O ano teatral de 2020 no Distrito Federal começou forte com a peça O Alvo da Semente Companhia de Teatro, do Gama. Trabalhando com metodologias de criação coletiva, com direção de Ricardo César e assistência em direção de Valdeci Moreira Souza, o grupo se colocou uma questão de fôlego: quais as causas de nossa violência, a partir da indagação estabelecida pelo ponto de vista: quem são as vítimas?
Em O Alvo, a Semente Cia de Teatro traz ao palco uma estrutura organizada sem eixo demarcado por enredo dramático, sem ação intersubjetiva. Dois elementos estabelecem a costura das cenas em fragmentos autônomos, que se acumulam tecendo a narrativa da obra: um mestre de cerimônias, a figura do compadre do Teatro de Revista - uma espécie de narrador com múltiplos artifícios, com destaque para o recurso da ironia - aparece em diversos momentos; e a segunda, uma das marcas do coletivo, é a presença da musicalidade e da corporeidade afro-descendente, seja de expressões de culturas periféricas como o rap, seja do candomblé – o orixá Xangô, entidade ligada ao fogo e a justiça, surge em três momentos do espetáculo, com seus dois machados, como alegoria da justiça do povo negro, e os elementos de Iansã, ou Oyá, caracterizam as duas personagens femininas vítimas de tortura.
Logo na primeira cena, realizada na avenida em frente ao Espaço Semente, os espectadores assistem ao improvável diálogo entre os anos de 1964 e 2016. Retomando procedimento épico do Teatro de Revista, os dois momentos históricos são transformados em alegorias. A hipótese trabalhada pelo grupo é que existe uma relação de causalidade entre o legado do golpe militar-civil de 1964 – e a ditadura de 21 anos – com o golpe parlamentar-jurídico-midiático-empresarial que tem no impeachment da presidenta Dilma Rousseff um momento decisivo: o que pareciam escombros não redimidos do passado se revelaram, na verdade, alicerces de estruturas arcaicas que persistem no Brasil, dentre elas o racismo estrutural, como legado da escravidão e da colonização.
No alvo dos ataques estão segmentos que se organizam para lutar por sobrevivência e conquistar direitos e por isso são tratados com hostilidade pelo Estado brasileiro, criminalizados pela mídia, humilhados ou mortos pelas forças policiais: trabalhadores sem terra, negros, índios, mulheres, gays, lésbicas, travestis... a imagem do Brasil, pelo ponto de vista das montagens da Cia Semente, é o inverso da lente publicitária: o país considerado como um dos mais violentos do mundo é também um dos mais desiguais e, pelo ponto de vista dos debaixo, não há cordialidade, miscigenação promissora, inclusão na cidadania. São vítimas: perseguidas, hostilizadas, marginalizadas, para quem a morte é uma possibilidade cotidiana, uma ameaça à espreita.
Valdeci Moreira, diretor do coletivo e do espaço Semente, define, em sua dissertação de mestrado, a prática do grupo como teatro comunitário e reivindica o legado da Pedagogia do Oprimido - desenvolvida pelo educador e filósofo brasileiro Paulo Freire - e do Teatro do Oprimido - método elaborado pelo teatrólogo brasileiro Augusto Boal - como fontes de inspiração para o trabalho que desenvolvem: “O teatro comunitário garante uma implicação em torno daquilo que se faz e daquilo que se assiste, que é motor para reinterpretação do mundo em que se vive e em como se vive neste mundo, vinculando-se necessariamente à realidade. Em seus métodos, o teatro possibilita vislumbrar como as relações sociais se estruturam e como as opressões operam nas esferas individuais e na comunidade como um todo” (2018, p. 18).
A poética do Semente é a de um teatro comunitário de terreiro, que reivindica para si o direito de assimilar, com o máximo de liberdade possível, o legado do inventário de formas do teatro político: estão presentes estruturas do teatro jornal, do teatro tribunal, do teatro fórum. As cenas se alternam, em ritmo veloz e os espectadores são colocados em condições diversas: de participantes de uma assembleia, observadores de uma sessão de tortura, espectadores de gestos de violência em uma festa, a forma da violência se manifesta de maneira diversa, capilarizada no tecido social brasileiro.
Todavia, as vítimas não são passivas, como integrantes do coro ou representando personagens. Os atores da companhia manifestam, pelos cantos e danças, uma imagem resistente, insubordinada, altiva no ato da denúncia, consciente dos riscos que correm. O elenco, em coro, narra, comenta, fornece ao público os dados vertiginosos das vítimas. Mortes antigas e recentes, mártires da resistência à ditadura e outros mais recentes, como a veradora Marielle Franco (PSOL-RJ) assassinada a tiros dentro de um carro em março de 2018, Amarildo Dias de Souza - ajudante de pedreiro desaparecido desde julho de 2013, após ter sido detido por policiais - a menina Ágatha Félix, assassinada por um tiro disparado pela PM em setembro passado e Evaldo dos Santos Rosa, morto por soldados que fuzilaram “por engano” seu carro com mais de 80 tiros no Rio de Janeiro...
Em determinado momento o elenco, por meio de seu mestre de cerimônias, convida o público a opinar a respeito das questões apresentadas, e abre o microfone no centro do palco. Parte das pessoas adere ao convite e compartilha opiniões, histórias pessoais, avalia o impacto da peça, destacando a dimensão pedagógica da narrativa e a força estética do material.
Cabe destacar que a narrativa insurgente da Cia Semente, que procura assimilar criticamente os padrões de representação hegemônicos da realidade, é fenômeno crescente em coletivos espalhados pelo país, em capitais e no interior, que procuram formular depoimentos potentes sobre os impasses históricos de suas trajetórias, como faz, por exemplo, o Coletivo Fuzuê, dirigido pela professora Carina Guimarães e formado por estudantes da Universidade Federal de São João Del Rei (UFSJ), nos espetáculos “Fuzuê” e “Confere”. A despeito da potência estética destes trabalhos, o trânsito deles em festivais de artes cênicas é diminuto e a repercussão em mídias televisivas é nula. São estéticas dissonantes, não dispostas à conciliação com as exigências do realismo dramático.
O teatro político que a companhia Semente realiza evita respostas prontas, óbvias e inverossímeis. Antes disso, o que está em jogo, desde obras anteriores como a emblemática encenação de Macunaíma – livre adaptação do romance de Mário de Andrade – é a formulação de imagens potentes do Brasil, pelo registro de suas contradições, e pela resiliência dos habitantes da periferia do sistema.
Para que o trabalho de coletivos como a Cia Semente circulem, é de fundamental importância que redes solidárias se formem, festivais acolham as montagens, universidades, escolas públicas e sindicatos compreendam seu papel como centros produtores e difusores de cultura, e convidem os coletivos de teatro popular, político e comunitário, para apresentar as obras teatrais em seus territórios.
Ficha Técnica:
Dramaturgia: Semente Cia. de Teatro
Direção, cenário e figurinos: Ricardo César
Movimento de Luz: Jullya Graciela e Matheus Trindade
Assistente de Direção: Valdeci Moreira
Elenco: Banzo, Brenda Oliveira, Carlos William, Daniel Landim, Ceiça Macedo, Leandro Lintel, Matheus Trindade, Stefani Priscila e Vinicius Rocha
Fotos: Ogãn Luiz Alves
Produção: Marli Trindade
Ingressos: 10 reais (meia)
Data: 11, 12, 18 e 19 de janeiro de 2020.
Local: Espaço Semente (Setor Central, Gama - DF)
*Rafael Villas Bôas é Professor da UnB.
Edição: Leandro Melito