DISPUTA

Dívida bilionária ameaça patrimônio da petroleira estatal da Venezuela

PDVSA precisa pagar R$ 13 bilhões; se não quitar o saldo, pode perder controle sobre subsidiária nos EUA

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |
Empresa detém a maior reserva de petróleo do mundo
Empresa detém a maior reserva de petróleo do mundo - Foto: Juan Barreto/AFP

Outubro é um mês chave para a Venezuela. Isso porque é o prazo para pagar os títulos aos detentores da dívida da petroleira PDVSA – a maior estatal do país e motor da economia venezuelana. O saldo é de cerca de US$ 3,4 bilhões (R$13,6 bilhões), o que corresponde à metade das reservas internacionais venezuelanas, que somam US$ 7,8 bilhões (R$31,2 bilhões), de acordo com o Banco Central do país -- se não for pago antes do início de 2020, pode representar uma ameaça à propriedade pública e estatal da empresa.

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Em setembro, o presidente Nicolás Maduro anunciou a formação de uma comissão negociadora das dívidas da PDVSA, liderada pela vice-presidenta Delcy Rodríguez e o vice-presidente para a Economia, Tareck El Aisami.

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As principais acionistas são a empresa estatal russa Rosneft e a Ashmore Group, uma gerenciadora de fundos de investimento britânica, seguidas de diversas financeiras estadunidenses. A Rosneft teve um lucro de US$ 8,7 milhões em 2018 e é responsável por 6% da produção mundial.

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Além das dificuldades geradas pelas sanções econômicas e o recente bloqueio total, com a Ordem Executiva 13884, que impede o Estado venezuelano de realizar transações financeiras em dólar, o pagamento dos títulos da PDVSA estava proibido por outra Ordem Executiva de Donald Trump, desde 21 maio de 2018, e voltou a ser permitido com a Licença Geral 5, emitida pela Oficina de Controle de Ativos Estrangeiros do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos (Ofac), em 19 de julho de 2019.

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Frente a isso, no passado 15 de outubro, a Assembleia Nacional, presidida por Juan Guaidó e de maioria opositora, declarou ser ilegal a emissão de novos títulos das ações da PDVSA pelo governo bolivariano.

No entanto, em maio, a direção da a Citgo, o braço da petroleira nos EUA – nomeada por Guaidó e apoiada pela Casa Branca –, usou US$ 71,6 milhões (R$ 286,4 milhões) dos ativos venezuelanos bloqueados pelo governo estadunidense para pagar juros aos credores da dívida da estatal venezuelana no território estadunidense.

Apesar de a medida ter sido aprovada pela Ofac, esse pagamento gerou uma investigação do serviço de inteligência estadunidense, o FBI, contra a diretoria da empresa, acusada de usar laranjas para desviar parte do dinheiro.

A denúncia foi feita por uma das maiores operadoras financeiras estadunidenses, a JP Morgan, que afirmou que os dois principais líderes do partido Voluntad Popular, Leopoldo López e Juan Guaidó, teriam adquirido parte dos dos títulos PDVSA 2020 com acionistas testas de ferro.

Segundo o presidente da Assembleia Nacional Constituinte (ANC), Diosdado Cabello, o governo bolivariano também abriu uma investigação contra Guaidó sobre o pagamento dos petro-bônus.

"Depois que eles [oposição] declararam ilegais os bônus, Estados Unidos autoproclamou Guaidó como presidente e então a AN aprovou o pagamento dos juros desses bônus, que eles mesmos haviam declarado ilegais, tudo isso para que os amigos de Guaidó ficassem com esse dinheiro; U$S 71,6 milhões", disse o líder psuvista na segunda-feira, (22).

   
 

   

Citgo em xeque

No caso da Citgo, a dívida é de US$ 913 milhões de dólares (cerca de R$ 3,6 bilhões de reais), que deveriam ser pagos até esta segunda–feira (28) e comprometem 50,1% das ações da empresa, podendo entregá-la às mãos dos credores privados.

Na última quinta-fera (24), o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos emitiu uma normativa que proíbe transações financeiras com as ações da Citgo relacionadas aos títulos da dívida da PDVSA até 20 de janeiro do ano que vem.

 “Tudo isso serve para beneficiar os grupos econômicos detentores da dívida”, denunciou o ministro de Relações Exteriores da Venezuela, Jorge Arreaza.

“A jogada é clara. Se os Estados Unidos permitem a execução da dívida, tanto a Rússia, como o Reino Unido teriam uma parte da propriedade da Citgo. Então é claro que eles não podem permitir o desmembramento dos capitais da empresa e deixar que o Estado russo tenha qualquer tipo de propriedade no solo estadunidense, porque segundo as suas próprias leis, isso fere a segurança nacional”, garante o especialista em geopolítica energética, Vladimir Adrianza.

Além disso, desvincular Citgo da PDVSA poderia representar uma desvalorização das suas ações, já que no mercado financeiro o valor das ações de empresas petroleiras é medido de acordo com sua capacidade de produção e suas reservas. Nesse caso, Venezuela possui a maior reserva de petróleo certificada do mundo: 309 bilhões de barris.

Dependência controlada

Estados Unidos sempre foi o principal comprador do petróleo venezuelano e, consequentemente, um dos principais parceiros comercias. No início dos anos 2000, os EUA demandavam cerca de 1,9 milhão de barris de petróleo diários da Venezuela. Com a ascensão de Hugo Chávez e a reorientação da economia, o intercâmbio caiu para cerca de 600 mil barris diários, até o início doas sanções outorgadas pelo presidente Barack Obama em 2015.

Para o economista Pablo Giménez o conflito entre as medidas do Departamento do Tesouro, a Ofac e as ordens executivas emitidas por Trump refletem a heterogeneidade dos grupos que compõem o establishment. “Parece que o objetivo central será a confiscação direta da Citgo, que dentro dos Estados Unidos é muito estratégica, e não por intermédio de um suposto governo sem nenhuma base legal”, sentencia.

Com uma produção de cerca de 759 mil barris de petróleo diários, entre 2015 e 2017, a Citgo teve um lucro de cerca de US$ 2,5 bilhões (R$ 10 bilhões). A filial da PDVSA tem três refinarias (nos estados do Texas, Illinois e Lousiana), três pontos de abastecimento de combustível e quase cinco mil postos de gasolina na costa leste dos EUA. Emprega cerca de 5 mil pessoas e é responsável por 4% do refino de petróleo no país e um dos principais provedores de combustível para a aviação civil.

A Citgo foi comprada pelo governo de Rafael Caldeira, na segunda metade da década de 1990 ,com a PDVSA sob a administração de Luis Giusti López, em uma negociação mediada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). A proposta era de que o Estado venezuelano, que na época devia US$ 34 bilhões, cerca de 50% do seu PIB, retribuísse empréstimos do FMI recuperando refinarias para reativar esse setor da economia do estadunidense.

Por isso, durante mais de uma década, tanto a estrutura, como a gestão de Citgo eram estadunidenses. “Era uma empresa estadunidense em que a Venezuela injetou capitais, numa área que há 25 anos não recebia grandes investimentos dentro dos Estados Unidos. A Venezuela praticamente fez um investimento local para gerar 4% da produção de combustível nacional. Esse foi um dos piores investimentos venezuelanos”, pontua Adrianza.

Com o governo de Hugo Chávez, em 2004, foi constatado que a empresa, apesar de ser uma propriedade estatal, não dava lucros para o Estado venezuelano, pelo contrário, todas suas ganâncias ficavam no território estadunidense. Daí nasceu a proposta de vender a Citgo.

A origem da dívida

A emissão de títulos de dívidas é prática comum dentro dos mercados financeiros e, no caso de empresas produtivas, serve para gerar um aumento de renda para reinvestimentos de capital. Foi essa a tática adotada pelo governo venezuelano em 2016, quando emitiu títulos da dívida da estatal para gerar uma nova entrada de dólares, frente à diminuição dos preços do barril de petróleo no mercado internacional e os primeiros impactos das sanções dos Estados Unidos.

Com a constante diminuição da produção, o governo decidiu renegociar a dívida com os credores dos bônus emitidos em 2016-2017 com novos bônus que venceriam em 2020 e seriam pagos com uma taxa de juros de 19,3%, como garantia colocou à disposição 50,1% das ações da Citgo Petroleum.

“Inclusive entre os organismos internacionais há discrepância sobre o valor total da dívida e sobre os credores. É necessário realizar uma auditoria como parte dessa negociação da dívida. Até onde sabemos, os principais donos desses títulos são corporações e entidades financeiras estadunidenses”, afirma Giménez, que também é coordenador do curso de Economia Política da Universidade Bolivariana da Venezuela.

Até o momento, o governo bolivariano, seja por seus porta-vozes ou pela comissão de negociação, não anunciou o que fará em relação ao pagamento dos títulos. A situação divide opiniões.

Para Giménez, a solução passa pela estabilização do cenário geopolítico. “É necessário transmitir confiança de que a produção petroleira pode se recuperar e com isso se poderá cumprir com esses compromissos internacionais. Além disso, é necessário um plano macroeconômico que gere expectativa de crescimento e isso só será possível como parte de um acordo político que restabeleça os poderes e a estabilidade do país. Esse acordo deveria ser nacional e internacional e deveria envolver os principais clientes do petróleo venezuelano.”

Já Adrianza defende que o embate está centrado na disputa de hegemonia mundial entre Rússia e Estados Unidos. “O problema foi gerado pelos EUA. Quando chegue janeiro se o governo dos Estados Unidos não encontrar uma solução para essa aberração legal que criaram com a Citgo, Rússia poderia executar sua dívida e assumir parte das ações da empresa. Para impedir, o governo dos Estados Unidos teria que dizer claramente que proíbe a existência de qualquer tipo de propriedade russa no seu território e tudo isso num momento de clara desvantagem militar estadunidense”, confirma o analista.

Apesar de Trump ser um empresário multimilionário defensor da propriedade privada e de propagar a ideia de que os Estados Unidos defendem as democracias no mundo, sua administração não duvidou em legitimar um presidente autoproclamado e bloquear todos os ativos e a propriedade privada estrangeira no seu território.

O valor total da dívida representa cerca de 54,8 milhões de barris de petróleo, considerando uma produção mensal estável de 700 mil barris e um valor médio de US$ 62 dólares por barril (R$ 248), PDVSA tardaria aproximadamente oito anos para saldá-la. A saída para esse novo enclave político não está clara. O certo é que, uma vez mais, a Venezuela está no centro dos debates e disputas políticas e econômicas internacionais.

 

Edição: Rodrigo Chagas