SOLIDARIEDADE

Opinião | Cuba: o bem, o mal e os médicos cubanos

Iniciativa do país caribenho volta a ser menosprezada e transformada em uma campanha psicológica e de propaganda militar

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Médicos em Cuba aguardam o regresso de seus colegas de profissão após governo autoproclamado da Bolívia romper acordo entre os países
Médicos em Cuba aguardam o regresso de seus colegas de profissão após governo autoproclamado da Bolívia romper acordo entre os países - Yamil Lage / AFP

O bem

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Em 1970, no dia 31 de maio, um terremoto e subsequentes inundações ceifaram a vida de mais de 70 mil cidadãos no Departamento de Ancash, no Peru. Após poucos dias, quase horas, cinco hospitais da campanha de médicos cubanos chegaram ao lugar dos fatos e se instalaram em 5 das províncias destruídas pelo terremoto. Quem governava era o General Juan Velasco Alvarado (um revolucionário) e ainda não tinham sido reabertas as relações com Cuba. Fidel e 150 mil cubanos doaram sangue aos irmãos e irmãs sobreviventes da tragédia.

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Lembro-me que um dos médicos morreu num acidente de trânsito, caindo da Cordilheira. Não esquecerei as expressões de carinho das pessoas ao serem atendidas por homens e mulheres dessa brigada médica. Quase não se entendiam, uns falando castelhano cubano e outros falando castelhano andino. Quarenta e seis anos depois, em Pedernales [República Dominicana], na segunda metade de abril de 2016, revi as mesmas caras, os mesmos olhos, os mesmos olhares de agradecimento às médicas e médicos cubanos que chegavam a resolver o que podiam, dando saúde e entregando assistência médica aos necessitados, com profissionalismo, eficiência, equipamentos e sobretudo a grande, grande e profunda, sensibilidade solidária que os caracteriza.

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Em 1988, vivia com parte da minha família em Puerto Cabezas, na Nicarágua, enviado como consultor do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), e os únicos médicos da área eram cubanas e cubanos, alguns poucos eram locais, negros ou misquitos [povo indígena da América Central] que tinham ficado na região. Entre eles, a doutora Myrna Cunningham, sequestrada e torturada pelos “Contras” e hoje grande dirigente do FSLN, com reconhecimento mundial pelo seu extraordinário trabalho com as mulheres indígenas. Era o tempo da “guerra de baixa intensidade” e da ofensiva da contrarrevolução nicaraguense e os médicos nacionais encorajados a ir para zonas de conflito eram muito poucos. Vimos como trabalhavam e também fomos seus pacientes quando um dos meus filhos ficou gravemente enfermo, com malária e febres muito fortes, possivelmente por dengue. Estes profissionais cubanos literalmente arriscaram a vida porque eram um tesouro muito precioso pelos combatentes enviados e financiados por Reagan e Bush. O processo de paz e de reconciliação nacional trouxe alguma calma para a região, mas o risco que corriam as médicas e médicos cubanos era enorme.

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Em 1990, na Manágua já governada pela presidenta Violeta Chamorro, meu filho mais novo contraiu uma infecção no ouvido. Tínhamos realizado centenas de análises, gasto uma dinheirama que não tínhamos, graças ao apoio e solidariedade de amigos de muitos países.

Foi um médico cubano quem finalmente o auscultou e determinou que o processo infeccioso podia se transformar em uma meningite e organizou sua transferência à Havana. No hospital pediátrico infantil foi atendido e teve sua vida salva. O bebê tinha passado 135 dias de febrícula, choro e dor permanente. Tinha menos de 5 meses.

Em 1995, sempre com a ACNUR, participamos e dirigimos parte da Repatriação Voluntária de 12 mil cidadãos refugiados guatemaltecos, de Campeche, Quintana Roo e Chipas à Guatemala. Em povoados distantes do Quiché, já na Guatemala, os únicos médicos que trabalham na assistência à saúde eram médicas e médicos cubanos que viviam sem luz e com pouca água potável. Foi tarefa da ACNUR melhorar as condições de vida dos repatriados e foi graças a elas e eles, ao Convênio de Saúde Cuba-Guatemala, que foi possível oferecer atenção integral a crianças, mulheres e homens que chegavam a zonas de complicado acesso. Nessa ocasião, o Colégio Médico da Guatemala queixava-se de que os médicos cubanos estariam tirando vagas de emprego dos guatemaltecos. Muitos anos depois, visitei a zona continuavam sem saber o número de médicos guatemaltecos necessários. Só havia médicas cubanas e cubanos nas aldeias de Quiché.

Posteriormente, prestei serviços para a Organização das Nações Unidas e novamente foram as médicas e médicos cubanos que encontrei trabalhando com essa imensa vocação humanitária, nas piores condições desse país. Dedicação solidária, alegres, cheias e cheios de vida, prontas e prontos para compartilhar seu ânimo e, evidentemente, a alta formação científica y profissional.

Finalmente, durante o terremoto de 16 de abril de 2016, os primeiros “estrangeiros” (se é que podem ser chamados assim na Nossa América) que chegaram em Manta (cidade do Equador) foram os médicos cubanos e sei porque dois dos meus filhos participaram da coordenação do pouso no aeroporto da cidade junto com dois outros funcionários do Ministério do Governo, sob a direção direta do Ministro do Interior.

Quis compartilhar exemplos dos quais participei, nos quais vivi com intensidade cada um deles. Respirando com a alegria de ser atendido por companheiras e companheiros que representam uma das maiores contribuições da Revolução Cubana a toda a humanidade. Esta iniciativa de Fidel, que colocou a saúde e o conhecimento (porque a escola Latino-americana de Medicina de Cuba formou milhares de garotas e garotos dessa “América irredenta”) a serviço dos mais pobres do planeta. Esta iniciativa de décadas hoje volta a ser menosprezada e transformada em uma campanha psicológica e de propaganda militar para justificar as atrocidades que estamos vendo e vivendo como parte da grande ofensiva midiática pré-bélica contra a América Latina. Cuba, Venezuela, Nicarágua, Bolívia, Argentina, Uruguai, México são objetos do inimigo, não nos equivoquemos.

Brigada internacional Henry Reeve que, em 2005, formou 3.386 médicos especializados em desastres e epidemias. Foto: Antonio Levi/AFP

O mal

Justo ontem escutávamos o Mike Pompeo (Secretário de Estado dos EUA) parabenizar o Brasil, a Bolívia e o Equador (neste último país estiveram desde 1992, durante 27 anos, ou seja, por isso pelo menos ninguém poderá “culpar” o presidente Rafael Correa) por encerrar o convênio de saúde com Cuba e nos dois primeiros casos, duplas felicitações por ter expulsado os médicos cubanos.

Pompeo representa o país que, entre as mais recentes violações de Direitos Humanos, mantém na prisão 103 mil crianças menores de 12 anos separadas de seus pais, a maioria delas por razões migratórias. Esta cifra, do dia 18 de novembro, faz parte do relatório apresentado pelo dr. Austríaco Manfred Nowak, que dirigiu o estudo encomendado pela ONU. Na mais recente demonstração de barbárie que a administração desse país comanda, sem nenhum pudor, pretende dar lições de democracia na América Latina. Pompeo parabeniza os governos por perseguir estes trabalhadores, verdadeiramente humanitários, da saúde.

A ação de propaganda pré-bélica atinge somente os mais pobres. Os médicos cubanos não estão “tirando vagas de emprego” nos bairros de luxo aos galenos nacionais. Estão justamente nas áreas rurais afastadas ou na Amazônia brasileira, boliviana ou equatoriana. Que satisfação pode ter em retirar a atenção fraterna de uma médica ou de um médico daqueles que mais a necessitam? Só a vontade política propagandística e perversa dos EUA para acusar e assediar a Revolução Cubana, tarefa que já empreendem há 60 infrutíferos anos.

Em toda a América Latina, em todo o mundo, há cada vez mais consciência sobre quem são os amigos e quem são os inimigos. Para “os pobres da terra”, as médicas e médicos cubanos, guiados por Martí e Fidel, são escudos fortes, brilhantes e levantados ao sol da solidariedade dos povos.

*Luis Varese é analista político. Durante 24 anos, foi funcionário do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).

Edição: ALAI - America Latina en Movimiento | Tradução: Luiza Mançano