Rio Grande do Sul

ENTREVISTA

Boaventura: “Temos é que democratizar a revolução e revolucionar a democracia"

Nessa segunda parte da entrevista, o professor português continua a analisar a política e a democracia brasileira

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Em visita ao RS, o sociólogo concedeu entrevista ao Brasil de Fato RS e com a Rede Soberania
Em visita ao RS, o sociólogo concedeu entrevista ao Brasil de Fato RS e com a Rede Soberania - Fotos: Katia Marko

reduz-se a razão / às razões que temos, / concentra-se o futuro nas proximidades, / repetem-se erros fanáticos /até parecerem diplomas / de descuidos bem estudados. / entretanto os séculos / acumulam-se e o corpo / mesmo deitado / tropeça / só o fim começa

O verso acima faz parte do poema Um Cigarro no Bradley's, do professor Boaventura de Sousa Santos, e nos remete à situação atual tanto nacionalmente quanto internacional, onde as revoluções, as grandes conquistas, abrem espaço para o restauracionismo.

Na avaliação de Boaventura, no caso brasileiro, as elites patrimonialistas do país, com a sua tradição do “mandonismo”, do patrimonialismo, são sempre elites que se servem da democracia, mas não sabem servir à democracia. Para ele, a esquerda precisa voltar a fazer o trabalho de base.

Para o sociólogo, uma inovação para esquerda poderia se dar a nível municipal. “Eu vejo partidos de esquerda fazendo aliança com partidos golpistas, por táticas estaduais ou municipais, é um convite ao desastre. No Brasil, quem faz alianças com a direita faz política da direita nessa década, porque não há condições para todos ganharem e portanto não há condições para termos alguma vantagem nisso. As alianças têm que ser entre partidos de esquerda. Onde ela é mais fácil de fazer? A nível municipal”.

Confira a segunda parte da entrevista:

Brasil de Fato: Parece que cada vez mais estamos aflorando em contradições no mundo. O senhor falou na guerra tecnológica, e é visível que cada vez mais a tecnologia tem dominado - vide a eleição que tivemos aqui ou nos Estados Unidos que foi praticamente decidida via whatsap - e ao mesmo tempo revivemos discursos super-ultrapassados. Até poderíamos dizer da idade média, da condição feminina, da questão do trabalho escravo, enfim, e uma dominação religiosa muito forte também. Como explicar essas contradições? Estamos falando de 5G, estamos falando de automação, no mundo em que também temos um grande avanço do fascismo em vários lugares...

Boaventura de Sousa Santos: Houve um grande intelectual marxista, que é um dos meus preferidos: Trótski (Leon Trótski, 1879 - 1940), que defendeu a ideia de que o desenvolvimento do capitalismo era desigual e combinado. Isso é, o fato de haver 5G não tem nenhuma contradição com o fato de aumentar o trabalho escravo, porque o desenvolvimento do capitalismo a nível mundial é desigual e combinado. Procura dividir, criando polos de grande inovação ao lado de polos mais retrógrados possíveis. E quem talvez tenha analisado melhor a nossa situação foi o próprio Karl Marx, com um livro que todos deveriam ler neste momento, 18 de Brumário de Luís Bonaparte, porque estamos em um período restauracionista.

Depois de grandes conquistas, de algumas conquistas significativas. Na Europa, foi em 1848, onde revoluções burguesas daquela época, que deram alguns direitos às classes trabalhadoras emergentes e que em seguida vamos assistir a um restauracionismo, que vai levar até a eleição de Napoleão, e Marx analisa muito bem essa restauração. E estamos exatamente vivendo um restauracionismo. O continente latino-americano entre os anos 2002 e 2013 foi o único com resultados, conforme estudo recente da ONU que aponta que foi o único continente onde se reduziu a pobreza significativamente. Nem na Europa, África, nem em outros isso aconteceu. E agora nesse momento em que mais gente está em risco de voltar à miséria, há um processo muito forte. Como as elites viram em risco a sua rentabilidade, não puderam aceitar que isso continuasse, então tiveram que estancar. Estanca-se através de uma onda restauracionista que estamos vivendo nesse momento, que é conservadora e reacionária.

A diferença entre os conservadores e os reacionários é a seguinte: os conservadores são aqueles que de uma maneira defendem os princípios fundamentais da revolução francesa, liberdade, igualdade, fraternidade. Eles dão prioridade total à liberdade, mas admitem que, com algum jeito, também a igualdade deve ter alguma contenção, sobretudo para conter a classe operária, digamos assim; e a fraternidade mais ou menos posta à margem, como o serviço da sociedade civil, filantropia, mas acreditam nos valores. O reacionário não confia se quer nesses valores, não aceita os valores da liberdade, nem da igualdade, nem da fraternidade, ou seja, quer ir para trás, para antes da revolução francesa. Esse é o reacionário do nosso tempo, e é esse que tem aptidão sobre a mulher dessa forma, sobre os negros, e sobre o racismo, etc. Isto está a aparecer de uma maneira violenta, não só no Brasil, obviamente, mas com um vincar particularmente forte no país, devido ao fato de ser uma sociedade colonial e de tradição escravocata, tal e qual como os Estados Unidos. Essa onda restauracionista tem configurações diferentes. Na Índia, por exemplo, é também um grande líder populista nesse momento, com políticas realmente de grande exclusão social, fundamentalmente contra os islâmicos e muçulmanos, considerando que só o único indiano que é verdadeiramente indiano é o hindu e não o muçulmano. Na Europa, são os refugiados, Orbán, Kaczyński, na Polônia onde o inimigo é realmente o refugiado.

Aqui, nós temos uma configuração mais violenta ainda, porque temos uma massa de manobra, que são aqueles que sempre estiveram excluídos, nunca foram integrados, e que começaram a ser integrados com as políticas da ação afirmativa. Mas essas políticas, para alterar o censo comum do racismo e da discriminação, precisavam de gerações, e essas gerações não tiveram lugar porque essas políticas foram interrompidas. E portanto as elites patrimonialistas do Brasil, com a tradição do “mandonismo”, do patrimonialismo, são sempre elites que se servem da democracia, mas não sabem servir à democracia.

Serviram-se do presidente Lula enquanto lhes era útil, e no momento que não era mais útil, descartaram, e descartaram da maneira mais brutal e colonialista que se pode imaginar. Não foi luta de classes apenas, era um retirante, era um ignorante, era um trabalhador que não pertencia à elite que não podia pertencer. E portanto aquilo que era uma conciliação de classes, que o ex-presidente Lula pensava que estava construindo no Brasil, era, realmente, um arranjo provisório das elites para aproveitar o boom da commodities para ficarem mais ricos, como sempre ficaram, e toleraram que uma migalha pudesse ser distribuída às classes populares, através do bolsa-família, etc. Mas o Itaú nunca teve tantos lucros como teve no tempo do Lula. No momento em que o boom das commodities cai, a partir de 2010, com o abrandamento também do desenvolvimento da China, começa a haver uma crise, obviamente que a presidenta Dilma procurou gerir, mas talvez não tenha gerido da melhor maneira. No meu entender é, onde o Estado vai buscar o dinheiro para as políticas sociais, se realmente o excedente já não dá para dar aos ricos e aos pobres, só tem uma maneira, que é tributar, é cobrar impostos.

Bem, a elite aí, no limite primário, diz “impostos não”, e foi nesse momento que se resolve não ter que esperar por 2018, onde, no meu entender, o poderia mudar de mãos, mas ia mudar de mãos de uma maneira que talvez não satisfizesse inteiramente o interesse dos EUA. Satisfazia o interesse dessa elite local, mas não o interesse dos EUA. Como essa elite local já estava muito desnacionalizada, porque esse período de 2002 a 2013 é um período de desindustrialização do país - em que as grandes empresas brasileiras já estão todas nas mãos de empresas internacionais, dos vossos produtos, a Embraer é obviamente é um caso emblemático, mas são todas as outras - houve a necessidade de fazer uma destruição completa do aparelho produtivo do Brasil.

E penso que a Lava-Jato foi um instrumento exatamente para isso. Obviamente todos nós somos contra a corrupção, como eu também sou contra a desigualdade, mas há regras, eu não vou começar a roubar os ricos porque quero distribuir aos pobres, não vou fazer isso. Também sou contra a corrupção, mas não vou usar todos os meios para lutar contra a corrupção, por exemplo. No caso das empresas poderia, evidentemente, haver uma punição das empresas, ou dos seus empresários, mas não para que elas fossem à bancarrota, como agora acaba a vir o caso da Odebrecht. Destruíram as empresas que davam muito emprego no Brasil, e agora vai ver quem vai reconstruir e fazer as grandes infraestruturas do país quando elas voltarem? E depois, quando isso ocorrer, lembre-se do Iraque, onde primeiro destruíram as empresas que haviam lá. Quem é que foi fazer as grandes infraestruturas? Quem vai fazer a reconstrução? É a Libertan, onde o ex vice-presidente dos EUA, Dick Cheney...

Aqui há manobras internacionais muito fortes, e o Brasil como é um grande gigante, pensava que os EUA teriam mais respeito pelo país devido à sua dimensão. Mas não, tinham mais respeito, mas também tinham mais aborrecimento devido a essa riqueza. Foi tudo isso que despreparou as esquerdas para poder lutar eficazmente, e as elites se acomodaram. Obviamente Bolsonaro não era o candidato deles inicialmente, como sabemos, mas foi esse que podia causar a destruição. Por isso que esse presidente não tem que governar, ele não governa, ele destrói, para destruir não é preciso competência técnica, é preciso demagogia e uma caneta para assinar decretos, destruindo isso, destruindo aquilo, eliminando isso, eliminando aquilo. Agora a construção terá que ser feita de outra forma.

"O grande objetivo é a privatização da previdência. Sabemos que essa foi a mãe de todas as lutas", disse Boaventura 

Rede Soberania: Enquanto ele vai destruindo a classe dominante a nível internacional, o capital financeiro vai tomando conta das riquezas...

Boaventura: Obviamente está a tomar conta. E agora o grande objetivo é a privatização da previdência. Sabemos que essa foi a mãe de todas as lutas, e manterão esse status quo, defenderão o Moro, defenderão tudo. O próprio EUA pode chegar à conclusão de que o Moro, afinal, foi uma aposta errada; e como sabem, os EUA sabem muito bem fazer isso: quando tem alguém que é um lacaio preferido, como aconteceu com o Sérgio Moro, também sabem descartar. O Daniel Noruega, por exemplo, foi um grande lacaio dos EUA, e depois quando viram que ele não era de confiança, meteram ele na prisão. Isso não vai acontecer com o Moro, mas podem chegar a conclusão de que ele pode não ser capaz de entrar no STF, que pode, eventualmente, não ser um candidato aceitável para os brasileiros depois de tudo isso. E por isso é que a imprensa está tão frenética em defendê-lo.

BdF: Ao analisar as camadas mais populares, observa-se que, mesmo tendo sido contempladas com as políticas afirmativas dos governos petistas, votaram no Bolsonaro. A eleição dele estaria, como o senhor mencionou recentemente em um artigo, ao dizer que estamos vivendo três momentos, do ódio, do medo, da mentira, condicionada a esses três momentos? Onde o senhor situa o voto dessa camada popular?

Boaventura: Tem vários fatores. Primeiro, temos que começar por também fazer um juízo sobre a nossa casa, ou seja, eu acho que as políticas de inserção das classes populares promovidas pelos governos populares do PT visaram, sobretudo, a criação do mercado interno e a integração pelo consumo. Não fizeram a integração pela cidadania e, portanto, não criaram uma cultura democrática, não promoveram as mídias alternativas como deviam. Deram muito dinheiro para o setor privado da educação, cuja transferência chegou a ser de 15% do MEC (Ministério da Educação), através de bolsa de estudo para que estudantes vivessem no sistema privado, onde aprenderam a ser hostis ao governo do PT. Ou seja, o próprio PT criou os seus inimigos em uma classe de opinião contra eles, exatamente porque era essa a lógica.

Segundo lugar, nunca as classes médias são gratas a quem as promove. A classe média quando está ameaçada, isso a gente vê na Europa também, o que ela imediatamente faz, é que ela gostaria de se promover para cima, olha para cima e hostiliza para baixo. Começa a criar um ressentimento em relação àqueles que estão abaixo porque são aqueles que, em seu entender, podem pôr em causa o seu estatuto, portanto quem é pobre vira-se contra aquele que é mais pobre. É o que acontece na Europa, em que classes médias empobrecidas se viram contra refugiados e os imigrantes, como se eles fossem os inimigos deles, quando, pelo contrário, eles poderiam apoiar muito a criação. A classe média entra, muito normalmente, em uma política de ressentimento. E portanto tanto apoiou o presidente Lula, como no momento que vê realmente que a base de sustentação, da sustentabilidade do seu estatuto está posta em causa, são capazes de virar para outro lado, e é por isso que, quase a mesma base social que elegeu, ou que elegeria o ex-presidente Lula, virou-se para Bolsonaro, e sua alternativa era Bolsonaro.

Por outro lado, houve uma demonização do PT absurdamente sem precedentes na história, ao longo de anos, por parte da Globo sobretudo, mas também dos jornais em geral. Essa demonização do PT não tem paralelo na história, eu nunca vi nenhum partido, partido democrático, tão demonizado, de uma maneira tão sistemática, com um tipo realmente de fake news. As fake news não vêm de agora, do Whatsapp. As fake news foram a Globo que as fez, ao dizer, por exemplo, que eram comunistas, quando a gente sabe que o presidente Lula nunca foi comunista, de falar de marxismo cultural, que é outra mentira, mentira inventada por Hitler para liquidar os judeus, e que agora aparece ai de outra forma. Foi uma demonização brutal que condicionou a opinião pública, porque o povo brasileiro é dos povos no mundo que mais veem televisão, quatro a cinco horas por dia. Se olharem fundamentalmente para a Globo, ou para outros, estão sujeitos a um bombardeio de um brainwash (lavagem cerebral), de que foram vítimas ao longo desses tempos.

Portanto, foi isso, no meu entender, que fez essa virada brutal. Agora, ainda ontem, um taxista me dizia exatamente isso: “a gente pensou que esse senhor ia fazer alguma coisa, mas agora estamos vendo que está despreparado, não tem preparação para fazer isso, governar”, dizia o taxista. Ele não sabe dialogar, ele está botando todos contra todos, e portanto esse senhor não nos serve. Eu disse ao taxista, “bem, a mim nunca me enganou, mas ao senhor enganou”, e ele disse, “sim, me enganou, mas acho que realmente agora estamos precavidos, e vamos ver”.

Acho que houve um grande processo, talvez, de uma intoxicação da opinião pública no Brasil que não seria possível na Argentina. O sistema educativo na Argentina foi muito mais fundo, mais duradouro, fez um juízo sobre o terrorismo de Estado da ditadura, é por isso que os ditadores não podem voltar ao poder, e portanto essa educação ganha mais força, por isso que eles estão mais fortemente na rua que os brasileiros nesse momento. Isso é um processo que a gente tem que atender, porque para qualquer parte do mundo que eu vou, as pessoas me perguntam, o que se passa no Brasil, porque passa de uma grande qualidade a uma péssima qualidade e não há um levante, não se vê o povo na rua, o país do Fórum Social, o que passa?

BdF: Como dialogar, como superar o discurso do ódio?

Boaventura: Aprendam com as igrejas evangélicas, porque acho que as esquerdas deixaram de ir para as periferias, deixaram de falar para as periferias. Hoje ser um militante de esquerda é ir à reunião do partido aos sábados e fazer uma análise da conjuntura, mas não vão para a periferia, não vão viver para as periferias como o PT fazia nos anos 80, onde muita gente do PT vivia. Nas periferias, havia células onde realmente se fazia trabalho cultural e trabalho político, trabalhavam nos grupos culturais, na associação de moradores, eu mesmo experimentei isso. Depois, os melhores quadros desse partido vieram para o poder, e os que ficaram no terreno começaram a viver de rendas políticas daqueles que estavam no poder. Isso foi obviamente um convite à corrupção e ao amolecimento, digamos, das ideias, é por isso que deixaram de falar com as periferias. Quem veio falar depois de o papa polaco ter proibido praticamente a teologia da libertação, e que pensava-se que se criava um vazio que não seria preenchido por ninguém, foram os evangélicos.

Eu respeito todas as religiões, e trabalho bastante com os 15% evangélicos, inclusive com um bispo evangélico do Rio de Janeiro, que é um homem que está a lutar, e dar outra visão do pentecostalismo, mas são 15%. Os outros 85% falam, eles não usam tanto o Whatsapp, estão lá na comunidade, falam com as pessoas e vão demonstrando uma coisa que é absolutamente perniciosa, e que a esquerda só se reinventará se souber vencer o argumento na periferia que é esse: “Se é rico é porque Deus te abençoou, se és pobre a culpa é tua, portanto não há problema social, não há causas sociais de ser pobre, portanto, todos tem que ser empreendedores, mesmo que não tenham condições para ser”. A esquerda tem que trazer o social, a luta de classes é um dos fatores sociais que condicionam que certas pessoas tenham oportunidades e outras não tenham. Para isso é trabalho de base, e a esquerda não sabe fazer trabalho de base nesse momento.

BdF: Recentemente entrevistamos o pastor Henrique Vieira, que estava aqui em Porto Alegre, lançando seu livro, Amor como Revolução, e ele falava justamente disso, que o discurso panfletário já não atinge mais as pessoas no geral, e que nós precisamos trabalhar com esses conceitos, do amor enquanto um instrumento político revolucionário, a questão da vida, da família, que família nós defendemos, que não podemos deixar esses conceitos para a direita.

Boaventura: Eu penso que sim. Embora tenha minhas dúvidas que seja só isso, porque realmente penso que com amor, também o Lulismo foi paz e amor, e estamos todos juntos. Lula foi um propulsor dessa ideia do amor, mas eu tenho dúvidas. Tem que ter condições para o amor, e em uma sociedade extremamente desigual o amor pode ser uma forma de exploração daqueles que tem poder em relação aqueles que não tem. Para vencer as contradições sociais, de classe, de raça, de preconceito racial e de gênero, eu acho que deve haver outra leitura, não é ir para as periferias pregar a revolução, o que nós temos é que democratizar a revolução e revolucionar a democracia. Portanto, a democracia tem que ser no cotidiano, os partidos têm que ser reinventados, são hoje propriedades de elites partidárias, de oligarquias partidárias, que por vezes respondem mal às bases.

Eu sou amigo do presidente Lula, visitei em Curitiba, foi um grande líder e segue, sem dúvida, o presidente mais popular do Brasil, mas me custa ver nesse momento que o PT depende de tudo do presidente Lula de ser, não tem autonomia possível. As condições do futuro não são as mesmas do passado. É por isso que eu penso que a renovação da esquerda vai ter agora um problema exatamente por isso. Essa renovação vai ter que agregar novos valores, há muita gente nova, com vontade de transformar a política, que são honestos, que apesar da corrupção ser endêmica, não foram atingidos.

Penso também que a inovação, a resposta a essa corrente restauracionista vai se dar, ao meu entender, a nível municipal, ou seja, a primeira reação tem que ser a nível municipal. As câmaras municipais, aqui os municípios de Porto Alegre, São Paulo e do Rio, por exemplo, vão ser fundamentais em 2020, porque a política de protesto é protesto, não é formulação política. É também a nível municipal que nós podemos congregar as alianças à esquerda. Eu penso que deveríamos por termo no Brasil, durante um tempo, à alianças com a direita, e é isso que me preocupa. Eu vejo partidos de esquerda fazendo aliança com partidos golpistas, por táticas estaduais ou municipais, é um convite ao desastre. No Brasil, quem faz alianças com a direita faz política da direita nessa década, porque não há condições para todos ganharem, e portanto não há condições para termos alguma vantagem nisso, as alianças têm que ser entre partidos de esquerda. Onde ela é mais fácil de fazer? A nível municipal, porque ai a nível municipal não confronta dois poderes que vão estar contra si de uma forma muito grande, os militares e o capital financeiro, embora eles possam interferir, interferem menos.

Veja que nos EUA são as cidades que estão, de alguma maneira a contrapor-se ao Trump, por exemplo. Muitas cidades são refúgios que se recusam a deportar imigrantes, são as cidades onde temos o living way. Eu, há 35 anos, passo quase metade do ano nos EUA, entre agosto e dezembro, então sei como esse sistema está a funcionar. É nas cidades em que há o living way, o salário que dê para viver, que não é possível estabelecer a nível nacional. O municipalismo pode ser nesse momento uma arma, até porque vem antes de 2022, para poder agregar e fazer uma experimentação daquilo que em Portugal chamaríamos de geringonça, ou seja, uma aliança das forças de esquerda, que mesmo moderadas, sejam só forças de esquerdas e não forças de direita.

Um Cigarro no Bradley's

Sempre que acendo um fósforo

com o micro-rigor que recomendas

queimo-me

e a todas as cautelas em redor

reduz-se a razão

às razões que temos,

concentra-se o futuro

nas proximidades,

repetem-se erros fanáticos

até parecerem diplomas

de descuidos bem estudados

entretanto os séculos

acumulam-se e o corpo

mesmo deitado

tropeça

só o fim começa

Viagem ao centro da pele. Porto: Afrontamento, 1995 (p. 52)

Leia à primeira parte da entrevista: "Os trabalhadores estão ficando cada vez com mais trabalho e sem direitos"

Edição: Marcelo Ferreira