ENTREVISTA

Fernando Atria: pandemia e quarentena fortalecerão processo constituinte no Chile

Para presidente do partido Fuerza Común, crise sanitária evidencia ainda mais o fracasso do sistema neoliberal no país

Brasil de Fato | Valparaíso, Chile |
Fernando Atria é considerado "radical" mesmo entre socialistas chilenos - Arquivo pessoal

A pandemia do coronavírus obrigou o Chile a adiar seu plebiscito constitucional — que ocorreria em 26 de abril — para 25 de outubro. Um dos primeiros a defender o adiamento, para que o país centrasse esforços no combate à covid-19, foi Fernando Atria, famoso advogado constitucionalista e presidente do Fuerza Común, partido já oficializado, mas que está reunindo assinaturas para poder concorrer a eleições no país.

Alguns o chamam de “Bernie Sanders chileno”, em referência ao senador e pré-candidato democrata à Presidência dos Estados Unidos, considerado um "radical" mesmo em seu partido. De modo similar, quando militava no Partido Socialista chileno, Atria se tornou uma voz isolada de crítica radical ao modelo neoliberal, enquanto que seus pares pareciam ter assimilado vários preceitos do Consenso de Washington.

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Quando aconteceu a revolta social, em outubro de 2019, e sobretudo em novembro, quando surgiu o acordo para se realizar o plebiscito constitucional, Atria foi um dos primeiros a defender a consulta como uma oportunidade de realizar a transformação profunda que muitos queriam para o país. Agora, quando o adiamento desse plebiscito é visto com desconfiança por muitos, ele considera que esse período, pelo contrário, fortalecerá a demanda social por um Chile com outro modelo econômico e político.

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Nesta entrevista exclusiva para o Brasil de Fato, o advogado explica por que acredita que a quarentena é favorável ao clima de transformação no Chile e fala, também, sobre a importância de uma nova constituição para o país.

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Brasil de Fato: Antes da chegada do coronavírus, o assunto mais importante no Chile era o plebiscito constitucional, surgido da revolta social de outubro de 2019, e que estava marcado para o dia 26 de abril. Com a quarentena, esse plebiscito teve que ser adiado para 25 de outubro. Essa foi a única mudança? Que outras coisas foram alteradas, além da data?

Fernando Atria: Em um princípio, o processo que vinha acontecendo desde o dia 18 de outubro (de 2019, quando aconteceu a primeira grande manifestação em Santiago), as causas e condições que o explicavam seguem vigentes. O plebiscito, efetivamente, foi adiado para outubro (de 2020). Legalmente, essa mudança de datas é a única alteração, não há outra. Com respeito ao clima de transformações instalado pela revolta social, obviamente houve mudanças com respeito a qual é a principal preocupação neste momento. Creio que é preciso ver quais serão as consequências das medidas que serão tomadas para a contenção da pandemia. Muitos analistas preveem que a situação econômica das pessoas vai piorar consideravelmente. E, se isso acontecer, a questão constituinte passaria a ter ainda mais relevância. Então, uma vez que a pandemia se acabe, o tema constitucional voltará a ter bastante força, e a cidadania deverá voltar a reivindicar mudanças na mesma linha do que ocorreu em outubro passado.

Brasil de Fato: Podemos considerar que essa situação atual é prejudicial ao processo constitucional no qual o país já se via inserido?

Fernando Atria: No momento, existe uma emergência que é totalmente independente de considerações políticas, ao menos em sua origem, e que concentra as atenções, porque evidentemente é uma questão maiúscula. Creio que o tom e as atitudes que são necessárias para enfrentar uma emergência como esta serão tema de debate depois que esta emergência passe. Ou seja, estamos enfrentando esta pandemia em um cenário onde temos uma institucionalidade política severamente deslegitimada. Temos um governo que não se atreve a tomar as medidas drásticas que são necessárias, porque está comprometido com certos interesses econômicos. Esses fatores serão tema de discussão quando a questão constitucional voltar à tona.

Brasil de Fato: Há quem entenda, no entanto, que a quarentena pode levar a uma desmobilização da população. Mas você pensa o contrário, que pode favorecer o movimento social. Por quê?

Fernando Atria: Em uma situação de pandemia, na qual a lógica, ou o sentido comum neoliberal, do "cada um por si" se choca com a realidade, com a experiência que se está vivendo neste momento. Estamos vendo, agora, que estamos todos no mesmo barco. Que todos nós temos que nos interessar pelos demais. Esta é a única forma de se salvar de uma pandemia, pensando na segurança de todos. E essa experiência também encontrará sua forma de se manifestar no processo constituinte, porque ficará mais evidente que a ordem neoliberal é insustentável.

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Brasil de Fato: Vamos voltar à primeira pergunta, porque até mesmo na origem do plebiscito houve certa desconfiança, por ele ter nascido de um acordo entre partidos políticos que estão em descrédito, e este adiamento surge de outro acordo entre esses mesmos partidos. É possível garantir à população que nenhuma regra será alterada nesses seis meses de diferença?

Fernando Atria: A decisão de adiar o plebiscito partiu de um acordo que teve como condição a não alteração de nenhum outro elemento já estabelecido, a não ser a data. Foi assim desde o princípio da discussão a respeito, e creio que os partidos eram conscientes de que qualquer outra modificação tornaria mais difícil chegar a um acordo. Todo o resto continua igual, para o bem ou para o mal. As perguntas são as mesmas, as alternativas de resposta também. Claro que algumas coisas serão discutidas e terão que ser modificadas de acordo com as necessidades do próprio processo. Por exemplo, a formação das listas de candidatos para a assembleia constituinte, que serão eleitos somente depois do plebiscito, teriam que se basear em uma norma eleitoral a ser estabelecida em junho deste ano. Provavelmente, essa norma deverá ter mais tempo de discussão, para ser melhor elaborada.

Brasil de Fato: Nos próximos meses, os chilenos viverão um período de exceção, que não se sabe ainda, com certeza, quanto tempo irá durar. Você disse que acredita que essa situação poder favorecer a causa, mas os movimentos também precisam manter sua organização durante esse tempo, de alguma forma. Como você crê que isso é possível?

Fernando Atria: Uma das coisas mais impressionantes que estava acontecendo no Chile nestes últimos meses, tão impressionante quanto as mobilizações nas ruas, era o nível de organização e discussão constituinte nas comunidades, em todos os lugares. Havia assembleias, fóruns, conversas, palestras, as pessoas participavam, opinavam, discordavam, chegavam a acordos com as pessoas da sua comunidade, sobre temas locais e nacionais. Isso foi muito importante, e não tenho dúvidas de que elas voltarão com força quando essa pandemia acabar. Até lá, será preciso encontrar outras formas, e já vejo algumas iniciativas nesse sentido. Outro dia eu participei de uma assembleia que se realizou através de videoconferência. É diferente de uma reunião presencial, mas é algo a que nós devemos nos acostumar, e felizmente essa tecnologia nos permite que essas instâncias continuem, apesar do isolamento físico.

 


O advogado e político chileno Fernando Atria / Agência Uno

 

Brasil de Fato: Como constitucionalista, como você explica para um público de fora do Chile a importância que esse processo constitucional tem para os chilenos?

Fernando Atria: O caso chileno mostra qual é o sentido de uma constituição. Uma constituição serve para muito mais que “limitar o poder”, como costumam dizer alguns – os que defendem a constituição atual gostam de dizer isso. Eu diria que essa limitação é a segunda finalidade das constituições. A primeira finalidade é a de organizar e constituir um poder político eficaz, que possa atuar com eficácia. Creio que a constituição chilena atual, imposta por Pinochet, foi desenhada para que não houvesse um poder político capaz de atuar com eficácia quando se requeria transformações no país. Porque a ideia era que isso protegeria o modelo neoliberal imposto pela ditadura. E teve sucesso, pois realmente não foi possível impulsionar medidas transformadoras no Chile nos últimos 30 anos. O custo disso é que o aparato político foi se deslegitimando diante da cidadania, com o tempo, até chegarmos a este ponto, em que os cidadãos veem que suas demandas por transformações são facilmente ignoradas. Por outro lado, essa mesma política responde com rapidez às demandas do poder econômico, e esses cidadãos também percebem isso. Essas duas questões. Tudo isso gera uma deslegitimação das instituições, do Poder Executivo, do Congresso Nacional, dos partidos políticos. E essa deslegitimação afeta também a capacidade de reagir diante de casos de emergência, como estamos vendo agora. Voltando à questão de como a pandemia favorece o processo constituinte, creio que a todos, mesmo os que ainda defendem a atual constituição, ficará claro que, se temos uma institucionalidade deslegitimada, é muito mais difícil reagir a situações assim, então é preciso que o Chile tenha uma nova constituição, que legitime essa institucionalidade aos olhos dos seus cidadãos. A questão fundamental para uma nova constituição no Chile é a de criar condições para estabelecer uma política que seja vista pelo povo de uma melhor forma, não como a prova do seu desempoderamento, e sim como a medida do seu empoderamento. Se a nova constituição conseguir isso, será um sucesso.

Brasil de Fato: Bom, ao menos pelo que se viu nas mobilizações das ruas, e nas assembleias que você lembrou, podemos dizer que há uma maioria no país a favor de transformações nesse sentido, não? De defender mais direitos sociais e maior empoderamento popular.

Fernando Atria: Sem dúvidas. E, a partir do que aconteceu em outubro (de 2019), creio que é muito difícil que essa força social simplesmente se apague, mesmo em uma situação como a de agora. Aliás, nós já vimos efeitos de como esse afã por transformações já produziu mudanças. Na discussão sobre a igualdade para homens e mulheres na constituinte, tivemos uma maioria de votos a favor (da igualdade) que era totalmente inesperada. E essa decisão não foi tomada pelo poder institucional, e sim pela pressão dos movimentos. Eu diria até que arrancada à força pela mobilização das mulheres, já que contou com votos favoráveis até mesmo daqueles partidos que, por anos, bloquearam leis que propunham maiores direitos às mulheres, e isso porque ainda temos uma representação feminina muito baixa. Outro tema que também precisará da pressão popular é o da garantia de representação dos povos originários na assembleia constituinte. É um erro pensar que o processo constituinte está baseado em regras estabelecidas e que não podem ser mudadas. Existe um esquema estabelecido, mas a respeito do conteúdo e que papel terá a força social nesse processo é algo que depende de outras questões. E esse segundo elemento, qual o grau de participação popular que terá este processo, pode ser um fator determinante para o resultado que teremos.

Brasil de Fato: Você é um dos fundadores e presidente do partido Fuerza Común, um partido jovem e um dos que mais têm atuado em favor do processo constituinte. Como pretendem atuar durante as próximas semanas e que papel pretendem exercer quando seja retomado esse processo constituinte?

Fernando Atria: Fuerza Común é um partido que está em formação. A ideia política que leva a essa criação é a de que o processo constituinte tem duas etapas. A primeira de negação, quando o povo foi às ruas para negar a atual constituição, não ao neoliberalismo, não ao sistema de previdência privada, não, não, não… Naquele momento de negação, não era necessário haver articulação política. Basta que haja uma mobilização social, e essa negação é o que cria o clima de transformação, de que temos que transformar este país, que vai até o plebiscito. Depois do plebiscito, haverá um outro momento de positividade, da necessidade de construir algo no lugar. Aquele "não" do começo terá que ser um "sim" a uma nova constituição. Para esse momento da positividade, é preciso articulação política. Uma força social que não estiver politicamente articulada corre o risco de ficar de fora do processo. Não me refiro a questões teóricas ou abstratas. Sem articulação política, a possibilidade de que essa força social, que tornou possível o processo constituinte, participe da assembleia, com candidatos e uma presença real, são muito menores. Para que não seja assim, será preciso alguma forma de organização e articulação política. O problema é que essa força social não está disposta a participar através dos partidos políticos tradicionais, que estão deslegitimados, são parte da crise institucional que provocou este processo. Também será difícil que participem como independentes, porque as condições são adversas para os candidatos independentes. A terceira possibilidade é que se utilizem partidos políticos surgidos a partir dessa crise com a finalidade de permitir que este processo constituinte inclua aqueles amplos setores com uma visão em comum, uma visão constituinte comum. Os que querem uma nova constituição com uma democracia mais profunda, ampliação dos direitos sociais, um novo modelo de desenvolvimento econômico. É para essa missão que surge Fuerza Común, para ser não o único, mas um dos representantes desse anseio por um Chile diferente do que temos hoje em dia.

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Brasil de Fato: Como as chilenas e os chilenos que estão no Brasil podem ter mais contato com as ideias do Fuerza Común?

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Fernando Atria: Nas últimas semanas nós vínhamos em uma campanha territorial para reunir assinaturas, para oficializar a criação do partido, mas tivemos que interrompê-la, já que a ordem agora é evitar as aglomerações. Inclusive para a segurança dos nossos próprios voluntários e para os demais. Então, nossa campanha passou a ser digital. É algo que ainda estamos preparando, estamos em pleno processo de elaboração dessa estratégia. Mas a vantagem de poder fazer isso virtualmente é que nos permite chegar a chilenos e chilenas que estão em vários lugares do mundo, também no Brasil. Por uma questão legal, precisamos especialmente de assinaturas em certas regiões do Chile, como Valparaíso e a Região Metropolitana de Santiago, para que o partido possa ser oficializado, mas isso não quer dizer que as outras adesões não são bem-vindas. Por isso, eu convidaria a todos os chilenos e chilenas que estão no Brasil a conhecer a página web de Fuerza Común, para que conheça o nosso projeto, nossas ideias, como funcionamos etc.. Aqueles que tiverem documento de identidade chileno e clave única (senha de acesso a todos os serviços estatais chilenos) podem assinar e apoiar o partido daí, do Brasil. Na nossa página está toda a explicação de como fazer isso. Agora, mesmo quem não puder assinar, ou não quiser, não há nenhuma obrigação de fazê-lo. Se quiserem apenas se inscrever na página para participar dos debates e das atividades que pretendemos fazer online durante esse período de confinamento, também serão bem-vindos. Estaríamos muito felizes de poder ser a conexão desse público com um debate sobre este novo Chile que queremos construir.

Edição: Vivian Fernandes