Rio Grande do Sul

MEIO AMBIENTE

Dossiê Painel de Especialistas aponta falhas e omissões em estudo da Mina Guaíba

Análise Crítica do Estudo de Impacto Ambiental da Mina Guaíba foi lançada no dia 10

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Autoridades participaram do lançamento na Faculdade de Economia da UFRGS
Autoridades participaram do lançamento na Faculdade de Economia da UFRGS - Divulgação CCMRS

O Comitê de Combate à Megamineração no Rio Grande do Sul (CCMRS), coletivo que congrega mais de 120 entidades dos mais variados campos, lançou o dossiê Painel de Especialistas – Análise Crítica do Estudo de Impacto Ambiental da Mina Guaíba. A apresentação do material foi realizada no auditório da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, na noite de terça-feira (10), Dia Internacional dos Direitos Humanos. Com mais de duzentas páginas, em 17 pareceres realizados por 37 profissionais de áreas como Biologia, Economia, Saúde, Geologia, Sociologia, entre outras, a publicação expõe falhas, omissões e lacunas do Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) apresentado pela empresa Copelmi à Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luiz Roessler (FEPAM).

Desde 2014, a Copelmi busca a Licença Prévia (LP) para o projeto Mina Guaíba, que pretende se instalar como a maior lavra de carvão a céu aberto do Brasil, ocupando uma área total de cerca de 5 mil hectares entre os municípios de Charqueadas e Eldorado do Sul. Se for liberada, em 23 anos de operação, vai extrair mais de 160 milhões de toneladas de carvão mineral (além de areia e cascalho). O projeto vem recebendo duras críticas por parte da sociedade, que denuncia a falta de transparência e de diálogo com que o projeto vem se desenrolando.

A apresentação do painel foi dividida em três mesas. A de abertura contou com autoridades representantes do Ministério Público Federal e Estadual, Conselho Estadual de Saúde, Associação dos Juízes do RS, além da Associação Juízes para a Democracia e MST, representando o coletivo de entidades que compõe o CCMRS. Em seguida, em duas mesas técnicas compostas por pesquisadores que assinam os estudos, foi apresentado um resumo dos pareceres.

Conforme explicou o engenheiro ambiental Eduardo Raguse, um dos pesquisadores que assina o painel e que compôs a primeira mesa, o documento foi inspirado no “Painel de Especialistas: Análise Crítica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte”. Tem por objetivo qualificar o debate público sobre o licenciamento ambiental e servir eventualmente como base para ações de cunho jurídico e outras que possam tomar forma.

“Temos a pretensão de expandir a estratégia do painel de especialistas também para os outros projetos de mineração que estão em andamento aqui no estado. O CCMRS não trata apenas da Mina Guaíba, mas de todo o contexto da frente de mineração que vem se apresentando em nosso território”, destacou, lembrando os três projetos já em andamento no RS: o Projeto Fosfato Três Estradas, da empresa Águia Fertilizantes S.A., que pretende minerar fosfato no município de Lavras do Sul, o Projeto Caçapava do Sul, da empresa Nexa Resourses, que pretende minerar zinco, chumbo e cobre, no município que dá nome ao projeto, e o Projeto Retiro, da empresa RGM – Rio Grande Mineração SA, que pretende minerar titânio (e outros minerais pesados) em São José do Norte.

O Painel de Especialistas aborda cinco grandes componentes: Meio Físico (abarcando análises quanto aos recursos hídricos, solo, qualidade do ar e alterações paisagísticas); Meio Biótico (contemplando questões relacionadas à flora e fauna nativas, inclusive ameaçadas de extinção, assim como à Área de Proteção Ambiental e Parque Estadual Delta do Jacuí e à recuperação da área degradada após a exaustão da jazida); Meio Socioeconômico (apresentando as falhas na caracterização socioeconômica, as inconsistências do Plano de Reassentamento Involuntário das populações residentes na área, e os contrapontos ao discurso do desenvolvimento pela mineração); Populações Indígenas (expondo a complexidade da sociedade Guaraní e a invisibilidade das aldeias indígenas do entorno nos estudos pela negação do direito à consulta livre, prévia e informada) e Saúde (explicitando a completa falta de avaliação dos efeitos nocivos à saúde oriundos deste projeto carbonífero).

Cada um dos itens abordados apresentam diversas inconsistências metodológicas, apontaram os pesquisadores. Os pareceres apresentam correlações e interpretações que induzem ao erro no EIA-RIMA da Copelmi, bem como ausência de referenciais bibliográficos consistentes e atuais que considerem os ambientes e sociabilidades locais. Apontam ainda a ausência de dados sobre as populações indígenas na região, coleta e classificação assistemáticas de espécies, com riscos para o conhecimento e a preservação da biodiversidade local. Também que foram subdimensionados aspectos como área diretamente afetada, população atingida, as pressões nos aparatos de saúde pública da região Metropolitana, os impactos negativos sobre os efeitos dos particulados do carvão no ambiente, nas sociabilidades e na economia. E que omissões na avaliação dos riscos à segurança hídrica da região e as medidas mitigadoras são insuficientes em diferentes áreas.

“Muitos dos pareceres do painel já foram incluídos no processo de licenciamento ambiental da Fepam e já incidiram sobre o processo”, disse Eduardo Raguse. Ele relatou que, como resultado desse esforço, a Fepam emitiu um ofício, no dia 2 de agosto, para que a empresa complemente os estudos com mais de 100 itens a serem revisados. “A Copelmi pediu no mínimo mais 120 dias para conseguir se organizar e apresentar sua resposta. Nosso entendimento é que, com tamanha complexidade e alterações no projeto, ele deveria ser apresentado novamente à sociedade, devendo ser solicitadas novas audiências públicas, inclusive em Porto Alegre”, avaliou.

Algumas cópias foram entregues mas relatório está disponível online (link no final do texto)

Impactos ambientais

O engenheiro ambiental Iporã Possantti apresentou uma análise da importância do Rio Jacuí na segurança hídrica na região de Porto Alegre. “O estudo de Impacto Ambiental do projeto apresenta lacunas graves relativas à questão dos recursos hídricos”, ressaltou. Entre os diversos pontos, em meio às incertezas do futuro associadas às pressões sistêmicas exercidas sobre a oferta de água e sobre o consumo de água, o empreendimento reduziria a capacidade de adaptação do sistema hídrico na região. “Essa área precisa ser preservada por questão estratégica de planejamento”.

O EIA-RIMA também apresenta inconsistências no que diz respeito aos impactos na qualidade do ar, apontou a bióloga Márcia Käffer. O estudo concluiu que a análise apresentada pela empresa é deficiente, com lacunas essenciais para a caracterização da qualidade atmosférica. Ela apontou que os dados e períodos analisados, contemplando apenas uma estação do ano, são insuficientes. “A instalação dessa usina, dessa extração, vai impactar muito mais o compartimento atmosférico do que já está, os problemas serão exponenciais”, destacou, ressaltando que a região já está próxima do seu limite de poluição. Segundo ela, no pior cenário apresentado pela empresa, o sexto ano de operação, o limite permissivo estabelecido pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente de partículas totais em suspensão vai ser ultrapassado em 241%.

O biólogo Paulo Brack chamou a atenção para as possíveis ingerências políticas que podem estar ocorrendo no processo de licenciamento ambiental. “Sem acusar ninguém, mas sabemos que existe espaço para assedios. Temos que fazer rastreamento para que os técnicos não sejam assediados”, sugeriu. Ele, que assina o parecer sobre o meio biótico no diagnóstico da viabilidade ambiental, recordou que a energia a carvão está na contramão do desenvolvimento mundial. “Já existe uma aliança pelo abandono do carvão em mais de 20 países europeus, e outros como Angola, Nova Zelândia, Costa Rica, mais de 20 países se comprometeram a abandonar, por questão das mudanças climáticas. Só isso seria suficiente para a agente abandonar esse tipo de atividade, que é inviável, inclusive do ponto de vista econômico. O próprio Fórum Econômico Mundial coloca que fontes como energia solar e eólica são mais baratas que o carvão, não existe justificativa”.

As botânicas Mariana de Souza Vieira e Rosângela Gonçalves Rolim, que compõem a equipe que emitiu o parecer sobre vegetação campestre, explicaram que o estudo da Copelmi apresentou cerca de 60 espécies vegetais nos 420 hectares. Utilizando a mesma metodologia, o método de caminhamento, em apenas um trecho do território, a análise do painel apontou que o número de espécies é maior. “Com um pequeno esforço de uma hora e meia de caminhada, encontramos 95 espécies”, apontou Rosângela. Mariana afirmou que o estudo é vergonhoso, que não há plano de recuperação com olhar para plantas campestres, apenas para vegetação arbórea. “O projeto não fala em nenhum momento de plantas exóticas invasoras, que existem na região e podem invadir o terreno com o empreendimento, pois competem com espécies nativas, gerando perda da diversidade. A questão é um problema, gera muito custo e a empresa nem sequer traz ações”, avaliou, questionando ainda como a empresa pretende adquirir sementes de mudas nativas, algo que não existe no mercado.

A bióloga Lisiane Becker, responsável pela análise dos conteúdos relativos a fauna e flora também apontou falhas no estudo da Copelmi. Segundo ela, os impactos sobre a fauna e flora são significativos, incluindo as Unidades de Conservação e a Zona Núcleo da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, e que fica impossível mitigar a vida que seria afetada. “Os dados apresentados são insuficientes, a análise é totalmente falha, não houve metodologia para análise sobre os anfíbios" exemplificou, explicando serem esses bons indicadores ambientais.

Impactos sociais

Uma segunda mesa técnica foi composta de forma mista, apresentando análises sobre os estudos da impacto social do empreendimento. Reuniu pesquisadores e moradores das comunidades diretamente atingidas: assentamento Apolônio de Carvalho, aldeias indígenas guaranis e condomínio Guaíba City.

O antropólogo Guilherme Sasso trouxe que as aldeias Guajayvi e Pekuruty não são consideradas pelo EIA-RIMA. “A Copelmi fez um subcapítulo de considerações sobre comunidades indígenas, falam genericamente na presença, localizam, mas nem entraram em contato com as lideranças, com a comunidade, não foram consultadas e estão à margem do processo”, ressaltou, apontando que a situação ignora legislações internacionais e nacional no que diz respeito a comunidades indígenas.

O cacique Cláudio Acosta “Werai”, da aldeia Guajayvi, reafirmou que nunca houve uma consulta ou tentativa de diálogo por parte da empresa. “Estamos aí como se fosse nada, porque não consultaram. A gente já protocolou documento no governo federal para que a empresa não instale o projeto. O Ministério Público Federal orientou que empresa faça audiência pública dentro das aldeias, com vários caciques. Não aceitamos a proposta que vai estragar mais ainda, não temos rio, não temos mais nada, agora querer abrir a terra, daí vai ser mais complicado”, disse.

Jaqueline Nunes é do assentamento Apolônio de Carvalho, que produz arroz orgânico, hortaliças e frutas para feiras de Porto Alegre e região. Ela recordou que o MST é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina, mas que por conta do empreendimento em andamento, já há reflexos negativos na produção. “Por interferência e ataques obscuros ao território do assentamento, não poderemos plantar nem a metade do potencial de arroz agroecológico que poderia alimentar muitas famílias da sociedade. A Copelmi tem assediado as famílias do assentamento e provocado atraso no desenvolvimento do assentamento, fomentando insegurança quanto ao futuro. Vamos resistir por amor à vida, pelas pessoas e pelo meio ambiente”, afirmou.

Moradora do Guaíba City, Sirlei de Souza contou que a situação no loteamento está um pesadelo desde 2016, quando iniciaram os debates sobre a mina. “A maioria não aceita a mineração, eles prometem emprego, mas não foram ver quantos vão ficar desempregados por causa da mineração. Vamos embora para onde? Muitos construíram casas ali, para viverem em um local mais tranquilo, um projeto de vida. Hoje a gente não quer nem fazer mais reformas, pois não sabe o que será do futuro”, desabafou.

Confirmando a manifestação dos atingidos, a engenheira agrônoma Eleandra Raquel da Silva Koch apontou falhas e lacunas no que diz respeito à caracterização socioeconômica apresentada no EIA/RIMA. Segundo ela, há uma desconsideração das perdas econômicas incidentes nas atividades que serão inviabilizadas ou diretamente afetadas diante da Mina Guaíba. Ela trouxe ainda que o desenvolvimento gerado pelo empreendimento mostra um baixo desempenho dos indicadores econômicos de desenvolvimento nos municípios mineradores.

Júlio Alt, do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, um dos responsáveis pelo parecer que avaliou o custo da mineração, ressaltou as falhas metodológicas que levam a erros. Entre elas, a questão indígena. “Eles perguntaram a Funai se tinha aldeia indígena na região. A gente sabe que nesse processo de conquista, a demarcação de fato é o último passo. Existe a comunidade, no entanto não existe aldeia, daí eles disseram que como a Funai disse que não existia aldeia, não havia necessidade de fazer o componente indígena, isso que identificamos”, explicou. Também que a área abrange um dos assentamentos mais bem sucedidos do país: “Prejuízos já estão ocorrendo, estamos trocando arroz orgânico por partículas de carvão em Porto Alegre e entorno”.

A economista Luana dos Santos Hanauer apresentou o parecer de análise dos tributos sobre o empreendimento projeto Mina Guaíba, indicando que faltam elementos para compreender a base de cálculo das estimativas apresentadas pela empresa. “Há uma retórica economicista sobre arrecadação tributária usada para convencer a população de benefícios da implantação de empreendimentos de grandes transnacionais que exploram os bens comuns de maneira incalculável, com impacto socioambiental”, apontou. Segundo o parecer, a alíquota cotada para a compensação financeira nas atividades de extração mineral é baixa, comparada com outros países, além de poucos municípios estarem recebendo esta contrapartida (no Brasil é pago alíquota de 2% do lucro líquido para compensação financeira nas atividades de extração mineral, enquanto que outros países variam as alíquotas entre 4%-7% do lucro bruto).

O parecer sobre aspectos da saúde no contexto do projeto de implantação da mina de carvão em Guaíba foi apresentado pela psicóloga Carmem Regina Giongo. Ela ressaltou a necessidade de compreender os impactos em saúde para além de problemas respiratórios advindos da poluição gerada pela mina: “Temos que pensar saúde também como transtorno mental, aumento do índice de suicídio, transtorno de ansiedade, estresse pós-traumático, acidentes de trabalho. Pensamos saúde atrelada a habitação, alimentação, trabalho e outras questões, principalmente ambientais”.

Diante dos elementos apresentados, aponta o parecer, a conclusão é que os impactos na saúde não foram avaliados com a cautela necessária e que esta importante dimensão da vida das populações afetadas pelo empreendimento foram negligenciadas. “Diante disso, nós exigimos que uma equipe de saúde multidisciplinar avalie a saúde física e mental e todos os impactos que já estão sendo gerados, e que para isso sejam pensadas políticas reparatórias. Quais políticas aparecem no EIA-RIMA? Apenas reassentamento e comissão de comunicação. Então o estudo tem que avaliar utilizando a ferramenta já consolidada e sugerida pelo Ministério da Saúde para grandes empreendimentos, que conta com participação das comunidades, um processo participativo e democrático”, finalizou.

Ao final da apresentação do painel, foi relembrado que diversos ofícios já foram encaminhados à Fepam, solicitando audiência pública em Porto Alegre, o que ainda não teve retorno por parte da fundação.

Acesse o Painel de Especialistas – Análise Crítica do Estudo de Impacto Ambiental da Mina Guaíba.

 

Edição: Katia Marko