Instabilidade

Ataques a indígenas e bloqueio informativo marcam primeiro dia do golpe na Bolívia

Fontes locais ouvidas pelo Brasil de Fato relatam clima de apreensão e medo entre a população local

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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"É um golpe profundamente racista", denuncia militante do movimento Feminismo Comunitário Antipatriarcal da Bolívia
"É um golpe profundamente racista", denuncia militante do movimento Feminismo Comunitário Antipatriarcal da Bolívia - Esquerda Diário

Após o golpe cívico-militar que levou à renúncia do presidente boliviano Evo Morales, o cenário nas ruas do país nesta segunda-feira (11) é de  apreensão entre a população local. A militante feminista Erika Calle, que vive em La Paz, disse à reportagem que a Bolívia beira uma “guerra civil” e que a situação neste momento é “muito difícil”, com “muita violência de todos os lados”.  

Outras características se somam ao contexto de instabilidade institucional do país. Em entrevista ao Brasil de Fato, a militante Adriana Guzman, do movimento Feminismo Comunitário Antipatriarcal da Bolívia, disse que há um bloqueio de informações para a população, que estaria sem acesso a uma narrativa transparente sobre o que se passa nos diferentes poderes institucionais do país.   

“Na Bolívia, os meios de comunicação são propriedade dos empresários e dos grupos de poder, que não estão deixando clara a ideia de que é um golpe de Estado e um golpe às organizações sociais, um golpe racista. Não se está difundindo o que está ocorrendo, que estão queimando as sedes das organizações sociais campesinas, das organizações sociais indígenas e os espaços que têm tido movimentos socialistas”, critica, acrescentando ainda que casas de autoridades indígenas e dirigentes populares também estão sendo alvo de incêndio e ataques.   

Guzman destaca também o caráter opressor do movimento de oposição que levou à renúncia de Evo: “É um golpe fundamentalista porque devolve a Bíblia ao Palácio, coloca o país nas mãos de Deus e todas essas coisas. É um golpe profundamente racista, porque busca identificar as mulheres e os homens originários de todas as organizações e os ataca”. 

A declaração da ativista é uma referência à postura de Luis Fernando Camacho, líder de oposição, que tem formação católica, mas mantém relações estreitas também com igrejas evangélicas de caráter mais extremista.

Entre outras coisas, ele chegou a afirmar recentemente que “faria com que Deus voltasse ao Palácio Queimado”, sede oficial do governo boliviano. No Brasil, Camacho tem interlocução com o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, também de perfil conservador.

“Para mim, é um retrocesso, porque muitos dos direitos obtidos estão em perigo, caso entre Camacho, que liderou o golpe. Ele é um católico inveterado e tratará de mudar leis que foram conquistadas com trabalho e luta”, projeta a militante Erika Calle.

O comunicador Jose Aramayo, diretor da Radio Comunidade, está na região central da capital boliviana e contou à reportagem que a população da cidade está tomada por um “clima de medo”.   

“Neste momento, muitos cidadãos estão se mobilizando pra defender este golpe de Estado que está realizando a direita juntamente com a polícia e os comitês cívicos. E, por outro lado, também há grupos que estão em barricadas para defender possíveis ataques de vândalos. Não há polícia que possa controlar", relata.

Repercussão

A situação de instabilidade institucional que tomou conta da Bolívia continua gerando manifestações e mobilizações de diferentes lados neste começo de semana. Nas últimas horas, a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT) destacou, por meio de sua conta no Twitter, que Morales “foi destituído por um golpe militar, teve a casa invadida pela polícia e sofreu um mandado de prisão ilegal”. Ela classificou a ofensiva como “um atentado gravíssimo à democracia na América Latina e uma violência contra o povo boliviano”.  

Em outra mensagem publicada na sequência, a ex-mandatária citou o jogo de forças que marca o atual contexto do continente: “Os golpes voltaram à América Latina. Sejam parlamentares e judiciários, sejam militares, devemos repudiar e combater fortemente essa tendência. O que aconteceu com o presidente Evo mostra a repulsa das elites latino-americanas à democracia sempre que perdem eleição”.

Líder de esquerda, o ex-primeiro ministro da Grécia Alexis Tsipras afirmou, também via Twitter, que se tenta “retornar aos dias sombrios dos golpes de Estado e da violência” na Bolívia. Ao demonstrar solidariedade a Morales e ao povo do país, ele disse que “Evo não está sozinho”.

Já o presidente cubano, Miguel Díaz-Canel, que havia feito uma primeira manifestação oficial no domingo (10), pediu, nesta segunda (11), pela segurança dos diferentes atores políticos e populares do país latino: “Quebrou-se a legalidade e se deve velar pela integridade física de Evo, outros líderes e o povo boliviano”.

Ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1980, o ativista de direitos humanos argentino Adolfo Esquivel pontuou que a crise no país andino afeta o restante do mundo. Ele afirmou se tratar de “um atentado contra todas as democracias” e disse que “não se beneficiam os bolivianos com a violência”, e sim “os Estados Unidos, a OEA e os governos de direita”, aos quais chamou de “cúmplices do ocorrido”, afirmando ainda que estes seriam “incapazes de conviver com uma Bolívia Justa, educada e soberana”.

As mensagens de Dilma, Tsipras, Díaz-Canel e Esquivel foram compartilhadas na rede social do agora ex-presidente boliviano, que também agradeceu as diferentes demonstrações de apoio que tem recebido. Morales afirmou que as manifestações lhes dão “alento, fortaleza e energia”. “Me emocionaram até me fazerem chorar. [Eles] nunca me abandonaram; nunca os abandonarei”, cravou o líder.

Evo também rechaçou os últimos movimentos da oposição e se defendeu, mais uma vez, das críticas: “Os golpistas que assaltaram minha casa e a de minha irmã, incendiaram domicílios, ameaçaram de morte ministros e seus filhos e humilharam uma prefeita agora mentem e tratam de nos culpar pelo caos e a violência que eles têm provocado. A Bolívia e o mundo são testemunhas do golpe”.

Edição: Rodrigo Chagas