valor fundamental

Artigo | É tempo de dizer: "Todas as vidas valem!"

Aprofundamento da desigualdade torna sobrevivência mais difícil especialmente a mulheres, negros, indígena e camponeses

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Garoto da comunidade ribeirinha de Educandos usa uma máscara facial durante a pandemia de coronavírus em Manaus (AM)
Garoto da comunidade ribeirinha de Educandos usa uma máscara facial durante a pandemia de coronavírus em Manaus (AM) - Michael Dantas / AFP

A gravidade do atual momento no qual enfrentamos o agravamento da situação econômica, humanitária, sanitária e ambiental em razão da pandemia da covid-19 provocará novas formas de reorganização das relações entre humanos e desses com o ambiente natural? Será momento de esperançar para novas possibilidades? Questões difíceis, mas que precisam de resposta.

No Brasil, a situação da pandemia se agrava diariamente. Todos os dias bate às nossas portas o drama de milhares de pessoas que não conseguem acessar os serviços básicos de saúde para se cuidar e lutar pela sua sobrevivência, ainda que o direito à saúde esteja declarado como direito fundamental na Constituição Federal.

O aumento da fome e da miséria atinge a vida das populações pobres e marginalizadas do campo e da cidade. O aprofundamento das desigualdades faz com que a sobrevivência seja cada vez mais difícil para as maiorias, particularmente para mulheres, negros/as, indígenas, camponeses, aqueles/as que sempre foram deixados/as no caminho da história pelo modelo concentrador e excludente.

O aprofundamento das desigualdades faz com que a sobrevivência seja cada vez mais difícil para as maiorias, particularmente para mulheres, negros/as, indígenas, camponeses, aqueles/as que sempre foram deixados/as no caminho da história pelo modelo concentrador e excludente.

Afirmar a vida como valor mais fundamental e incondicional de todos é central neste momento. A vida é valor (por isso não o tem, o é) e condição de todo valor específico. É por esta razão que não é relativizável. No contexto de uma pandemia que põe sob ameaça todos os corpos vulneráveis e ainda mais aqueles/as em desamparo em razão da desigualdade, da pobreza, da discriminação e do não reconhecimento, afirmar a vida é assumir uma posição radical: não há dúvidas de que proteger e cuidar da vida é a ação a ser feita.

No entanto, há um segmento na sociedade que se reforça pela posição do governo federal, que defende uma perspectiva necrófila e uma necropolítica. Ela se expressa assim: já que haverá contaminação, então que ocorra logo; mortes, haverão! Muitas, infelizmente. “E daí?”. Estas expressões, na mais indisfarçada desfaçatez, produzem a potencialização do risco e ampliam a desproteção e o consequente não engajamento massivo às medidas de cuidado necessárias ao enfrentamento da situação de modo sustentável e responsável. A rigor, promovem a morte.

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Prioridades invertidas

A ação governamental, pelo que inclusive se pode ver na íntegra da gravação da reunião ministerial divulgada na sexta-feira (22), é desenvolvida de modo completamente invertido ao que se poderia razoavelmente esperar devesse ser neste contexto: a proteção ampliada da vida, todas as vidas. Um ministro quer aproveitar a ocasião para “fazer passar a boiada” da desregulamentação das normativas de proteção ambiental; outro desabafa sua posição eugênica antiindigenista e anticiganos e que quer ver ministros do Supremo Tribunal Federal presos; o outro, sua preferência pelo grande capital, seu desprezo pelos pequenos empreendedores e sua defesa do turismo sexual como negócio; outra, a de que ações restritivas de proteção seriam violações de direitos individuais "tout court" ("sem nada mais"), com bravatas de que vai mandar prender governadores e prefeitos.

Explícito fica que a preocupação central está em salvaguardar interesses secundários, de “amigos e familiares”, não as finalidades da República, os bens comuns e as garantias constitucionais. O que menos importa pelo que se viu e ouviu do que se tratou naquela mesa é a proteção da vida das brasileiras e dos brasileiros.

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O governo não só sabe que sua atuação está produzindo efeitos nefastos e mortíferos; não sabe também que pode ser responsabilizado por isso. A medida provisória nº 966/2020, que desagrava a possibilidade de responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da covid-19, é mostra disso.

Ainda que parcialmente corrigida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o simples fato de tal medida existir é um sinalizador negativo para a perspectiva democrática, que inclui a necessidade de a sociedade estar protegida da ação irresponsável dos gestores e de poder contar com os mais amplos e justos recursos para sua responsabilização, se necessário. A redução da possibilidade de responsabilização por ação e omissão em atos que forem caracterizados como tendo sido praticados “com dolo e erro grosseiro” remetem para o desejo de cobertura para uma série significativa de ações para as quais haveria espaço de ação sem responsabilização. Uma vida perdida, ainda que sem dolo ou por erro, que pode até não ser grosseiro, não volta.

A ação decidida das organizações populares da sociedade civil aponta para a direção da defesa da democracia, da luta pela realização dos direitos humanos, da luta por relações econômicas solidárias. Trabalha para que a travessia que se vive no momento da pandemia colabore para a formação de consciência política a respeito da necessidade de superação do neoliberalismo asfixiante, dos discursos e práticas de ódio, das desigualdades aprofundadas, dos racismos institucionalizados, das discriminações recorrentes, do machismo e do patriarcado entranhados, enfim, de todas as práticas que desumanizam.

O engajamento na organização da solidariedade traduzido em doações de alimentos, produtos de higiene e limpeza e de máscaras de proteção individual, a elaboração de propostas de políticas para a proteção social, a incidência pública, ainda que por meio eletrônico, da militância via as redes sociais, a proposição de medidas para o afastamento do atual governo e a realização de novas eleições, num grande esforço conjunto para a efetivação de propostas e ações, vão no sentido da garantia e defesa da vida.

Enfim, não se trata da defesa da vida em sentido genérico e amplo. Trata-se da defesa da vida material, concreta, de cada um/a. Uma vida em abundância, vida que se faz realidade na complexidade, profundidade, qualidade e beleza. E vida de todos e todas e para todos e todas, o que requer ser intransigente na necessidade da viabilização das condições para que todas as vidas possam permanecer vivas e que a proteção para fazer frente à condição vulnerável e ao agravamento das vulnerabilidades seja medida urgente, ampla e pronta.

Não temos dúvidas de que “todas as vidas valem” e que, por ser assim, somente a luta daqueles e daquelas que assim entendem redundará no afastamento daquelas posições que defendem o contrário. A promoção da vida é uma luta, dessa luta não saio, dela ninguém nos tira.

 

*Paulo César Carbonari é doutor em filosofia (Unisinos), militante de direitos humanos, coordenador geral da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF) e membro da coordenação nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).

**Euzamara Carvalho compõe o Setor de Direitos Humanos do MST, secretária nacional do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) e membro da executiva nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

Edição: Camila Maciel