Coluna

Devastação acima de tudo, agronegócio acima de todos

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Brigada combate fogo em mata de Rondônia no início de setembro
Brigada combate fogo em mata de Rondônia no início de setembro - OP Verde Brasil/17
Integrar desenvolvimento econômico e social às questões ambientais é estratégico

O ano é 2015. Um grande cineasta brasileiro decide fazer um filme futurista sobre seu país, talvez do ano de 2019. Primeira cena: Centro de São Paulo. Pessoas andando apressadas, outras feito zumbis frente a seus smartphones, trânsito caótico, entregadores de comida dos novos aplicativos ziguezagueando entre pedestres e carros, turistas, e claro, crianças de mãos dadas aos adultos, observando atentas a loucura do mundo e uma ligeira mudança no céu, que logo ficará nítida a todos.

Como num cenário apocalíptico, o dia se faz noite. Do céu, então, começa a cair uma chuva intensa, com gotas negras por toda a cidade. Seria o fim do mundo e finalmente Nostradamus acertou a profecia? Seria o início da Terceira Guerra Mundial, em que começaram explosões e fomos todos pegos de surpresa? Não. Trata-se do “Dia do Fogo”, um plano organizado por grandes fazendeiros e grileiros da região amazônica, no Norte do país, com o objetivo de queimar a floresta para expandir sua exploração e demostrar apoio ao governo Bolsonaro. A escuridão em São Paulo e a chuva densa era tão somente o resultado das grandes queimadas que assombrariam o mundo dias depois.

Seria mais um filme sobre a distopia humana, sobre o qual críticos e amantes do cinema diriam ser irreal e indicariam para ser categorizado na lista de filmes de ficção científica (SCI-FI). Estamos em 2019 e, embora a tentativa de descrever a realidade beire a ficção, nos deparamos com uma realidade tão devastadora que um documentário não daria tamanha conta de analisar a conjuntura brasileira desde o Golpe de 2016.

A Amazônia em chamas, o “pulmão do mundo” desfalecendo é um dos exemplos mais reais e mórbidos das consequências das políticas de austeridade representadas na Emenda do Teto dos Gastos – EC 95/2016, que estabelece teto dos gastos públicos dentro da inflação do ano anterior.

Estima-se que o Brasil é responsável por abrigar 20% de toda a biodiversidade mundial. Além de ter a maior diversidade de plantas e mamíferos do planeta. Não por acaso, a Constituição Federal de 1988 prevê, no Artigo 225, que é direito dos brasileiros a garantia da proteção ambiental através do “meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo”.

Pela riqueza ambiental do país, esse direito passa a ter caráter fundamental não somente para o povo brasileiro, mas para todos os povos do mundo. Ele é garantido não apenas pela conservação e preservação do ecossistema, como também pela proteção ao desenvolvimento dos povos das florestas em sua exploração sustentável e por políticas de estímulo à produção e permanência do pequeno agricultor, com programas que fortaleçam a produção local e a soberania alimentar do país.

A Emenda do Teto dos Gastos é a ruptura dos avanços conquistados pela luta do povo garantidos na Constituição. Ela já impacta no desmonte das políticas ambientais e da agricultura camponesa, principais responsáveis pela preservação ambiental.

A necessidade do capitalismo global reiniciar um novo ciclo de acumulação para sair da crise prolongada é incompatível com esses direitos estabelecidos. As grandes corporações multinacionais, em busca de recompor seus lucros, amplia a exploração dos bens comuns da natureza almeja o controle total desses sem qualquer amarra institucional. Outra medida de ampliação dos lucros é o avanço do modelo do agronegócio, mantendo o domínio sobre vastas áreas do país, com o aumento contínuo da produção de commodities, como a soja, para abastecer o mercado externo.

Para isso, as políticas de Temer e agora Bolsonaro foram, em linha crescente, trocando as riquezas ambientais brasileiras por mais devastação. Ambos sustentados pelo agronegócio e os banqueiros, as reais forças políticas e econômicas que defendem esses planos – substituindo conservação e desenvolvimento nacional por latifundiários e entrega da Amazônia para estrangeiros, com mudanças nas leis para beneficiar o agronegócio no acesso à terra, regularizando terras griladas e reduzindo todo o corpo técnico dos principais institutos e agências de fiscalização ambiental (IBAMA e o INPE, entre outros). A queimada na Amazônia é muito significativa para entender essa relação, pois deriva de uma política ambiental que se choca com a Constituição.

É explícito que os cortes tendem a fragilizar ainda mais a fiscalização e o licenciamento em um setor que já tinha dificuldades, tendendo a mais devastação, aumentando as chances de desastres ambientais (como temos visto na redução de capacidade ao combate e manejo de fogo). Já em abril, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, anunciou o corte de 24% dos recursos do Ibama para 2019, o que na prática está inviabilizando a fiscalização do desmatamento na Amazônia.

O golpe e suas políticas, como a Emenda do Teto dos Gastos, também tem por objetivo fortalecer o modelo agrícola do agronegócio contra o modelo agroecológico, ao diminuir os recursos dos diversos programas para a agricultura camponesa, desde assistência técnica, crédito fundiário, compras de alimentos até a reforma agrária. Se o Orçamento para essa área já era mínimo e escasso, agora se torna nulo diante do poder do agronegócio. Se os cortes nos programas para a agricultura camponesa são facilmente observáveis, quando se trata do financiamento ao agronegócio a conversa é diferente, com o orçamento do plano Safra crescendo ano após ano. Outro resultado não tão divulgado e explícito, mas merecedor de um capítulo em um filme, é o recrudescimento da violência no campo, com os índices de assassinatos de lideranças crescendo de 2015 até hoje.

Os desafios são vários, mas devem ter como chave o entendimento de que nossa batalha (sim, temos nesse enredo de cinema uma luta entre contrários) se insere em um modelo contrário aos interesses dos banqueiros e o agronegócio, junto aos que querem entregar o nosso país a interesses externos. A defesa da soberania nacional e popular é central e traz consigo diversas bandeiras como cuidar do ecossistema brasileiro, que passa em grande medida por exigir o cumprimento da Constituição Federal. O meio ambiente deve ser pensado não somente no âmbito da conservação, mas fundamentalmente na capacidade de equilibrar desenvolvimento e soberania de um povo com a questão ambiental.

Integrar o crescimento econômico e resolução dos problemas sociais com o meio ambiente faz parte de escolhas políticas estratégicas. Privilegiar a agricultura camponesa, em contrapartida ao agronegócio, é uma destas escolhas. Os impactos das políticas do agronegócio atingem a todos, desde a destruição das florestas até o alimento que chega à mesa nas cidades, envenenado com novos agrotóxicos que são liberados a cada dia pelo governo.

O povo brasileiro é marcado por resistência e resiliência, tendo capacidade concreta de figurar entre os principais protagonistas de filmes, sejam eles distópicos ou não. Não são grandes heróis e heroínas com superpoderes vindos de outro planeta. São o acúmulo de fazeres populares, cultura, tecnologia, resistência e luta. Os bons filmes são assim, com protagonistas complexos, cheios de contradições, mas firmes em seus objetivos.

O futuro parece incerto, o céu traz sinais dessa incerteza, mas somos e temos ao nosso lado os melhores protagonistas, o povo brasileiro, para fazer um final digno de grandes premiações.

Este artigo íntegra uma série produzida a partir do Curso Economia do Golpe e Alternativas, organizado pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e Projeto Brasil Popular. Confira no Brasil de Fato!

Elaboração: Lauro Carvalho e André Cardoso

Edição: João Paulo Soares