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De Shakespeare a Bolsonaro: ser ou não ser, eis a questão

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O ministro “superpoderoso” perdeu o ministério, saiu com a toga (simbólica) manchada, depois de um “infantilizado” enfrentamento (de ambas as partes) - Evaristo Sa / AFP
Ser ministro ou qualquer outro figurante do governo Bolsonaro significa “não ser”, coisa alguma

Por Marília Lomanto Veloso*

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Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre
Em nosso espírito sofrer pedras e setas
Com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja,
Ou insurgir-nos contra um mar de provações
E em luta pôr-lhes fim? Morrer... dormir: não mais.

Shakespeare

William Shakespeare, o famoso dramaturgo inglês, atravessou os séculos com Hamlet, o Príncipe da Dinamarca, tragédia escrita provavelmente entre 1599 e 1602, contando o drama do nobre com a execução do próprio tio, que teria assassinado seu pai para assumir o poder, casando-se ainda com a cunhada.

Faltavam a Hamlet, segundo reconta a história, sangue frio e estratégia para a revanche necessária que era matar o tio. A imagem de Hamlet e de seu luto infinito alçou voo no tempo, imortalizando seu conflito ético e moral no diálogo com uma caveira a quem confessou o “ancestral dilema” que envolvia uma questão existencial com a célebre indagação sobre “ser ou não ser”.

Silvia Marques, escritora, atriz, psicanalista lacaniana e doutora em Comunicação e Semiótica, se inspira na análise “shakespeariana” do historiador Leandro Karnal, para refletir sobre a impossibilidade de “não ser” para muitas pessoas. E questiona: “Não ser como? Somos seres humanos. Estar no mundo simplesmente inviabiliza a possibilidade de não ser. Será mesmo?

O governo de Jair Bolsonaro é palco ideal para atravessar por essa nuvem psicanalítica-filosófica, em razão de “possíveis dilemas” que “talvez” habitem o corpo, a mente e a alma de “alguns” sujeitos pertencentes ao eleitorado que resolveu ignorar as evidencias rigorosas da “tragédia” política de efeitos fatais para o Estado Democrático de Direito, escancaradamente manifestadas por ocasião da “farsa” que o sistema de justiça acolheu como “campanha”, praticada pelo então candidato à presidência da República do Partido Social Liberal (PSL).

A eleição de 2018, construída no embuste tecnológico, garantiu a faixa presidencial a Jair Bolsonaro.

Fatos apontam que foi graças a Sergio Moro, a seu pacto libertino com o Ministério Público e com interesses do capital externo que Jair Bolsonaro está “presidente”, lugar de onde esbraveja sua estroinice, berra sua incultura, ativa sua conduta socialmente desajustada, vomita o palavrório tosco, as opiniões aparvalhadas e as manifestações desconexas que empalidecem quem escuta, causando estupor e perplexidade pela dimensão aterradora e desrespeitosa com que dispara contra pessoas, princípios e valores humanos, desqualificando e desonrando a imagem do Brasil.

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Moro foi numerosas vezes contestado por juristas do Brasil e do mundo, em livros e artigos que implodiram as decisões contaminadas por graves (e intencionais) anomalias no devido processo legal, praticadas impunemente pelo sistema de justiça, (leia-se, juiz Sergio Moro, procurador da República Deltan Dallagnol, Tribunais), no julgamento do ex-presidente Lula.

E sempre sob aplausos frenéticos das oligarquias políticas e de um fluxo midiático hegemônico, espúrio e serviçal do capitalismo.

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Sergio Moro, no mais explosivo e contundente desvio ético, assumiu o Ministério da Justiça e da Segurança Pública do governo que ajudou a eleger, consolidando, com isso, seu irretorquível papel de um dos principais protagonistas dessa comédia de brutalidade primaria que é o governo Bolsonaro.

Contou, ainda, com a participação de outros atores e atrizes que também formaram pacto com uma eleição ardilosa, empurrada pela força midiática, a mesma que hoje, na crise pandêmica, despeja uma “enxurrada crítica” sobre o eleito, pela postura que beira a demência, tal o despojo de racionalidade mínima exigida ao mais tolo dos humanos. 

O ministro “superpoderoso” perdeu o ministério, saiu com a toga (simbólica) manchada, depois de um “infantilizado” enfrentamento (de ambas as partes), com o sujeito que sem qualquer prurido ético ajudou a ocupar o mais alto cargo do país.

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Seu discurso de despedida, pífio e tedioso, equiparado ao do “falso chefe”, pretendia iludir a opinião pública destituída de criticidade, a mesma que aplaudiu o arbítrio e os abusos praticados pelo então juiz da Lava Jato, afastando da disputa o candidato Luiz Inácio Lula da Silva, por condenação de insuspeito confronto com o ordenamento jurídico e em cumplicidade com o Ministério Público Federal (MPF), cuja voracidade perdeu força com a servil obediência do atual Procurador Geral da República às ordens do Planalto.

Não existem motivos para manifestar compaixão pela queda de Sergio Moro, trata-se de mais um episódio da desastrosa e turbulenta gestão do presidente eleito na avalanche de fake news e pelo sistema de justiça que validou e legitimou a insidiosa vitória do atual ogro no poder.

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Ser ministro ou qualquer outro figurante do governo Bolsonaro significa “não ser”, coisa alguma, ou, na melhor das hipóteses, “existir” como proscrito que abdica da condição de pessoa, para “ser” o que o patrão “manda que seja”.

Por um lado está Sergio Moro, vaidoso e infiel ao juramento que fez como magistrado. Não tem cultura maior que seu tamanho e seu compromisso com o discurso sedutor do combate à corrupção, ostentando o enredo da Operação Mãos Limpas, que destituiu as liberdades na Itália e gestou o fascismo, para sitiar as práticas abusivas com as quais burlou (e continua a ludibriar) o imaginário de uma diversidade de pessoas acríticas, ingênuas, socialmente furiosas, politicamente contrarias a governos democráticos voltados para projetos populares, e ainda, sujeitos empoleirados no discurso moralista com que ocultam os preconceitos e a intencionalidade de manutenção do status quo.

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Por outro lado, Jair Bolsonaro se diz “estadista” e grita “eu sou a Constituição”, postura de irrecuperável lucidez, precisando ir à Corte da Justiça, exigindo resistência popular a seu mandato oblíquo. Bolsonaro enfrenta a reação penal pelo cometimento de “infração de medida sanitária”, quando incitou publicamente a desobediência e o descumprimento de medidas de combate ao coronavírus, provocando aglomeração, contrariando as orientações de seu próprio ministro da Saúde.

No Tribunal Penal Internacional (TPI), sua conduta na crise da covid19 instigou o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHU) e a Comissão Arns a protocolarem denuncia por genocídio contra os povos indígenas. A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), foi à Corte de Haia denunciar o “presidente” pela prática de crime contra a humanidade, pela exposição da vida de cidadãos brasileiros ao contágio.

Dois personagens “no poder e pelo poder” que merecem reflexão com o olhar da psicanalista Silvia Marques sobre a pergunta de Hamlet, que traduz como uma questão “profundamente existencial ou existencialmente profunda”, que fala sobre “o existir como viver com autenticidade, com integridade, para além do “existir biologicamente falando”. E em linguagem poética, arremata: “Ser exige que rasguemos as várias peles da alma até encontrarmos uma face horrenda e linda”.

Sergio Moro e Jair Bolsonaro, de fato, “Não são”.


* Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, Mestra e Doutora em Direito Penal, Professora aposentada da UEFS. Promotora de Justiça da Bahia, aposentada, membro do CDH da OAB/BA e da ABJD.

Edição: Leandro Melito