AMÉRICA LATINA

As FARC não voltarão à luta armada, afirmam dirigentes

Rodrigo Granda e Carlos Antonio Lozada denunciam sabotagem do governo colombiano ao Acordo de Paz assinado em 2016

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Antiga guerrilha virou partido político: a Força Alternativa Revolucionária do Comum
Antiga guerrilha virou partido político: a Força Alternativa Revolucionária do Comum - Foto: Raul Arboleda/AFP

A imprensa colombiana e internacional deram amplo destaque a um vídeo tornado público, no dia 29 de agosto, por dissidentes das FARC. O grupo anunciava o retorno às armas, liderado por Ivan Márquez, ironicamente o chefe da bancada guerrilheira nas negociações de paz em Havana, entre 2012 e 2016. Uniformizados e armados, um punhado de rebeldes declarava que o Estado colombiano tinha traído o pacto firmado há três anos e convocava novo ciclo de insurgência.

O alvoroço foi enorme. O presidente Ivan Duque, do Centro Democrático, principal agremiação de direita, logo agarrou a oportunidade e se lançou contra muitos dos fundamentos do Acordo de Paz, além de acusar o governo venezuelano, de Nicolás Maduro, como suposto cúmplice da guerrilha rediviva.

Começava um momento difícil para a direção das FARC, rebatizadas Força Alternativa Revolucionária do Comum, partido político cujo símbolo é uma rosa vermelha abraçando estrela da mesma cor. Muitos queriam saber se Márquez e seus seguidores estavam por conta própria ou se toda a antiga guerrilha, mais cedo ou mais tarde, voltaria às montanhas.

“A guerra terminou”, respondeu Rodrigo Granda, histórico chanceler das FARC, à reportagem de Opera Mundi. “Nossa transformação em movimento político é escolha enraizada, determinada pela época histórica em que vivemos.”

Responsável há décadas pelas relações internacionais da organização, não poupa seus antigos correligionários. “A decisão deles é pessoal e devem assumir suas responsabilidades”, ressalta. “Colocaram-se fora do partido e resolveram seguir rumo próprio, com o qual não temos acordo.”


Granda: 'a guerra terminou' (Carmenza Castillo/NC Producciones)

Não é uma posição fácil. Mais de setecentos líderes sociais assassinados, aos quais se soma a morte violenta de quase duzentos ex-guerrilheiros, pavimentam um caminho de frustração e medo. A desesperança também cresce com a lentidão da reincorporação econômica e os sucessivos ataques do governo ao marco jurídico da transição para a paz. 

Nem Granda escapa da escalada agressiva dos setores mais direitistas. Fizeram circular a informação de que o dirigente fariano teria ido se encontrar com Márquez na Venezuela, para tramar a retomada unificada da mobilização guerreira.

Aos 70 anos, de fala pausada pontilhada por ironias, é um sobrevivente de sucessivos acordos de paz. O mais trágico desses foi em 1984, quando as FARC assinaram armistício com o presidente conservador Belisario Betancur (1982-1986) e lideraram a formação da União Patriótica, junto com outras correntes de esquerda, trocando a política das armas pelas armas da política. 

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Em pouco menos de dois anos, cerca de 5.000 militantes desse partido tiveram a vida ceifada, incluindo dois candidatos a presidente da República. Não restou outra saída, aos guerrilheiros dispostos a trocar o fuzil pela voto, além do regresso à rebelião montanhesa.

“Até um cego pode ver que o governo Duque não cumpre o acordo em sua integralidade”, afirma Granda. “Sua intenção é acabar com a institucionalidade surgida em Havana e nos forçar a sair do processo de paz. Não cairemos nessa provocação: a via da guerra, hoje, é favorável à direita e às velhas oligarquias.”

Refere-se ao enorme desequilíbrio ocorrido a partir dos anos 2000, quando a adoção do Plano Colômbia, aliança bélica com os Estados Unidos, multiplicou o potencial de fogo e tecnológico do exército, tornando estrategicamente inviável a luta guerrilheira. Criou-se o cenário que levaria aos diálogos em Cuba: nenhum dos lados, a curto ou médio prazo, poderia trabalhar com a hipótese de uma vitória militar.

O partido FARC, segundo Granda, confia no potencial mobilizador do Acordo de Paz, como alternativa a uma guerra civil que matou quase trezentos mil colombianos, deslocando outros sete milhões. “Não fizemos um pacto para a guerrilha, mas para construir uma solução de fundo aos grandes problemas do povo colombiano, a começar pela concentração de terras e a podridão do sistema político.”

Apesar da violência, registra que o fim do conflito armado trouxe, por si só, benefícios inegáveis. “Nunca uma eleição presidencial foi tão tranquila como a de 2018, por exemplo”, aponta. “E jamais a esquerda teve um resultado eleitoral tão positivo, com os oito milhões de votos obtidos por Gustavo Petro no segundo turno contra Duque.” Ex-prefeito de Bogotá, o oponente derrotado pelo Centro Democrático, aliás, também foi guerrilheiro, tendo pertencido ao Movimento 19 de Abril (M-19), desmobilizado no início dos anos 90.


Para Lozada, violência é 'fenômeno antigo, estrutural' (Carmenza Castillo/NC Producciones)

Granda denuncia, além de Duque, parte do comando militar. Tanto o governo quanto vários generais estariam fazendo de tudo para evitar que oficiais compareçam à Jurisdição Especial para a Paz (JEP) e revelem os segredos da guerra suja contra as FARC e outros grupos rebeldes. “Mesmo assim, quase dois mil militares estão dispostos a testemunhar, e muitos dos líderes paramilitares”, celebra.

No último dia 23 de setembro, quase todo o antigo estado-maior das FARC compareceu à JEP para depor no caso 001, que diz respeito aos sequestros realizados durante o conflito. Reconheceram delitos cometidos, pediram perdão às vítimas e se colocaram à disposição para medidas de reparação. 

Essa mesma obrigação têm militares e paramilitares, segundo o Acordo de Paz. São responsáveis, afinal, por quatro ou cinco vezes mais mortes que toda a guerrilha somada. Incluindo o drama dos falsos positivos, quando inocentes – muitas vezes escolhidos a esmo –  eram assassinados e identificados como insurgentes, pois cadáveres de combatentes eram passaporte para promoções e benefícios.

Carlos Antonio Lozada, antigo nome de guerra do atual senador Julián Gallo Cubillos, considera que o desrespeito aos paradigmas judiciais de transição alimenta e reproduz a lógica da violência. “Esse é um fenômeno antigo, estrutural”, salienta. “O regime político colombiano se sustenta, contraditoriamente, na retração da presença do Estado nos territórios. Terceiriza suas funções, criando um poder paramilitar, controlado por latifundiários, máfias políticas regionais e narcotraficantes, que naturalizam os assassinatos como instrumentos para defesa dos seus interesses.” 

As FARC cumpriam o papel, de acordo com o senador, de proteger o campesinato contra a violência clandestina dos paramilitares, normalmente aliada ao exército ou alugada para tarefas de contra-insurgência. “Quando saímos dos territórios, depois do Acordo de Paz, esses grupos ilegais passaram a atuar livremente, pois o governo Duque se omite e lava as mãos”, constata. “Entre 1984-1986, na época da União Patriótica, o paramilitarismo era um braço do exército, hoje se subordina diretamente a latifundiários e narcotraficantes que permanecem protegidos pelo Estado.”

Lozada nasceu em Bogotá, filho de um líder sindical. Aos 15 anos, em 1976, ingressou na Juventude Comunista e foi preso por um mês durante as grandes mobilizações populares de 1977. No ano seguinte, se juntou às FARC, sem sequer completar o ensino médio. Está convencido, porém, que as condições políticas atuais são muito diferentes.

“Está se formando um bloco de forças que pode impedir a política de guerra do governo Duque e defender a paz”, afirma com esperança. “É um movimento crescente, amplo, que se constitui na única alternativa viável para derrotar os conservadores e levar ao governo uma coalizão capaz de cumprir plenamente o programa de mudanças detalhado no acordo de Havana.”

O senador Julian Gallo somente vê futuro para sua agremiação sob essa perspectiva. “Não é fácil a transição de uma força guerrilheira e camponesa para um partido nacional inserido em um bloco alternativo que disputa o poder pelo voto, mas não há outra saída”, diz. “Sofremos para nos adaptar à vida civil, somos vítimas de violência e contra nós pesam estigmas de décadas. Não será fácil, nem rápido, mas estamos determinados a seguir por essa trilha.”

A entrevista para Opera Mundi acaba. O ex-comandante guerrilheiro se levanta e cumprimenta o repórter. Tem pressa para uma reunião no Senado, seu campo de batalha há um ano. “Na montanha era tudo mais simples e transparente”, confessa com um sorriso tímido no rosto. “Mas estamos aprendendo.”

Edição: Opera Mundi