História

A marcha da ousadia popular completa 20 anos

Em 1999, milhares de pessoas marcharam do Rio até Brasília para pensar um novo projeto de país

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Marcha foi uma resposta ao neoliberalismo de FHC
Marcha foi uma resposta ao neoliberalismo de FHC - Foto: Douglas Mansur

No dia 26 de julho de 1999, cerca de 1.100 homens e mulheres saíram em caminhada do Rio de Janeiro com destino a Brasília, no que foi chamada de Marcha Popular pelo Brasil. Eles percorreram mais de 1.600 quilômetros, cruzando os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goiás, até adentrarem na capital do país, exatos 72 dias depois da partida, no dia 7 de outubro.

A marcha foi uma iniciativa articulada pela Consulta Popular, organização ligada aos movimentos do campo, que tinha apenas dois anos de existência, e contou com o envolvimento de militantes vinculados a diversas outras organizações populares, principalmente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

"A ideia da Marcha era desencadear a importância da questão de um projeto popular para o Brasil. Por isso que, simbolicamente, fez questão de sair da sede da Petrobras, no Rio de Janeiro, e veja como isso é importante agora também, às vésperas da entrega do nosso pré-sal às multinacionais", explica o advogado Ricardo Gebrim, integrante da Consulta Popular que participou da construção da marcha.

Ao chegarem em Brasília, milhares de outras pessoas se somaram à caravana. A Marcha Popular então deu lugar à Assembleia dos Lutadores e Lutadoras do Povo, que durou mais dois dias, terminando em 10 de outubro, com a participação de 5 mil pessoas. Foi na Assembleia que se aprovou a “Carta aos lutadores do povo”, dando ao projeto popular cinco eixos principais: soberania, solidariedade, desenvolvimento, sustentabilidade e democracia popular. Anos mais tarde, a Consulta Popular incluiria também a bandeira do feminismo entre os eixos principais do projeto popular.

Atualidade

O ano de 1999 guarda algumas semelhanças com o atual momento do país. O governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), já no seu segundo mandato, enfrentava uma forte crise econômica e tentava avançar com uma agenda neoliberal de privatizações e corte de direitos.

"O momento que a gente vivia era de aprofundamento das políticas neoliberais e as consequências dessa política para a população eram muito sensíveis, desemprego e arrocho salarial eram tônicas constantes que a gente ouvia na cidade", afirma Flávio José Vivia, militante da Via Campesina que atuou na coordenação de alimentação durante o percurso da marcha.

Ricardo Gebrim traça um paralelo entre as conjunturas que separam esses 20 anos, ao reforçar que a ofensiva neoliberal foi retomada. "A marcha tem alguns elementos muito atuais. O governo FHC foi a primeira ofensiva neoliberal, porque agora estamos enfrentando uma segunda, que é muito mais profunda, e que tenta completar e esgotar o conjunto de privatizações e desmonte de direitos que aquela primeira ofensiva não conseguiu".

Contato com o povo e pedagogia do exemplo

Por onde a marcha passava, ao longo do seu percurso até Brasília, os marchantes se envolviam com as comunidades locais, por meio de reuniões, aulas públicas, participação e atos religiosos e cívicos. Esse processo de aproximação e desenvolvimento de um trabalho pedagógico foi o aspecto mais transformador, na avaliação de quem viveu essa experiência.

"Esse trabalho de formação, de articulação, de agitação nas cidades, nós assumimos como uma prioridade. O povo, especialmente nos bairros, foi muito receptivo a esse modo de fazer o trabalho. A marcha teve uma receptividade muito grande, não havia um preconceito, embora que na imprensa tenha ficado muito escondido a realização da marcha, mas nas cidades era muito receptivo", aponta Flávio Vivian.

Ao sair do Rio de Janeiro, a organização da marcha só contava com provisões alimentícias e de bens essenciais para 15 dias. Foi a solidariedade do povo que garantiu o prosseguimento do grupo. "A gente montava um cronograma de onde a marcha ia chegar e parar. Realmente, a recepção da marcha foi estrondosa. O pessoal levava um quilo de arroz [para doar], todo mundo ia para a beira da estrada ver a marcha passando”, lembra Diva Braga, da direção nacional da Consulta Popular.

Ousar fazer

Como legado, a marcha deixou a pedagogia do exemplo, materializada na entrega e abnegação dos seus marchantes, que emocionou o povo nas cidades. Para Diva Braga, naquela época também havia uma sensação de vazio na esquerda, por conta da derrota ideológica do socialismo.

"Quem militava na década de 1990 tinha a sensação de que lutava contra a corrente, porque tinha essa ideologia de que a experiência do socialismo estava derrotada. Havia esse sentimento do esvaziamento do sentido de um projeto de esquerda, como acontece hoje. A Marcha funcionou para dar um sentido e articular um campo popular da esquerda", analisa.

O fato da marcha ter sido uma resposta diferente na luta contra a exploração também marcou o período. "A esquerda ousou fazer. Isso foi um ato de ousadia, e é preciso trazer à memória essa capacidade de reação, de fazer algo novo. Sair fazendo as mesmas escolhas não podem funcionar, não dá pra responder a uma situação nova fazendo a mesma coisa. A marcha pode ser esse exemplo, que é mais que um exemplo para o povo, mas um exemplo para as forças organizadas, que estejam juntas", completa Diva.

Edição: Joana Tavares