Entrevista

É importante ver a sociedade por uma lente negra, diz fundadora do Black Lives Matter

Opal Tometi analisa a conjuntura política e racial nos Estados Unidos e o racismo como legado global do colonialismo

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
A ativista Opal Tometi, em sua passagem por São Paulo (SP)
A ativista Opal Tometi, em sua passagem por São Paulo (SP) - Pedro Borges / Alma Preta

Opal Tometi é uma das fundadoras do movimento Black Lives Matter ("Vidas Negras Importam"), que surgiu nos Estados Unidos há seis anos para combater a violência sofrida pela população negra, o racismo sistêmico das forças policiais, a seletividade penal e a discriminação racial. Filha de imigrantes nigerianos, militante dos direitos humanos e escritora, ela hoje é diretora executiva da Aliança Negra por uma Imigração Justa (Baji, na sigla em inglês).

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Tometi cresceu no Arizona e atualmente vive em Nova York. Em visita ao Brasil, ela participa de uma série de encontros com o movimento negro no país e cumpre uma agenda de debates a atividade “Mulheres negras movendo as estruturas: Diálogos com Black Lives Matter”, promovida pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) e o Sesc Santana neste sábado (27).

A ativista conversou com o Brasil de Fato sobre o que motiva o surgimento de movimentos como o Black Lives Matter ao redor do mundo, a conjuntura política e racial nos Estados Unidos, o racismo como legado global do colonialismo e as políticas de combate à imigração do governo Donald Trump. Ela interpreta que, para fazer frente ao conservadorismo e ao supremacismo branco nas eleições nos EUA em 2020, as forças progressistas do país terão de se unir e escutar com seriedade as mulheres negras.

Leia a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato: Como você avalia esses seis anos de Black Lives Matter, desde quando era chamado de "renascimento do ativismo negro"?

Opal Tometi: É uma grande motivação ter tido seis anos de movimento forte. Acho que, quando começamos o Black Lives Matter, sabíamos que queríamos que fosse uma coisa grande, sabíamos que faríamos uma coisa que fizesse o país avançar e criasse uma tensão. Nós sabíamos há muito tempo que havia um silêncio em torno da questão do racismo contra pessoas negras, e não aguentávamos mais. Estávamos cansados da forma como as pessoas e as vidas negras eram desrespeitadas. Estávamos cansados da forma como os políticos e aqueles que estão no poder agiam como se nada estivesse acontecendo nas nossas comunidades.

Na criação do Black Lives Matter, nós sabíamos que precisava ser uma coisa grande, sabíamos que deveria ser uma coisa que fosse feita sem pedir licença e inclusiva, de forma radical. Embora o Black Lives Matter tenha começado por causa dos assassinatos de pessoas negras desarmadas — o que é terrível, injusto e assustador —, também sabíamos que a qualidade de vida que as pessoas negras já tinham era tão limitada que precisávamos chamar atenção para isso também.

Quando se olha para questões como moradia, alto índice de desemprego, educação precarizada, o sistema de saúde e os impactos disso para as pessoas negras, sempre ficamos com os piores indicadores. Sempre estamos por último, na base, sempre com um desempenho ruim e sempre ficamos com as migalhas. Nós cansamos disso.

O Black Lives Matter foi criado para acender a faísca de um certo estranhamento e um despertar, mas também se desenvolveu ao longo dos anos para construir poder. Comitês se desenvolveram, outras organizações que já existiam decidiram adotar políticas mais inclusivas e pautas mais radicais, garantindo a inclusão das pessoas negras e as experiências delas em seus programas, sem pedir desculpa por ter uma lente e uma pauta de justiça racial.

Para mim, isso é muito poderoso, e é o que vejo que aconteceu nos últimos seis anos.

Existe uma noção de que a face mais evidente do racismo institucional é a violência policial, mas também há outras expressões do racismo. Recentemente, por exemplo, li uma matéria sobre famílias negras que estão perdendo suas terras nos Estados Unidos e ficando cada vez mais pobres. Quais são outros temas prioritários para o movimento negro para além da violência policial?

Há uma série de questões afetam as pessoas negras. Acho que é muito importante saber, por exemplo, que as pessoas negras estão preocupadas com a estagnação de seus salários no mercado de trabalho — ou mesmo a possibilidade de conseguir emprego.

Vimos por muito tempo altos índices de desemprego na comunidade negra, por uma série de motivos. Um dos principais é o ataque aos sindicatos. Os sindicatos representaram uma das principais ferramentas para a população negra garantir salários justos, condições de trabalho dignas, direito a férias, licença-maternidade e todos os direitos básicos que hoje conhecemos, mas foram conquistados pela luta dos sindicatos. Eles também lutaram por empregos inclusivos onde as pessoas negras pudessem trabalhar com dignidade e igualdade salarial. Essa é uma das principais preocupações de nossa comunidade: a possibilidade de conseguir emprego e receber salários justos é crucial.

Também nos preocupamos com a saúde de nossas comunidades. São pessoas demais entre nós que vão à falência porque não têm condições de pagar as despesas médicas, porque a forma como o sistema de saúde dos Estados Unidos foi construído é absurda, deplorável. Tem gente literalmente perdendo a casa, perdendo tudo por causa de um problema de saúde. A verdade é que, muitas vezes, o problema de saúde é resultado das nossas condições, do ambiente onde crescemos. 

As pessoas estão sofrendo todo tipo de impacto na saúde, resultado da disparidade, que não deveriam sofrer. E isso também vem com mais um custo: o econômico. Sem condições de arcar com esses custos, as pessoas estão vivendo com doenças e tendo morte prematura também.

Foto: Daniel Leal Olivas/AFP

Nossas comunidades estão preocupadas com esses outros problemas que muitas vezes acabam se perdendo no debate e na mídia, porque querem fazer parecer que as pessoas negras só se importam com uma coisa, quando nossas preocupações são diversas.

Muito da minha atuação é com imigrantes e refugiados negros, vindos da África, do Caribe e de várias regiões do continente americano. São pessoas negras que estão tentando transitar pelo sistema de imigração [dos Estados Unidos], e esse sistema diz: "Não gostamos de negros, não queremos vocês." E dificulta demais o status de imigração de pessoas negras e mesmo a entrada no país, para começo de conversa, para conseguir um visto. Ou, para quem tenta buscar asilo, temos o regime de [Donald] Trump que diz: "Essas pessoas não precisam de asilo, elas não merecem". E tentam forçá-las a voltar para outros países.

É importante adotar uma lente negra para olhar a sociedade, para enxergarmos a situação das pessoas negras, e também como o racismo faz com que as pessoas negras tenham mais dificuldade de acessar os serviços, o apoio e os recursos que são devidos a elas.

Qual a sua análise da situação da imigração nos Estados Unidos hoje?

O sistema de imigração está quebrado, já não funciona há muito tempo. E isso é proposital.

O que está acontecendo agora é que Trump está colocando mais desafios e mais abusos contra os direitos humanos nesse sistema que temos, que já era horrível. Em vez de desenvolver uma resposta humanitária, voltada para os direitos humanos, o que vemos é que Trump está usando os imigrantes como bode expiatório para justificar os problemas que estão acontecendo nos EUA. Ele diz que os imigrantes são culpados de uma série de coisas que não é culpa deles. Sabemos disso porque temos dados e inúmeros relatos que provam o contrário, mas ele mente. O governo Trump basicamente criou e desenvolveu políticas novas baseadas em mentiras. 

O que estamos vendo agora é que os imigrantes estão sendo trancados em gaiolas dentro de galpões, muito acima da capacidade. As pessoas não conseguem tomar banho nem escovar os dentes. É imoral. É revoltante. É terrível deixarem um ser humano sofrer desse jeito.

É triste, para mim, ver os Estados Unidos chegarem nessa situação em que estamos tratando essas pessoas como lixo, como se não fossem seres humanos. Para mim, essa é a verdadeira crise. É uma crise moral. Não é uma crise de imigrantes, ou um aumento na imigração. Não. Isso é mentira. Os números não mostram isso. 

Estamos em um terreno perigoso. Esse é o tipo de comportamento que leva ao genocídio. É esse tipo de desumanização, de degradação que estamos vendo na fronteira. A degradação que vemos também dentro dos EUA. 

A mesma coisa acontece nas escolas. Crianças e jovens estão com medo de ir para a escola, porque não sabem o que vai acontecer com os pais ou com eles mesmos. E, na escola, as crianças fazem provocações, porque veem o presidente fazendo intimidações no Twitter. E também em qualquer lugar onde ele tiver um palanque, ele culpa os imigrantes por tudo e por causarem problemas que, na verdade, não existem.

Por que acontece isso? Nós conhecemos essas políticas que você descreveu, mas existem alguns setores da população que apoiam isso. Trump, por exemplo, está usando isso para sua campanha presidencial para as eleições de 2020. Por que alguns setores da população apoiam esse tipo de política de imigração nos EUA?

Minha sensação é que algumas pessoas apoiam Trump porque acreditam nesses valores racistas. Elas sentem medo mesmo, e ele consegue usar essas táticas alarmistas para dar a sensação de que elas têm alguma coisa a perder, sendo que não é esse o caso. Ele está fazendo as pessoas terem medo de coisas que não vão acontecer ou não são verdade. É bizarro e simplesmente errado. Ele está mentindo mesmo.

Algumas pessoas são manipuladas de fato — muitas, na verdade. Mas também tem muita gente que compartilha essas visões com ele. E não é a maioria dos EUA, porque a maioria dos EUA não votou nele. Ele perdeu no voto popular. Foi a Hillary Clinton quem ganhou no voto popular. Ele só ganhou tecnicamente por causa da forma como nossos sistema eleitoral funciona. 

Então, nosso sistema não está funcionando do jeito que deveria, para começar. Mas, para além disso, sabemos que as pessoas que apoiam esse tipo de visão são minoria. Pessoas com consciência, que se importam, são a maioria. A maioria dos estadunidenses não quer ver o que estamos testemunhando na fronteira. A maioria não quer ver crianças sendo separadas de suas famílias, não acha que isso é certo. E nós sabemos, graças à história, que isso não é certo.

Nós temos uma história de separação forçada de famílias, sequestro de crianças, arrancar os pais dos filhos e escravizar pessoas negras, indígenas, japonesas... Nós já vimos isso na nossa história, então a gente sabe. Historicamente, em tese, a gente teria que ter mais consciência. Mas esse governo quer fazer exatamente o oposto: dar meia-volta e voltar para um lugar horrível da história.

Trump é mais um sintoma do nosso sistema político e não representa a maioria de nossas visões.

O primeiro mandato de Trump está terminando. Como você avalia, de maneira geral, esses últimos quatro anos de governo republicano?

Acho que a questão está para além de ser um governo republicano. Acho que Trump é uma figura política muito particular. Ele agiu de forma unilateral em diversas questões, com apelo emocional, e demonstrou que é incapaz e está disposto a fazer esforços muito assustadores.

Na semana passada, Donald Trump falou para quatro das congressistas mais populares dos Estados Unidos "voltarem para o país de onde vieram". Três delas nasceram nos EUA... Não fez o menor sentido, mas mostra como ele não tem a menor vergonha de ser racista. O que ele disse foi a coisa mais racista que eu já ouvi um político dizer na minha vida. Nunca vi, nos Estados Unidos, um político dizer uma coisa tão descaradamente racista. E essa pessoa é o presidente dos Estados Unidos. É inacreditável, é motivo para impeachment. Ele não poderia mais ser presidente. Ele já nem deveria ser presidente antes [risos], mas, a essa altura, está claro.

O desejo de atacar essas mulheres que expressam valores progressistas, que têm popularidade em diversas comunidades, categorias, gêneros, é uma forma de distrair as pessoas dos problemas reais e criar uma capa que permite os ataques reais, violentos.

Para mim, é claro que quando ele diz coisas como "volte para o país de onde veio" ou "mande essas pessoas de volta para lá" — coisas ditas por seus apoiadores —, ele sabe que está sinalizando para os indivíduos violentos da sua base para atacá-las. Essas mulheres estão sendo ameaçadas de morte. Elas já são ameaçadas pela internet o tempo todo, mas agora isso aumentou por causa do que ele disse e fez. 

Os Estados Unidos estão em uma situação bastante delicada. Eu temo muito que a nossa democracia — o que sobrou da nossa democracia — esteja em frangalhos e sendo atacada pelo presidente dos EUA.

Qual sua expectativa para as eleições de 2020?

Acho que as forças progressistas terão de se unir. Pessoas com consciência terão de se unir e apresentar uma visão mais contundente sobre o que queremos e que pautas funcionarão para nós. E terão que priorizar as experiências e a liderança de mulheres negras, especificamente, para entendermos o que está acontecendo para aquelas pessoas entre nós que estão na batalha diária, todo dia tentando costurar os farrapos do que sobrou dessa democracia. Esse trabalho está sendo feito por mulheres negras.

Minha esperança é que as pessoas do Partido Democrata, mas também pessoas que estão criando outros tipos de partido — porque existem outros para além do Republicano e o Democrata —, tratarão com seriedade a liderança das mulheres negras, das conselheiras negras que atuam dentro de suas campanhas, para termos alguma chance nessa luta para eleger alguém que mereça vencer na corrida em 2020.

A Netflix lançou um seriado, Olhos que condenam, que foi muito elogiado e muito bem recebido aqui no Brasil. A discussão sobre seletividade penal evoluiu nos EUA depois dessa série?

Sim, graças ao trabalho de Ava DuVernay e dos irmãos corajosos dos cinco meninos do Central Park — que ficaram conhecidos como os "cinco exonerados". O trabalho deles tem muita força e é muito contundente. A série conseguiu chamar mais atenção para como o racismo no sistema criminal atropela a população negra, e ponto final. Jovens negros, todas as pessoas que são presas e acusadas de crimes que não cometeram, pessoas que morrem na cadeia por crimes que não cometeram. Felizmente, a série ilustra mais a injustiça do sistema.

Também há pessoas que já atuavam antes para além do filme e estão usando isso como uma oportunidade para dialogar e mostrar mais isso para quem está disposto a agir.

Faz mais ou menos um mês que a série foi lançada. Eu tenho esperança de ver cada vez mais trabalhos sendo feitos como resultado da série. Isso precisa acontecer.

As pessoas negras representam 14% da população dos Estados Unidos e 40% da população carcerária. É inacreditável. É irracional. E não deveria ser assim. E os EUA têm a maior população carcerária entre os chamados "países desenvolvidos". Então, isso faz parte do negócio, da estratégia do país prender pessoas, principalmente pessoas negras, tirá-las de suas comunidades e do mercado de trabalho, de seus entes queridos. Isso causa mais dano emocional, material, financeiro para a comunidade negra. É mais uma forma de manter a opressão sobre a nossa comunidade. E nós precisamos combater isso.

O debate racial levanta questões diferentes em lugares diferentes, como nos EUA e no Brasil, mas o Black Lives Matter se transformou em um movimento global. Em Israel, a comunidade etíope quer construir seu próprio movimento depois da morte de um jovem de 18 anos pelas forças policiais. Qual é a importância de expandir a atuação pelo mundo?

O racismo contra pessoas negras é global, porque o supremacismo branco é global. A forma como o colonialismo se desenvolveu em todo o mundo — com impacto na África, no continente americano, em todos os lugares que o colonialismo europeu alcançou — foi opressiva e criou a noção de que a branquitude é superior à negritude e a todas as pessoas não brancas. Nós sabemos que, pela história e pela forma como a história continua a se desenrolar até hoje, as vidas negras são desvalorizadas. Pessoas negras são tratadas como descartáveis em todos os contextos. Na África, no continente americano, aonde quer que você vá, o que se vê é a população negra em condições não muito boas por causa desse legado do colonialismo.

Existem movimentos sociais em diversas partes do mundo atuando há gerações. Nós sempre resistimos, sempre reagimos, sempre tentamos nos impor e exigir respeito. O que está acontecendo agora é que estamos nos conectando, porque temos mais tecnologia, temos mais condições de compartilhar mensagens de solidariedade, oferecer apoio, fazer visitas — como estou fazendo aqui no Brasil —, estamos conseguindo nos conectar de diversas formas.

Edição: Aline Scátola