Heliópolis

Maior comunidade do Brasil se torna referência em educação após escola derrubar muros

Heliópolis, em São Paulo, ganhou o estigma de "Bairro Educador" após a escola Campos Salles revolucionar o ensino

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Escola Campos Salles se baseou nos métodos da Escola da Ponte, fundada na cidade de Porto, em Portugal.
Escola Campos Salles se baseou nos métodos da Escola da Ponte, fundada na cidade de Porto, em Portugal. - José Bernardes

Um projeto escolar ousado, um diretor corajoso e uma comunidade que queria se afastar do estigma da violência. Essa foi a combinação que permitiu a Heliópolis, uma das maiores comunidades da América Latina, se tornar referência e ganhar a alcunha de “Bairro Educador”.

A ponta de lança desse projeto é a Escola Municipal de Ensino Fundamental Campos Salles, que atende alunos do primeiro ao nono ano. Localizada dentro do bairro, a Campos Salles teve seus muros derrubados por iniciativa do ex-diretor Braz Rodrigues Nogueira, até então, um professor que lecionava em escolas do Estado e do Município de São Paulo, até ser aprovado, em 1995, em um concurso para assumir um cargo de Diretor Escolar.

Ao perceber que os computadores do laboratório da Campos Salles - que sequer haviam sido utilizados - foram roubados, em 2002, Nogueira se desesperou. Conseguiu resgatá-los (o ex-diretor conta ter sido abordado pelos possíveis autores do furto nas ruas de Heliópolis) e percebeu que os muros, que antes serviam para proteger a escola, estavam afastando a comunidade daquele ambiente.

“Aí a gente deu uma resposta para eles, nós tiramos os muros. Mas a gente não estava preocupado só com esses muros, mas com os muros que as pessoas têm na cabeça”, conta.

A verdadeira revolução

Mas a revolução pedagógica que colocou a Escola Municipal no mapa da educação ainda estava por vir.

A derrubada dos muros externos não havia surtido o efeito necessário. Por isso, Braz convenceu professores e comunidade a apostar em um projeto de integração com a comunidade. Preparou sua tese, após uma pós graduação, juntou professores, conselheiros da escola e a comunidade e apresentou um projeto, que segundo ele, foi aprovado por unanimidade entre os 60 membros de uma comissão.

A solução que o ex-diretor apresentou para modificar a maneira de ensinar no Campos Salles estava baseada em três pilares: autonomia, responsabilidade e solidariedade. Para aplicar o novo método, Nogueira derrubou as paredes internas das escolas e o que eram 12 salas, se tornaram 4 grandes salões.

O método, baseado nos princípios da Escola da Ponte, fundada na cidade de Porto, em Portugal, reúne quatro alunos por mesa e três professores por salão. Os alunos aprendem a partir de suas experiências e necessidades e se apoiam durante o ensino. Cabe ao professor o exercício da escuta, e aos alunos, se empoderarem do conhecimento compartilhado.

“O professor saiu do centro e se tornou ainda mais importante, só que agora ele vai ser importante junto com o aluno. Ele vai construir com o aluno”, completa o diretor.

Os alunos aprendem a partir de um roteiro desenvolvido pelos professores, em parceria com os estudantes. O conteúdo aborda questões de artes, matemática, português, entre outras temáticas, de maneira mais próxima aos educandos.

Com mais de 100 mil habitantes, o Bairro de Heliópolis é uma das maiores comunidade da América Latina./ Foto: José Bernardes.

Comunidade e escola

Um dos agentes transformadores dessa revolução no ensino é a União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (UNAS). A entidade existe desde 1978 e auxilia a comunidade nas mais diversas dificuldades - de advogados e defensoria pública, à oficinas profissionalizantes.

A entidade têm mais de 50 projetos educacionais, que vão desde a administração de creches até a ressocialização de egressos.

À época da revolução comandada pelo então diretor, Braz Nogueira, a UNAS era comandada por João Miranda, fundador da associação de moradores do bairro e que, ao lado de sua companheira, Genésia Miranda, foi o pilar de resistência contra grileiros que queriam extorquir a terra dos moradores de Heliópolis em meados dos anos de 1970.

Os dois também protagonizaram diversas resistências contra ordens de reintegração de posse, proferidas pelo Estado, que era o dono das terras onde foi fundado Heliópolis.

“O Braz eu conheci aqui no Heliópolis. Ele fazia caminhadas, com um shorts e um dia ele passou lá em casa: ‘Você que é o João Miranda? Eu sou o diretor da escola. Ele pediu que eu aparecesse na escola, que iria ter uma reunião. Eu não via diretor de escola andar por Heliópolis. A escola era uma coisa e nós éramos outra, atendendo nossas crianças, nossos filhos”, conta Miranda.

Foi a partir dessa aproximação entre Miranda e Nogueira que a escola começou a fazer parte do dia a dia da comunidade “Começamos a integrar os professores à comunidade, a participar do projeto. Com o tempo, vimos que quebrar a cabeça das pessoas com essas ideias, não dá. Tem coisa que demora mais tempo”.

Os métodos ainda assustam pais que, desconfiados da eficiência do projeto, ficam reticentes ao matricular seus filhos.

“Algumas pessoas falavam para mim que não era uma escola boa. Quando saiu a lista e meu filho ia estudar lá, eu fiquei receosa”, relembra Valéria Aparecida Andrade, mãe de Marcos Andrade, de oito anos, que há dois estuda no Campos Salles.

Antes abaixo da média, a Campos Salles alcançou, em 2017, 6,0 pontos no Índice de Desenvolvimento de Educação Básica (IDEB), resultado que mede o desempenho de alunos do ensino fundamental e básico de escolas públicas, se igualando as boas práticas do município.

Tanto Nogueira quanto os demais gestores do projeto da escola reconhecem a importância da nota para a validação do projeto. Mas ressaltam que o objetivo é fazer com que os alunos se reconheçam como agentes transformadores de sua realidade, a partir do respeito e da solidariedade.

“O que eu vejo naquela escola é que as crianças não são só um número. Meu filho está lá e não é só um número na chamada. Lá ele é atendido pelo nome dele, que é Marcos. Eles tratam as crianças como ser humano, com amor”, relata Maria Andrade.

O projeto tem ganhado reconhecimento nacional e internacional. A escola organiza, uma vez por mês, visitas guiadas para educadores e abertas a público que desejam conhecer a iniciativa. Instituições como o Massachusetts Institute of Technology (MIT), dos Estados Unidos, já colocaram o Campos Salles em seu radar. Para a socióloga e educadora, Helena Singer, Heliópolis mostrou que é possível uma nova maneira de compartilhar ensino.

“A outra educação possível se revela muito em Heliópolis. Começa com o reconhecimento que a escola é uma organização da comunidade, talvez uma das mais importantes, na medida em que é o lugar que as pessoas depositam confiança de educar os seus filhos, não é a escola e a comunidade. A gente vê o poder que tem quando a escola se conecta com as organizações do território, começa a refletir sobre ele e foi capaz de transformar um lugar, que era tido como perigoso, de pobreza, de vulnerabilidade, em um bairro educador”.

Edição: Luiz Felipe Albuquerque