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Ameaça de Doria e Witzel de prisão para manter quarentena é criticada por juristas

Para membro da OAB-SP, o medo do coronavírus "não pode ser o vetor para que se acabe com as liberdades"

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Promotores de discursos punitivistas, os governadores Doria, de São Paulo, e Witzel, do Rio de Janeiro, dão pistas de ações mais duras para garantir isolamento - Foto: Reprodução / Twitter

Em Araraquara, no interior de São Paulo, na última segunda-feira (13), uma mulher fazia exercícios em um parque público, que estava fechado por força de um decreto da prefeitura, quando foi abordada por agentes da Guarda Civil Municipal. Revoltada, ela gritou que a determinação da cidade não estava acima da Constituição e que o coronavírus seria um circo armado para implantar “uma ditadura comunista”. A administradora de empresas, que chegou a morder os oficiais, foi presa e levada à delegacia.

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A prisão foi comentada pelo governador de São Paulo, João Doria (PSDB), em entrevista à Rádio Eldorado, nessa quarta-feira (15), que não descartou utilizar a mesma medida em todo o estado. “Nós temos que apelar muito para a consciência das pessoas, muito. A questão do endurecimento é uma alternativa, mas ela é a última delas. Eu não gostaria, como governador, de ter que declarar que vamos ter que prender pessoas pelo fato de estarem fazendo aglomerações”, afirmou.

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Não é a primeira vez que Doria ameaça implantar medidas extremas contra paulistas que boicotarem o isolamento social. No dia 9 de abril, o governador afirmou que “queria evitar isso, porque isso significa que pessoas não poderão apenas receber advertências, mas também multa e voz de prisão. Desejo ter que evitar isso. As pessoas precisam ter consciência."

No Rio de Janeiro, o governador Wilson Witzel (PSC) já usava o discurso punitivista no dia 30 de março. “Estou pedindo, daqui a pouco vamos começar a levar para a delegacia. Vou pedir mais uma vez, não saia de casa. Até então foi um pedido, agora estou dando uma ordem.”

Especialistas escutados pelo Brasil de Fato afirmam que as ameças de prisão e multa, comuns nos discursos dos governadores Witzel e Doria, podem ser constitucionais, mas carecem de decretos específicos, que expliquem as limitações dos cidadãos em períodos excepcionais.

Para o coordenador do Núcleo de Ações Emergenciais da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP), Arnóbio Rocha, não há, ainda, amparo legal para prisões. “Esse medo [do coronavírus] não pode ser o vetor para que se acabe com as liberdades, porque elas não foram suspensas. Temos que pesar as medidas coletivas e as liberdades individuais. Segundo, estamos falando em tese, não temos um decreto e nem uma ordem clara para analisar”, expõe o advogado, que é membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

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Já o advogado criminalista Ariel de Castro Alves, membro do Grupo Tortura Nunca Mais, lembra que o artigo 268 do Código Penal brasileiro já prevê pena de detenção de um mês a um ano, ou multa, para quem “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”.

Porém, explica Alves, há a necessidade de maior respaldo legal. “Teria que ser feito um decreto do governo do estado ou federal, que tivesse uma tipificação bem clara, definindo o que seria uma aglomeração ou que determinasse para onde as pessoas podem ir quando saem de casa, quantas pessoas podem entrar em um supermercado, quantas devem estar dentro de um banco, como as filas devem ser organizadas, então é necessário uma especificação”, explica.

Para Dimitri Sales, presidente do Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Humana (Condepe) de São Paulo, para disseminar o vírus, é preciso que a pessoa saiba que está contaminada. Portanto, é necessário que o governador seja mais específico sobre o que será vedado à população.

“O que cabe ao governador é estabelecer limitações no direito de ir e vir, considerando que cabe a ele estabelecer limites para organizar a sociedade, isso é papel do governador. Por exemplo, quando o prefeito estabelece um rodízio de veículos, está organizando a sociedade. O meio adotado é decreto, assim ele pode fechar um determinado comércio em todo o estado”, explica Sales.

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Prisões

Para Alves, “estamos em um momento que os direitos individuais podem ser restringidos em nome dos direitos coletivos, dos direitos de toda a comunidade, do bem maior, que é a vida humana. É um período extraordinário e excepcional”. Porém, o advogado explica que “ninguém ficará preso por isso, serão penas restritivas de direito e prestação de serviços à comunidade.”

As manifestações do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) contra o isolamento social seriam passíveis de punição, para Alves. “Deveriam começar prendendo, levando para delegacias e processando, exatamente as pessoas que estão incitando a prática desse crime. Então, essa incitação, que estão cometendo esse próprio crime, que estão fazendo manifestação contra o distanciamento e o isolamento, como ocorreu na avenida Paulista, deveriam ser os primeiros a serem levados às delegacias. O problema é que o próprio presidente da República tem feito isso, ele deveria ser um dos primeiros processados, com base nessa previsão do Código Penal brasileiro.”

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Arnóbio Rocha se preocupa com a precariedade das penitenciárias e prisões brasileiras. “O mais desejável é que haja multas e não prisão, até porque, jogar as pessoas no sistema carcerário pode piorar o cenário de pandemia. O mais aconselhável é investir em campanhas de conscientização”, acredita.

Na mesma linha argumenta Dimitri Sales: “As prisões não atendem à finalidade a que são criadas, que seria a ressocialização, sabemos a situação das prisões do Brasil, são ambientes de insalubridade e não me parece que prender as pessoas nesse espaço contribuiria para conter o avanço do coronavírus.”

A excepcionalidade do momento que o país vive deve ser levado em conta, para Dimitri. O presidente do Condepe prega um maior investimento em conscientização da população, para que o uso da força seja desnecessária. Porém, diante da desobediência, fica reticente.

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“No caso da senhora presa em Araraquara, um agente público naquela situação deve fazer o quê? Deixar a pessoa gritando que o decreto não pode ser maior que a Constituição? Havia um decreto que mandava fechar o parque e ela descumpriu. O que faz um agente público? Como se cumpre essa ordem? Enfim, eu não defendo a prisão, mas me coloco num conflito e penso no que deve ser feito para que essa determinação de suspender atividades não seja burlada, principalmente numa perspectiva ideológica, que era o que aquela moça estava fazendo”, reage Sales.

Edição: Vivian Fernandes