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Com tiranos não combinam institutos de perdão

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Um dos protestos que lembrou os 111 mortos no Massacre do Carandiru em São Paulo, em 1992
Um dos protestos que lembrou os 111 mortos no Massacre do Carandiru em São Paulo, em 1992 - Marcelo Camargo/ABr
Resistência Já ao indulto como prêmio aos agentes de violência estatal

Por Marilia Lomanto Veloso*

A comunicação da contemporaneidade é de imediata repercussão. Sem permitir ao sujeito que fala emitir o último som do termo que quer emprestar a suas ideias, realiza-se pela linguagem entre sujeitos e traduz as coisas às quais nos referimos. 

Lembre-se aqui a “situação ideal de fala”, em Habermas, o diálogo sem coerção, que “garante ao discurso o seu papel legitimador das pretensões de validade”, ou seja, “a coação sem coerção do melhor argumento”. O sujeito que fala pretende imprimir veracidade a seu discurso e isso exige coerência entre o que diz e o que faz.

Na filosofia da linguagem de Wittgenstein, “as palavras só adquirem significado no fluxo da vida”, o que expressamos tem “diferentes funções” de acordo com o contexto em que empregamos e terminam modificando o que queremos dizer com elas. Traga-se para esse dedo de prosa entre filosofia da linguagem e tirania estatal a maneira “terra-a-terra” como Austin, em sua teoria dos atos da fala, interpretou Wittgenstein. Em síntese, o que encerra esse parágrafo com preâmbulo talvez excêntrico, para tratar de um dos temas que habita o calabouço do sistema de justiça criminal, é replicar a teoria de Austin aprimorada por um de seus discípulos, de que “o falante, ao dizer alguma coisa”, o faz [...] com a intenção de produzir no ouvinte um certo efeito”.

A filosofia da linguagem dialoga perfeitamente com o bizarro cenário político do Brasil. 

A sociedade brasileira (e do mundo) se surpreende com o terremoto verbal do presidente, subvertendo categorias, ressignificando negativamente conceitos e princípios, alimentando o medo, o ódio coletivo, as conflituosidades, esperando de quem escuta essas falas que mude o modo de entender e de traduzir as palavras ou expressões que usa em seus discursos. 

Comunicação e linguagem têm sido instrumentos para as disparatadas falas da Presidência da República e dos sujeitos escolhidos para sua equipe, com algumas figuras dispensadas da mínima qualificação intelectual, técnica, salvo o fato de serem amigos e amigas do rei, com disposição para faturar o recuo político, o engodo social, a cilada eleitoral e o soterramento das conquistas civilizatórias pela gestão principiada em 2019. 

Os discursos de Bolsonaro, para além de representativos de despreparo humano, carecem do mais elementar indício de serem um ato de fala de quem “diz alguma coisa”, sobre “algo”, com um mínimo de “sentido” e “referência”. 

Plenos de intolerância, de furor preconceituoso e de impolidez, se algum efeito produzem é no público virtual de onde arrastou votos, no ouvinte que sofre da “síndrome de encantamento” por sua incontinência linguística e pela força do conteúdo de ameaças e de promessas eivadas de vícios éticos e de constrangimento que tornaram o Brasil um país que inspira vergonha, descrédito e que se tornou objeto de escárnio por parte do mundo civilizado. 

Identificado pelas atrapalhadas e agressivas entrevistas, a expressão “isso daí” tem sido o arremate que desnuda a impossibilidade de “dizer algo” sobre seu projeto político, porque inexistente e inidôneo para essa tarefa. 

Pior que as falas, as decisões em torno de temas que desconhece ou que perversamente “modifica” o significado, por força do contexto de odiosidade política de sua gestão, espalhada “democraticamente” pela metodologia da charlatanice midiática, falsamente sustentada no discurso da liberdade de imprensa.

Padece de circunspecção o arroto presidencial na remodelagem do Indulto com que pretende premiar “policiais presos injustamente, por pressão da mídia”, defendendo a necessidade de “retaguarda jurídica” a agentes que matem em serviço.  

A indigência jurídica de Jair Bolsonaro precisaria de fôlego para garimpar pelos degraus da história e resgatar o indulto desse emaranhado de controvérsias sobre sua validade, não obstante o reconhecimento de ser, como expressa Rodrigo Ribeiro “um instituto pacificador, um ato soberano de perdão, [...] uma benevolente prerrogativa régia, um remédio para esvaziar as prisões, instrumento de política criminal, meio de atenuar penas cruéis e suspender penas capitais, uma garantia constitucional”. 

Indulto significa perdão ao condenado, desde a idade antiga, “a mais bela das prerrogativas régias”, e tem por titular de sua concessão os monarcas, se espraiando por quase todas as civilizações do mundo.  

A decisão presidencial de perdoar a barbárie do Estado opressor e violento beira a obscenidade na política criminal. 

Por um lado, quer se inserir na pretensão do homem público tornar verdade sua fala, revelar coerência entre “o que diz e o que faz”, pactuando com um tolo programa de governo que garante às pessoas andarem armadas, insiste na redução da maioridade penal, dentre outros artifícios de afronta à política de direitos humanos. 

Por outro lado, evidencia contradição incurável, quando, no mesmo desenxabido esboço do fazer no governo em disputa, advoga posição adversária da progressão de penas e das saídas temporárias de presos em datas especiais.

Na “turnê” maquiavélica para a escolha dos “contemplados” pelo indulto, os Massacres de Carandiru e de Eldorado de Carajás fazem parte do roteiro, ambos de repercussão internacional por serem arenas sangrentas da violência e da ferocidade com que a Polícia Militar executou 111 presos, em São Paulo e 19 Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Eldorado do Carajás.

As diversas narrativas que resultaram dos dois episódios deslustram a história de qualquer nação. O Massacre do Carandiru tirou a vida de sujeitos sob a proteção do Estado. Eldorado do Carajás brutalizou um enfrentamento desigual entre armas dos policiais e ferramentas de trabalho dos Sem Terra.  

Em 2018, durante campanha eleitoral, Jair Bolsonaro esgrimiu que “Quem tinha que estar preso era o pessoal do MST, gente canalha e vagabunda”. Cumpre agora sua bandeira de exorcizar os mortos e premiar os que mataram. 

Indultar é um ato de extrema complacência. Não é um instrumento de luxuria fascista. Rui Barbosa já avisava: “Todos os Chefes de Estado exercem essa função melindrosíssima com o sentimento de uma grande responsabilidade, cercando-se de todas as cautelas para não a converter em valhacouto dos maus e escândalo dos bons”. Sigamos Rui.  

Nenhum poder mais augusto confiou a nossa lei fundamental ao presidente do que o indulto. E' a sua collaboração na justiça. 
Rui Barbosa (Ruínas de um governo)

*Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, Mestra e Doutora em Direito pela PUC-SP, professora aposentada da UEFS, membro da CDH da OAB BA, da RENAP, da ABJD e Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos. 

Edição: Daniela Stefano