ser feita por profissionais da saúde, e as internações de curto prazo em leitos de hospitais gerais ou CAPS.

Abstinência

O decreto foca na abstinência como método de tratamento para o uso abusivo de drogas, indo contra a política de redução de danos. Para Luana, o método é ineficaz, já que impõe condições para o tratamento. “A abstinência não pode ser uma meta do tratamento, porque a gente entende que cada sujeito precisa ter um projeto terapêutico para cada situação.”

A redução de danos se contrapõe à isso, já que parte de pressupostos de que o sujeito precisa se empenhar no tratamento, e o tratamento precisa ser construído junto à pessoa que usa drogas, respeitando suas singularidades e a inserindo em oficinas e atividades. “Existem vários motivos para que o usuário faça o uso abusivo de drogas. Não podemos exigir que parem de usá-las se não entendemos os motivos para o uso. Então, construímos com o sujeito alguns passos para a diminuição.”

Comunidades Terapêuticas

O país possui mais de 1.800 comunidades terapêuticas, que saem favorecidas com a nova política de drogas. Apelidada de “Rouanet das Clínicas”, o texto abre possibilidade de destinar 30% do imposto de renda às entidades, dá protagonismo às comunidades no tratamento de pessoas com problemas com drogas, e não estabelece diretrizes e normas claras de funcionamento.  Normalmente, as comunidades não contam com profissionais da área da saúde.

Em 2017, foi realizado um relatório de inspeção de 28 comunidades terapêuticas em 11 estados, encabeçado pelo Ministério Público Federal. Nas inspeções, feitas pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Conselho Federal de Psicologia, foram encontradas violações aos direitos humanos em todas as comunidades. Dentre elas, a impossibilidade de usuários deixarem a clínica, isolamento, condições precárias, retenção de documentos e de benefícios da aposentadoria.

Além disso, o acesso às entidades é dificultada. Algumas organizações impõem requisitos para acolher usuários, como a abstinência completa e isolamento dos círculos sociais, além de imposições que ferem a liberdade individual.

“Quando é construído um espaço, onde para usuários não conseguirem se tratar, não podem ser adeptos de religiões de matriz africana, LGBT, que vai passar por um processo de conversão religiosa ou transformação da sexualidade, isso fere o princípio de direito à identidade” explica Luana.

Para Vinicius, as comunidades utilizam de um método apelativo com alto grau de exigências rígidas, o que gera frustração nos usuários ao não conseguirem cumprir-las.

Edição: Guilherme Henrique