Entrevista

Rejeição de decretos de armas é mensagem do Senado a Bolsonaro, avalia advogado

Para Gabriel de Carvalho Sampaio, Legislativo sinaliza ao presidente que prerrogativa do Congresso deve ser respeitada

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Proposta de suspensão dos textos de Bolsonaro segue para análise da Câmara dos Deputados
Proposta de suspensão dos textos de Bolsonaro segue para análise da Câmara dos Deputados - Diogo Moreira

A suspensão dos decretos de Jair Bolsonaro (PSL) que facilitaram o porte de armas pelo Senado passa uma mensagem clara ao presidente de que as prerrogativas do Congresso Nacional devem ser respeitadas. 

A análise é do advogado Gabriel de Carvalho Sampaio, professor de Direito no Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) e integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

Após discussão de três horas na terça-feira (18), os parlamentares aprovaram, por 47 votos a 28, o parecer da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) que pede revogação de dois decretos do Executivo que tratam do porte de armas. A discussão seguirá na Câmara dos Deputados.

“O fato de os senadores terem reagido às pressões do governo favoravelmente a uma agenda que é amplamente apoiada pela sociedade civil é bom termômetro, que nos deixa bastante animados [com possibilidade de aprovação da proposta]”, comemora o advogado, em entrevista ao Brasil de Fato.

O direito ao porte é a autorização para transportar a arma fora de casa. O primeiro decreto de Bolsonaro sobre o tema foi assinado no dia 7 de maio, que permite proprietários rurais com posse de arma de fogo utilizar a arma em todo o perímetro da propriedade e que quebra do monopólio da importação de armas no Brasil.

No dia 22 de maio, Bolsonaro assinou um outro decreto sobre o tema, recuando em alguns pontos do texto anterior. Ainda assim, o presidente manteve a facilitação do porte de armas para categorias profissionais como caminhoneiro, advogado e profissional de imprensa de cobertura policial.

As medidas se tornaram alvo de contestações na Justiça e no Congresso Nacional. Mas as regras previstas nos decretos continuam valendo até que se aprove a suspensão dos decretos.

Em uma declaração em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, o presidente de extrema direita defendeu porte de armas para evitar um eventual golpe de estado. "Além das Forças Armadas, defendo o armamento individual para o nosso povo, para que tentações não passem na cabeça de governantes para assumir o poder de forma absoluta. Temos exemplo na América Latina. Não queremos repeti-los", disse.

Sampaio, por outro lado, identifica que o decreto de flexibilização do Estatuto do Desarmamento beneficia a indústria das armas, milícias e organizações criminosas e setores que apostam no conflito social, como latifundiários em disputa de terras.

Abaixo, confira a íntegra da entrevista.

Brasil de Fato: O que significa o Senado ter rejeitado o decreto de Bolsonaro sobre porte de armas e o que esse decreto implicaria no âmbito da Segurança Pública?

Gabriel de Carvalho Sampaio: O fato de o Senado aprovar o decreto legislativo que susta os decretos do presidente -- que haviam, praticamente, esvaziado regras importantes do Estatuto do Desarmamento -- é de passar uma mensagem clara para o chefe do Poder Executivo que as prerrogativas do Congresso Nacional devem ser respeitadas.

E, acima disso, o fato de o Congresso também proteger normas que são essenciais para a Segurança Pública, e que implicam no controle de armas de um país que mata. E mata muitas pessoas no cenário atual. Em especial, pessoas jovens, negras, da periferia, que são acometidas com mais de 70% do volume de mais de 60 mil assassinatos por ano.

O controle de armas, mais do que uma bandeira ideológica -- como, infelizmente, alguns classificam por parte desse governo --, é algo fundamental para evitar mortes violentas no país. A decisão do Senado é um sinal claro de que as prerrogativas do Congresso Nacional devem ser respeitadas. E avanços conquistados por meio do Estatuto do Desarmamento devem ser preservados e debatidos de forma transparente com a sociedade no Congresso Nacional.

Infelizmente, o Estatuto não é o único meio de se combater as mortes violentas no país, mas é um meio importante. Historicamente, a gente vê que, graças ao Estatuto do Desarmamento, a escalada de mortes por arma de fogo se estabilizou. É importante que o país invista, agora, em mais políticas de Segurança Pública e não em meios privados de prover segurança para tentar reduzir esses números ainda alarmantes de mortalidade violenta. 

Os parlamentares entenderam que o presidente tentou "legislar por meio de um decreto", o que é inconstitucional. Qual sua avaliação?

Esse é ponto central. O Estatuto do Desarmamento é uma norma restritiva para a concessão de posse e de porte de armas. Inclusive, para a aquisição de armas. Ele ofereceu regras para que houvesse essas formas de acesso às armas. E elas implicam essencialmente, em linhas gerais, na análise subjetiva da necessidade de cada cidadão para ter acesso à arma, seja por meio da aquisição e da posse e até mesmo do porte. 

Essas condições subjetivas são avaliadas por meio de exames de aptidão psicológica, técnica e análise da efetiva necessidade. O decreto [de Bolsonaro] esvaziava essas condições subjetivas e essas análises por meio de regras que eram, na essência, flexibilizadora  -- como ampliando para pessoas que, pelo simples fato de serem profissionais, como advogados, funcionários de lojas de clube de tiro, caminhoneiros, outras tantas categorias que foram inseridas.

Se fosse para ter um conceito absolutamente aberto como esse, que permitiria profissões com número grande de pessoas tivessem acesso sem maiores requisitos subjetivos, o próprio legislador teria inserido essas normas flexíveis na lei. Então, um dos pontos que reforçam a inconstitucionalidade do decreto é justamente essa técnica autoritária adotada pelo presidente da República.

E quem teria acesso a essas armas? Seria a população de maior poder aquisitivo?

Sem dúvida. Um dos pontos que acabam sendo reforçados por esse tipo de normativa, além de esvaziar o papel dos órgãos de Segurança Pública, é "privilegiar", se é que isso pode ser chamado de privilégio, pessoas com alta renda para poder adquirir armamento. 

Certamente, o custo de uma arma no Brasil é extremamente elevado: mais de dez salários mínimos são necessários para se ter uma arma, fora munições. E isso certamente não é algo acessível para pessoas de baixa renda. Esse próprio critério econômico acaba, infelizmente, se dirigindo a grupos sociais com maiores poder aquisitivo. 

Outra das graves consequências é que no decreto houve uma abertura absolutamente inconcebível para compra de munições. Até para uso de munições por profissionais de segurança pública, mas que não contam com o adequado controle por parte desses próprios órgãos de segurança. Isso dificulta muito o controle social sobre o uso das armas das próprias forças de segurança. E isso tem um impacto muito grande nas investigação de mortes provocadas por agentes de segurança pública.

Em pesquisa divulgada em dezembro do ano passado, o instituto DataFolha afirmou que 61% dos brasileiros entrevistados consideram que a posse de armas de fogo deveria ser proibida por representar ameaça à vida de outras pessoas. Então, a quem interessa esse decreto?

Eu acho que o decreto beneficia o setor econômico que obtêm lucros com a produção, aquisição e venda de armamentos. Então a indústria de armas se beneficia dessa norma. 

Junto com ela, aqueles setores na sociedade que acabam por romper com uma lógica de valorização do controle da atividade policial. Esses setores podem ser identificados, entre outros, com setores criminosos e milicianos que atuam no país. 

As organizações criminosas também são beneficiadas porque outro dado importante é que quanto mais aumenta a circulação de armas no país --  e isso se dá também pelo estímulo de armas legais --  mais é propicia a atuação das organizações criminosas. O abastecimento das armas servem à criminalidade. 

E, além disso, beneficia os setores que politicamente tem apostado em um governo de confronto. Eles são associados com setores que atuam na área rural, de pensamento bastante conservador, e aquelas que se filiam à tese do presidente expressada na sua declaração em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, que entendem que as armas seriam úteis para defender o governo de um eventual tentativa de golpe de Estado, como ele classificou. Então, eu acho que esses são setores mais interessados e beneficiados por esse tipo de norma.

Quais os próximos passos para derrubar o decreto que, a priori, continua em vigor, já que o texto será enviado à Câmara?

Eu acho que a perspectiva é positiva. O Senado acaba tendo um termômetro importante em relação ao comportamento dos parlamentares em geral em face das pressões do governo em torno de uma pauta que lhe é prioritária. O fato de os senadores terem reagido às pressões do governo favoravelmente a uma agenda que é amplamente apoiada pela sociedade civil é bom termômetro, que nos deixa bastante animados com relação à etapa que esses projetos terão na Câmara dos Deputados.

A próxima tarefa para todos aqueles que defendem a sustação dos decretos do presidente e consequente aprovação dos decretos legislativos é fazer um trabalho de convencimento de deputados para que essa matéria seja o mais rapidamente possível aprovada pelo plenário da Câmara. 

Feito isso, é feita a promulgação dos decretos legislativos e a consequente sustação do decreto dos presidentes. O quanto mais rápido isso acontecer é melhor porque o decreto continua em vigor até hoje. Até momento que for promulgado o decreto legislativo aprovado na Câmara dos Deputados. Então, a cada dia que passa, mais pessoas podem ter, com base nessas regras, acesso a essas armas. O que aumenta muito a circulação e traz vulnerabilidades grandes. 

Essas vulnerabilidades são percebidas por setores sociais que são mais afetados pela violência no Brasil. E como eu disse no começo, esses setores citados por altos índices de mortalidade são jovens com perfil de renda e étnico absolutamente associados com jovens negros das periferias do nosso país, que sofrem cada vez mais com a ausência de políticas públicas para solucionar os principais problemas no desenvolvimento do país. 

Mas também com ausência da áreas de segurança que tutelam efetivamente a vida e os interesses desses jovens, que morrem na periferia sem atuação de um estado que priorize sua vida saudável e sua importância para a construção econômica, política e cultural do país — e que acabam, então, sofrendo por essas medidas. Então, a expectativa é o mais rapidamente possível aprovar a matéria para que esse debate nos ajude a promover um sinal de alerta para a sociedade e seja também um elemento de mobilização por temas mais estratégicos.

* Com colaboração de Rute Pina

Edição: Rodrigo Chagas