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Artigo | No meio da crise do coronavírus, FMI nega pacote de ajuda a Venezuela

O FMI havia se comprometido a ajudar os países mais afetados, porém vão obedecer aos EUA, colocando vidas em risco

Tradução: Ítalo Piva

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Milhares de Venezuelanos em marcha comemorando 31 anos do Caracazo, mobilizações em massa denunciando o FMI, neo-liberalismo e o imperialismo norte-americano - AVN

No dia 16 de março de 2020, a diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, escreveu um post no blog do site do órgão que é representativo do tipo de generosidade necessária no meio de um pandemia global: “O FMI está pronto para mobilizar sua capacidade de financiamento de US$ 1 trilhão para ajudar nossos membros”. Países com “necessidades urgentes de pagamento” poderiam ser acudidos pelo “kit emergencial de distribuição de fundos”. Através desses mecanismos, o FMI disse que poderia providenciar US$ 50 bilhões para países emergentes e US$ 10 bilhões para países de baixa renda com uma taxa de juros de 0%.

Um dia antes do pronunciamento público de Gerogieva, o Ministério de Relações Exteriores da Venezuela enviou uma carta ao FMI, pedindo fundos para financiar o “sistema de detecção e reação”, parte de seus esforços de combate ao coronavírus. No comunicado, o presidente Nicolás Maduro escreveu que seu governo está adotando “diferentes medidas preventivas e seguindo protocolos de controle exaustivos para proteger o povo venezuelano”. Medidas como essa precisam de financiamento, razão pela qual o governo está “pedindo a sua honorável organização para avaliar a possibilidade de conceder à Venezuela, uma linha de crédito de US$ 5 bilhões do Instrumento de Ação Rápida do seu fundo emergencial”.

A política de Georgieva de liberar assistência especial para países em necessidade devia ter sido o suficiente para que o FMI aprovasse a ajuda que a Venezuela pediu. Porém, muito rapidamente, o fundo recusou o pedido.

É importante ressaltar o fato de que o FMI negou esse pedido no mesmo momento em que o coronavírus começou a se espalhar pela Venezuela. No dia 15 de março, quando o governo venezuelano enviou a carta ao FMI, Maduro se encontrou com oficiais do alto escalão em Caracas. O órgão farmacêutico da Venezuela (CIFAR) e empresas de equipamentos médicos disseram que seriam capazes de aumentar a produção de máquinas e medicamentos para combater a crise, mas que, para isso, precisariam importar matérias-primas. Foi para pagar por essas importações que o governo venezuelano pediu dinheiro ao FMI. Negar o empréstimo vai diretamente afetar o sistema de saúde venezuelano e impedir que o país combata efetivamente a pandemia do coronavírus.

“Essa é a situação mais grave que já vimos”, afirmou o presidente Maduro ao efetivar novas medidas contra a crise. O governo venezuelano impôs uma quarentena nacional por tempo indeterminado e criou – baseado no modelo das comunidades autoadministradas – um processo de distribuição de comida e itens de necessidade básica. Todas as instituições governamentais estão envolvidas em ajudar a “diminuir a curva” e “quebrar a corrente” de transmissão. Porém, por conta da rejeição do FMI, será mais difícil produzir kits de teste, respiradores e remédios importantes para aqueles infectados com o vírus.

Venezuela e o FMI

A Venezuela é membro fundador do FMI. Apesar de ser um Estado rico em petróleo, o país já foi ao fundo por ajuda diversas vezes no passado. Um ciclo de intervenções do FMI no início dos anos 1980 e 1990 criaram a situação que fez a elite venezuelana perder toda a legitimidade; foi nas costas desses protestos em massa que Hugo Chávez construiu a coalizão que o colocou no poder em 1998, e deu início à Revolução Bolivariana em 1999.

Em 2007, a Venezuela pagou de volta tudo que devia ao FMI e ao Banco Mundial, cortando os vínculos com essas instituições, na esperança de criar o Banco do Sul – com raízes latino-americanas – como uma alternativa. Antes que este banco pudesse ser viabilizado, uma crise financeira atingiu o continente, causada pela queda nos preços de commodities.

A economia venezuelana dependia das exportações de petróleo para gerar a renda necessária para importar produtos. Junto à queda do preço do barril, veio uma nova rodada de sanções unilaterais estadunidenses. Essas impedem que empresas de petróleo e transporte lidem em qualquer capacidade com a Venezuela; bancos internacionais apreenderam bens Venezuelanos em seus cofres (inclusive US$ 1,2 bilhão em ouro no Banco da Inglaterra) e pararam de fazer negócios com o país. Essas sanções, que pioraram depois de Donald Trump virar presidente dos Estados Unidos, diminuíram muito a capacidade da Venezuela em vender seu combustível e comprar produtos, inclusive mantimentos para seu setor de saúde.

O FMI escolhe lados

Em janeiro de 2019, o governo norte-americano tentou um golpe contra o presidente Nicolás Maduro. Seu instrumento escolhido foi o deputado Juan Guaidó, que Washington declarou como presidente da Venezuela. Rapidamente, bancos nos Estados Unidos começaram a tomar posse de bens venezuelanos em suas mãos e os entregar a Guaidó.

Logo em seguida, numa decisão extraordinária, o FMI anunciou que Caracas não poderia utilizar seus US$ 400 milhões em SDR (direitos de saque especiais), a moeda do FMI. Justificaram a ação alegando a incerteza política na Venezuela. Em outras palavras, por causa da tentativa de golpe, que falhou, o FMI disse que não ia “escolher lados” na situação; e não tomando partido, o fundo impediu que o governo venezuelano acessasse seu próprio dinheiro. Surpreendentemente, Ricardo Hausmann, ex secretário de Guaidó, disse na época que sua expectativa era de que, quando houvesse a troca de regimes, o dinheiro estaria disponível ao novo governo. Isso é um exemplo do FMI intervindo diretamente na política venezuelana.

Naquela época, tanto como agora, o FMI não nega que o governo de Nicolás Maduro seja o legítimo governo venezuelano. O órgão continua a reconhecer oficialmente que o representante do país é Simon Alejandro Zerpa Delgado, o ministro de finanças de Maduro. Uma das razões disso é o fato que Guaidó não conseguiu o apoio de uma maioria de Estados membros do Fundo. Porque Guaidó não conseguiu estabelecer sua legitimidade, o FMI – mais uma vez de maneira extraordinária – negou ao governo de Maduro seu direito de acesso a seus próprios fundos e de fazer empréstimos com a mesma facilidade que outros membros.

Rejeição do FMI

Normalmente, o FMI demora quando recebe um pedido de dinheiro. O pedido é estudado por analistas, que fazem um levantamento da situação e determinam se o pedido é legítimo. Dessa vez deram uma resposta imediatamente: não.

Um porta-voz do fundo – Raphael Aspach – não respondeu perguntas específicas sobre essa decisão; em 2019, foi igualmente cauteloso ao explicar a não liberação de US$ 400 milhões em SDR. Dessa vez, Anspach nos enviou um nota oficial que o FMI já havia divulgado na imprensa. O comunicado diz que embora o órgão simpatize com a situação do povo venezuelano, “não está numa posição para considerar esse pedido”. Por quê? Porque o FMI diz que “relações com países membros são predicadas no reconhecimento oficial de seus governos pela comunidade internacional”. No momento, não há “esclarecimento sobre o reconhecimento”, diz a nota.

Mas existe clareza. O FMI continua a reconhecer oficialmente o ministro de finanças venezuelano. Isso deveria ser o parâmetro oficial para fazer essa determinação. Porém, não é. O fundo está recebendo ordens dos Estados Unidos. Em abril de 2019, o vice-presidente norte-americano, Mike Pence, foi ao Conselho de Segurança da ONU, onde declarou que o órgão deveria aceitar Juan Guaidó como o legítimo presidente da Venezuela. Depois, ele se virou ao embaixador venezuelano nas Nações Unidas, Samuel Moncada Acosta, e disse: “Você não devia estar aqui”. Esse é um momento de enorme simbolismo, os EUA se comportando como se a ONU fosse sua casa e eles podem convidar quem quiserem.

A rejeição do pedido venezuelano de US$ 5 bilhões segue as declarações de Mike Pence. É uma violação do espírito de cooperação internacional que está no coração da Carta das Nações Unidas.

*Ana Maldonado é parte da Frente Francisco de Miranda (Venezuela); Vijay Prashad é historiador, jornalista e editor indiano; Paola Estrada faz parte do Secretariado da Assembleia Internacional dos Povos e é integrante do Capítulo Brasil da Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (Alba); e Zoe PC escreve para o Peoples Dispatch.

Edição: Vivian Fernandes