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Análise: saída de Bolton é positiva, mas política externa dos EUA seguirá beligerante

Em entrevista ao The Real News, analista diz que falta quem enfrente “o monstro do gasto militar e da máquina de guerra”

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Trump anunciou no Twitter a demissão de Bolton na terça-feira (10); em seguida, Bolton declarou que foi ele quem pediu demissão
Trump anunciou no Twitter a demissão de Bolton na terça-feira (10); em seguida, Bolton declarou que foi ele quem pediu demissão - Foto: Brendan Smialowski/AFP

A saída do assessor de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Bolton, pode ser entendida como “uma das poucas notícias positivas vindas da Casa Branca nos últimos três anos”. Mas não há, no horizonte, ninguém que defenda uma nova política externa para reduzir a ofensiva militarista norte-americana no mundo e enfrentar “o monstro do orçamento militar e da máquina de fazer guerra de Washington”. Essa é a avaliação de Matthew Hoh, ex-fuzileiro naval e membro sênior do instituto de pesquisa e advocacy Center for International Policy. “Os Estados Unidos não querem paz. Querem vitória.”

Em entrevista ao The Real News, Hoh falou sobre os possíveis sentidos da saída de John Bolton para a política interna e externa norte-americana e as disputas com setores do governo e o próprio Donald Trump. Falou também sobre como a visão beligerante de Bolton representa o status quo da política dos Estados Unidos, compartilhada inclusive por políticos do Partido Democrata.

Hoh é veterano da Guerra do Iraque e, em 2009, pediu demissão do cargo que ocupava no Departamento de Estado no Afeganistão por se opor à escalada ofensiva da gestão de Barack Obama no país. Na entrevista ao repórter Jaisal Noor, ele sintetizou a abordagem do agora ex-assessor de Segurança Nacional afirmando que “não havia guerra que John Bolton não gostasse”.

“Uma pessoa próxima de Bolton, ao comentar a saída dele, afirmou que, nos quase 18 meses em que ele atuou com o presidente Trump, ‘nenhum acordo ruim foi feito’ com a Síria, o Irã, a Rússia ou a China’”, relata Hoh. “Mesmo saindo, aqueles que o apoiam continuam defendendo essa linha de que, de algum modo, John Bolton representa uma forma realista de política externa. E, infelizmente, isso também ecoa entre democratas no Congresso [dos EUA],” acrescenta, “que afirmam que isso [a demissão] expõe uma crise na Casa Branca, e que nós precisamos de uma mão firme na política externa.

Bolton é conhecido como uma das figuras mais belicistas do governo de Donald Trump. O republicano ultraconservador defende a guerra no Iraque e “mudanças de regime” em países como a Venezuela, Cuba, a Síria e a Líbia, além de se opor a negociações diplomáticas com o líder coreano Kim Jong-un, o Talibã no Afeganistão, e as relações com o Irã. Desde que assumiu o cargo de assessor no governo Trump, em abril de 2018, acumulou tensões com a própria administração, inclusive com o secretário de Estado Mike Pompeo. Ao mesmo tempo, Hoh acrescenta, há quem defenda a postura “linha dura” dentro e fora do governo.

Segundo Hoh, enquanto nos EUA Bolton encontrava apoio certo no seu discurso beligerante, “para o resto do mundo, ele representava os piores aspectos da política externa militarista dos EUA”. O analista avalia que a saída do republicano do cargo é um desdobramento positivo e lamenta que alguns democratas estejam se aproveitando do fato para criticar o presidente estadunidense. “Imagino que algumas pessoas estão tão irritadas com Donald Trump que esqueceram dos próprios princípios, e esqueceram o que os Estados Unidos estão fazendo em outros países, os perigos e os possíveis perigos envolvidos no que estão fazendo”, critica, citando os senadores democratas Chris Murphy, Chuck Schumer e Mark Warren. 

Substituto

Entre os nomes que Hoh cogita que podem substituir Bolton está o general aposentado e colaborador da Fox News, Jack Keane, a quem o analista caracteriza como “tão belicista quanto John Bolton”. “Mas também ouvi que o coronel Douglas Macgregor, coronel aposentado do exército que é a antítese disso em muitos sentidos, apoia uma política externa mais contida, não é a favor de uma guerra com o Irã e é a favor de negociar com a Coreia do Norte, também está na disputa”.

Hoh acrescenta que há outros sendo considerados, “mas nunca se sabe quem são aqueles que não estão na discussão ou não tiveram seus nomes vazados para o The Washington Post ou para o Congresso”.

Trump declarou que deve anunciar o novo assessor de Segurança Nacional -- o quarto a ocupar o cargo desde o início do mandato do republicano -- até a próxima semana. Até lá, Charles Kupperman, acusado de ter ligações com grupos islamofóbicos, atuará como assessor interino.

Afeganistão

Perguntado sobre o cancelamento de reuniões secretas com o Talibã para negociar um acordo de paz no Afeganistão, Hoh diz que acredita que as divergências entre Bolton e o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, contribuíram para o fim da atuação do assessor no governo Trump. Bolton era contrário ao diálogo e há rumores de que parte da reação negativa aos encontros foi impulsionada pelo próprio ex-assessor de Segurança Nacional.

“Mas há relatos de alguns meses atrás de que Bolton poderia ser demitido. Há meses já havia relatos de que ele não se dava bem e não estava falando com o chefe de gabinete da Casa Branca, Mick Mulvaney”, avalia Hoh na entrevista ao The Real News. “Como todo mundo sabe, em qualquer organização que seja, se você não se dá bem com o chefe de gabinete, as coisas não vão dar certo. Com Pompeo, acho que também havia relatos de conflitos, apesar de os dois terem ideologias semelhantes em termos do que querem ver os Estados Unidos fazendo no mundo”.

Hoh relembra que os Estados Unidos financiaram grupos islâmicos rebeldes no Afeganistão desde a década de 1970 como “isca” para a invasão da União Soviética, e continuaram a financiá-los “porque os Estados Unidos não querem paz, querem vitória”. Foi o que acabou levando à morte de centenas de milhares de pessoas, prolongando a guerra e impulsionando a criação do Talibã, avalia o analista. “Mesmo na gestão Bush ou Obama, nunca houve intenção de negociar e de chegar a um acordo de paz. A questão sempre foi ganhar.”

Hoh, que renunciou, em 2009, ao cargo que ocupava no Departamento de Estado americano em protesto à política dos EUA no Afeganistão, afirmou que ficou “decepcionado com o fracasso do diálogo” entre o governo Trump e grupos insurgentes no país. “As negociações não eram perfeitas, de modo algum. Ainda havia muito a ser feito, mas seria a base de um acordo negociado para retirar as forças americanas em troca de um compromisso do Talibã com um cessar-fogo limitado, para depois avançar a um novo estágio de diálogo, mas internamente no Afeganistão, entre o governo afegão e o Talibã. Acho que isso era muito importante. Foi a primeira vez em décadas que isso aconteceu”, destaca.

Contando sua experiência no governo dos EUA, Hoh afirma que os funcionários do Departamento de Estado de seu país eram orientados a não se envolver em negociações com os insurgentes, mesmo que fossem procurados para o diálogo. Durante o governo Obama, a guerra foi intensificada para buscar uma vitória política -- que falhou -- e, agora, Hoh acredita que “Trump estava tentando intensificar a guerra” também para forçar as negociações de paz, “pensando na reeleição, na promessa de campanha de ganhar a guerra no Afeganistão”.

Mas a estratégia teria sido boicotada “por Bolton e grande parte da máquina de fazer guerra em Washington, porque a ideia dos Estados Unidos se retirarem de um conflito e ajudaram a chegar a um acordo de paz em algum lugar do mundo vai contra o complexo industrial militar e tudo que ele sustenta”.

Na avaliação de Hoh, a demissão de Bolton tem relação com o fracasso dessa tentativa, pois “todo mundo sabe que a última coisa que se pode fazer é prejudicar a imagem de Donald Trump ou se mostrar desleal ou parecer que se sabe mais que ele [dentro do governo]. Acho que foi por isso que Bolton foi demitido. Mesmo que estivesse na corda bamba, com certeza esse foi o último passo em falso que ele daria”, afirmou.

Pré-candidatos e a indústria da guerra

Sobre as perspectivas de mudança na política externa dos EUA com as eleições de 2020, Hoh é crítico à grande maioria dos possíveis nomes a concorrer no pleito, recorrendo ao histórico dos parlamentares com relação às políticas militaristas do país. “Bernie Sanders tem o melhor histórico segundo a Peace Action, que acompanha esses números, em termos de votar contra o orçamento do Departamento de Defesa. Mas também apoiou várias outras questões. Ele é a favor da intervenção na Venezuela em certa medida. Foi a favor do programa do caça F-35 de um trilhão de dólares. Então ele não é excelente”, avaliou.

O analista de política internacional acrescentou que, apesar da proposta positiva de Sanders para a pauta ambiental, “ele quase não fala sobre o exército, que é o maior poluidor do mundo. Não pensa em rever a prioridade do orçamento da Defesa”.

Outras parlamentares democratas citadas por Hoh que também apresentam histórico problemático no sentido de não enfrentar a indústria e a política armamentista dos EUA são Tulsi Gabbard e Elizabeth Warren. A única exceção que ele vê é a também democrata Marianne Williamson.

“Então acredito que não temos ninguém que realmente defenda uma nova política externa para os EUA, principalmente de modo a reduzir a militarização e acabar com essas guerras”, finaliza.

Edição: Aline Scátola