VIOLÊNCIA POLICIAL

Indignação da revolta de Ferguson retorna "por mudança radical" nos EUA, diz ativista

Idalin Bobé, que esteve na revolta de Ferguson, comenta similaridades dos protestos com levante antirracista atual

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Ouça o áudio:

Revolta em 2014 também eclodiu em repúdio à morte de um jovem negro de 18 anos após violência policial (Imagem de ato em Houston, nos EUA, nesta semana) - Foto: Marx Felix/AFP

A indignação dos protestos antirracistas que se espalham pelo mundo contra o assassinato de George Floyd, ecoam o legado de levantes históricos contra a brutalidade policial nos Estados Unidos. 

Desde as manifestações de 1698, quando Martin Luther King foi assassinado por um supremacista branco à Revolta de Ferguson em 2014, como ficaram marcados os mais de 100 dias de protestos na cidade de St. Louis em repúdio ao assassinato de Michael Brown. 

Em 9 de agosto daquele ano, o jovem negro de 18 anos foi alvejados por seis tiros pelo policial branco Darren Wilson, que o abordou de forma violenta após ser chamado para atender uma ocorrência. Brown foi assassinado após dois minutos de abordagem. 

Em entrevista ao Brasil de Fato, a ativista Idalin Bobé, que participou dos protestos duramente reprimidos na cidade de Ferguson, detalha o contexto socioeconômico que implodiram as consecutivas manifestações e o que mudou após o levante. 

Devido à continua ostensividade policial e altos níveis de desemprego, ela afirma que a cidade estava pronta prestes a implodir a qualquer momento, o que aconteceu com o assassinato de mais um jovem negro.

:: Não há revoltas como essas desde a morte de Martin Luther King, diz ativista dos EUA :: 

“Quando aconteceu o caso de Michael Brown, foi o momento em que as pessoas foram para as ruas. Não são pessoas com ensino universitário, profissionais. Foram pessoas pobres e da classe trabalhadora. Jovens negros que estão super pressionados, que estavam revoltados e deixando claro que reivindicam dignidade humana, justiça e querem que os policiais sejam responsabilizados”, conta Bobé.

Para ela, há muitas lições que podem ser tiradas de revoltas antirracistas anteriores como a de Ferguson, mas pondera que não há precedentes para o movimento atual impulsionado pela morte de Floyd, já que a insurgência acontece em meio a pandemia global da covid-19 e uma profunda crise econômica que atinge a sociedade estadunidense como um todo. 

A fundadora da organização TechActivist denuncia a tentativa de criminalização dos protestos por George Floyd que chegam ao seu décimo dia nesta quinta-feira (4). 

“A mídia, assim como em Ferguson, está tentando mostrar aqueles que estão protestando como violentos, dizendo que estariam ‘destruindo comunidades’, quando os protestos não estão destruindo suas comunidades. O que destrói as comunidades é o desemprego, é a falta de verba para escolas, os desertos alimentares. Tudo que vimos acontecer em Ferguson acontece em todo os Estados Unidos”, declara a ativista negra nascida no território estadunidense de Porto Rico.

Em resposta à pressão dos protestos por todo o país – que continuam mesmo com o toque de recolher determinado em mais de 40 cidades e repressão contínua da Guarda Nacional ordenada pelo presidente Donald Trump – a promotoria do estado de Minnesota ampliou as acusações contra os agentes envolvidos na morte de Floyd.

:: Protestos antirracistas convulsionam EUA e Trump ameaça usar Forças Armadas ::

Com decisão anunciada nesta quarta-feira (3), Derek Chauvin, o policial branco que sufocou George Floyd até a morte ao pressionar seu pescoço com o joelho, será acusado por homicídio de segundo grau, o equivalente ao homicídio doloso, quando há a intenção de matar, previsto na lei brasileira. 

Ele havia sido indiciado na semana passada por homicídio em terceiro grau. Com a nova acusação, sua pena pode chegar a 40 anos de prisão. Os outros três policiais, Tou Thao, Thomas Lane e J. Alexander Kueng, foram indiciados como cúmplices do homicídio.

Não houve justiça para nenhuma pessoa negra que foi assassinada por policiais ou seguranças brancos.

Segundo Idalian Bobé, a mudança na acusação não significa que haverá justiça por George Floyd. Mesmo após mais de cem dias de protestos em Ferguson, marcados pela repressão policial e detenções abusivas, o policial Darren Wilson não foi condenado. 

“Eu fiquei em Ferguson para dar suporte por 15 meses. Durante esse período, fui presa duas vezes. Por sorte, nos temos um ótimo movimento de advogados que trabalham para nos tirar entre 24h e 48h. Ainda assim, eu fiquei mais tempo que Darren Wilson na cadeia, mesmo que não tenha ficado detida por tanto tempo. Não houve justiça para nenhuma pessoa negra que foi assassinada por policiais ou seguranças brancos.”

Um memorial organizado pelo família de Floyd no santuário da North Central University, em Minneaopolis, deve intensificar a onda de protestos nos atos nos Estados Unidos. Milhares são esperados para cerimônia, que começou às 15h, no horário de Brasília. 


Memorial em homenagem a George Floyd acontece hoje em Minneapolis / Foto; Kerem Yucel/AFP

Outras celebrações e homenagens estão marcadas para o sábado (6) em Raeford, na Carolina do Norte, onde moram outros familiares de Floyd, e para a segunda-feira (8), em Houston, no Texas, onde ele nasceu.

Durante a conversa com o Brasil de Fato, a ativista digital ainda alertou para as novas formas de repressão das forças policiais contra os manifestantes, que estão cada vez mais recolhendo dados e informações privadas para criminalizar a população. 

Bobé fez até mesmo uma sequência de publicações no Twitter para aconselhar medidas de segurança digital aos manifestantes em todo o mundo.

Confira entrevista completa com Idalin Bobé.

Brasil de Fato: Chegamos ao décimo dia de protestos em reação à morte de George Floyd. Qual sua análise sobre esse movimento que se espalhou por todo o mundo?

Idalin Bobé: Esse movimento está vindo em um momento muito único. Temos uma pandemia acontecendo nos Estados Unidos nas últimas dez semanas. Temos mais de 40 milhões de pessoas necessitando de auxílio-desemprego. E não só elas que estão desempregadas, são as únicas que podem pleitear o benefício. O número de desemprego é bem maior e não considera as pessoas que estavam desempregadas antes. 

Temos profissionais da saúde usando sacos de lixo como proteção aqui nos Estados Unidos, porque não há orçamento. Mas, com os protestos, a Guarda Nacional apareceu, a polícia militarizada. Fica a questão: os Estados Unidos não têm orçamento para dar suporte à população e ajudá-la, mas há orçamento e planos para reprimir as pessoas que estão reivindicando direitos humanos?

:: “I can’t breathe”: o grito negro por justiça que queima nos EUA e ecoa pelo mundo ::  

Mesmo antes de George Floyd, tivemos  Ahmaud Arbery, também tivemos Breonna e tantas outras pessoas que têm enfrentado não só a polícia mas supremacistas brancos que acham que é seu dever criminalizar pessoas negras e outras populações não brancas. 

Hoje, 30% das pessoas que moram nos Estados Unidos têm dificuldades para pagar o aluguel. Nós chegamos ao ponto de avisos de despejos, pequenos comércios estão fechando, a gentrificação está se intensificando. As pessoas estão irritadas, não só negros, populações não negras, muçulmanos e LGBTs, as pessoas que já demandam seus direitos humanos. Mas agora, há várias pessoas que acharam que seus empregos estavam salvos e demostrando empatia, pensando: "Meu emprego não está assegurado, minha vida não está segura". 

E mostrando solidariedade às pessoas que estão protestando contra a morte de George Floyd. É possível ver, no vídeo, esse homem por 9 minutos, perdendo o ar. Sua vida indo embora com as pessoas gravando. Não é a primeira vez que isso acontece. Houve isso com Eric Garner, temos Ramsey Orta, que é um preso político que foi a pessoa que gravou [o assassinato de Garner].


Ato em Washington, capital dos EUA, nesta quarta (3); manifestantes saíram às ruas por nove dias seguidos / Foto: Win Mcnamee/Getty Images via AFP

Temos sorte que a pessoa que gravou agora [a morte de George Floyd] está viva e bem, mas geralmente nos Estados Unidos não é assim.

Em Ferguson, onde estão as pessoas que basicamente chamaram a atenção do mundo, temos cinco ativistas que não estão mais conosco. Que morreram, que foram alvos de tiro e queimados vivos em seus carros. E ninguém sabe o que aconteceu com esses ativistas.

Então, há tantas coisas acontecendo agora. Os casos de brutalidade policial estão sendo amplificados. Com certeza será um ano interessante. O desemprego é enorme e pessoas querem dignidade humana. 

A mídia está falando sobre os conflitos que estão acontecendo nas comunidades, mas a mídia não está falando como a classe bilionária lucrou U$ 500 bilhões nas últimas semanas, onde população estadunidense tem que implorar por um cheque de U$ 200 que nem cobre o aluguel na maioria das cidades. São muitas coisas contra as quais as pessoas estão se erguendo nesse momento. Elas estão super frustradas. 

A mídia está falando sobre os conflitos que estão acontecendo nas comunidades, mas a mídia não está falando como a classe bilionária lucrou U$ 500 bilhões nas últimas semanas, onde população estadunidense tem que implorar por um cheque de U$ 200 que nem cobre o aluguel na maioria das cidades.

Há alguns anos vimos outros protestos antirracistas chamarem atenção internacional. Em qual contexto se deu a revolta de Ferguson, em 2014?

Ferguson está em todo lugar, em todo o país. Mesmo se você não é de lá, era possível sentir o chamado para ir a Ferguson, a necessidade de se comprometer na luta por justiça.

Eu sou de Philadelfia e fui para lá em solidariedade. É interessante que as pessoas entendam que não é só por conta de George Floyd que há 130 protestos acontecendo em todo o país. Há muitas camadas nesse processo.

Se você está em Nova York e acontece um caso de brutalidade policial, alguém irá gravar e será reportado. Mas nos subúrbios não há esse tipo de interação, de controle e vigilância. Há muito abuso sem que as pessoas saibam. 


Michael Brown, 18 anos, foi assassinado em menos de dois minutos de abordagem policial; seis tiros foram disparados / Foto: Reprodução/Twitter

Especificamente sobre Ferguson, uma cidade que faz parte da Grande St. Louis, é uma área com 91 municípios. Cada município com seu departamento policial, seus juízes e seus promotores, seus sistema de legalidades. Em uma caminhada de dez minutos, é possível passar por quatro ou cinco deles.

Se você está de carro e a luz traseira está apagada, você será parado por todos os policiais ao longo dos municípios. Isso significa que você terá várias multas. Quando a pessoa não pode pagar, ela é presa.

É interessante que as pessoas entendam que não é só por conta de George Floyd que há 130 protestos acontecendo em todo o país. Há muitas camadas nesse processo.

Eu fui presa algumas vezes em St. Louis durante a revolta de Ferguson e notei, o que os dados também mostram, que apesar da população de Ferguson ser formada por 60% de pessoas negras, 92% das pessoas nas cadeias locais eram negras. E 98% delas estavam lá por não conseguir pagar as multas. 

Então, há um constante assédio da polícia ao longo dos anos e um grande número de desemprego. É basicamente um subúrbio pronto para implodir a qualquer momento.

Quando aconteceu o caso de Michael Brown, é o momento que as pessoas foram para as ruas. Não são pessoas com ensino universitário, profissionais. Foram pessoas pobres e da classe trabalhadora. Jovens negros que estão super pressionados, que estavam revoltados e deixando claro que eles demandam dignidade humana, justiça e querem que os policiais sejam responsabilizados.

:: É importante ver a sociedade por uma lente negra, diz fundadora do Black Lives Matter ::

Não só esses [envolvidos na morte de Brown], mas todos os 91 municípios de St. Louis. É isso que muita gente não sabe que estava acontecendo.

Quando Ferguson acontece, não há só os problemas econômicos. Poucos meses antes, houve o caso do Eric Garner, que também foi enforcado por um policial. Tivemos Trayvon Martin, que foi morto por um segurança branco e latino, que saiu livre, sem nenhum tempo de cadeia pelo assassinato. 

São muitas pessoas irritadas, deprimidas, sentindo que suas vidas não valem a pena e os Estados Unidos continuam fomentando essa narrativa. Muitas pessoas jovens, de diversos lugares, que foram prestar solidariedade a Ferguson.

Há um constante assédio da polícia ao longo dos anos e um grande número de desemprego. É basicamente um subúrbio pronto para implodir a qualquer momento. 


Ações diretas também foram registradas na revolta de Ferguson, em 2014 / Foto: AFP

No mesmo período, tivemos um jovem, Crawford, que foi morto em uma loja do Walmart (em Beavercreek, Ohio) por estar com uma espingarda de ar comprimido. Não é certo que esse garoto que estava só brincando tenha sido alvos de tiros pela polícia. 

Tudo isso estava acontecendo, sem mencionar as pessoas da comunidade trans e mulheres negras que foram assassinadas pela polícia. E também os latinos sem documentos e descendentes negros, que não podem nem ao menos falar porque estão sem documentos.

Todas as comunidades estavam vendo isso. Quando as pessoas começaram a se mobilizar, aquele não era o mesmo lugar do movimento pelos direitos civis. Não são as mesmas táticas policiais. 

:: Vidas negras importam: protestos crescem nos EUA ::

É a mesma polícia, mas agora possuem softwares e monitoramento de dados que estão sendo amplificados. Quando protestamos por mais de 100 dias no departamento policial de Ferguson, vimos que tinham uma placa afirmando que “o treino de social media era obrigatório para os policiais”. 

Nos perguntamos porque eles precisariam disso, se iriam aprender como postar tweets, mas eles estavam aprendendo a extrair dados para pegarem fotos e monitorar transmissões ao vivos. 

Além disso, colocando reconhecimento facial e recolhendo informações dos ativistas para conseguir seus endereços, para chegar em seus lugares de trabalhar. Então há um novo jeito de "prisão" e de infiltrar em protestos.

Eu fiquei em Ferguson para dar suporte por 15 meses. Durante esse período, fui presa duas vezes. Por sorte, nos temos um ótimo movimento de advogados que trabalham para nos tirar entre 24h e 48h. Ainda assim, eu ainda peguei mais tempo que o Darren Wilson na cadeia, mesmo que ainda não tenha ficado detida por tanto tempo. 

Tudo isso estava acontecendo, sem mencionar as pessoas da comunidade trans e mulheres negras que foram assassinadas pela polícia. E também os latinos sem documentos e descendentes negros, que não podem ao menos falar porque estão sem documentos.


Entrevistada do BdF, Idalin Bobé também é integrante da organização TechActivis/ Foto: Arquivo Pessoal

Por quantos dias seguidos aconteceram as manifestações?

Foram 160 dias, todos os dias acontecia alguma coisa. Não era todos os dias que íamos para o departamento de polícia, mas fizemos atividades diferentes. Foi muito interessante porque sabíamos que 200 agentes do FBI estavam em Ferguson e que estavam olhando nossas redes sociais.

Um dia organizamos um protesto falso durante um jogo de futebol americano. Nós não fomos até lá, mas eles adiaram o jogo porque estavam esperando o protesto e na verdade nós fechamos uma rodovia. Usamos uma tática que estavam usando contra nós. 

O que diferencia a revolta de Ferguson da que está acontecendo nesse momento?

Há uma pandemia global mas nacionalmente todos estão sentindo-se abandonados porque perderam seus trabalhos. Estudantes não conseguem se graduar. Nós sentimos essa dor e essa ferida nacionalmente. 

E as pessoas têm tempo para ver a mídia, nem todos estão ocupados assistindo as Kardashians. Estão olhando as notícias porque como a pandemia está acontecendo em nível local e estão vendo vídeos de jovens negros sendo assassinados. Sinto que há muita solidariedade da classe trabalhadora, todo mundo, agora, não mais como uma classe mais avantajada porque eles perderam seus trabalhos.

Eles olham e pensam: "minha vida está em risco". Então há muita empatia. Vemos pessoas brancas, asiáticos e latinos saindo e indo pra rua em muitas cidades.


Idalin Bobé reforça importante da solidariedade neste momento / Foto: Angela Weiss/AFP

O que é muito único e penso que vamos continuar a ver essa unidade acontecendo, e é por isso que a mídia, assim como em Ferguson, está tentando mostrar aqueles que estão protestando como violentos, que estariam "destruindo as comunidades". 

Quando os protestos não estão destruindo suas comunidades. O que destrói suas comunidades é o desemprego, é a falta de verba para escolas, os desertos alimentares. Tudo que vimos acontecer em Ferguson acontece em todo os Estados Unidos.

As pessoas estão, agora, com empatia para ouvir os ativistas. Normalmente, eles dizem: "Aquela pessoa é louca". Falta tanta instrução nesse país que temos esse senso comum que acredita em tudo que a mídia diz. E agora estamos realmente nos perguntando porque não recebemos ajuda, porque os profissionais da saúde não recebem equipamento para proteção, mas há essa polícia militarizada. De onde está vindo essa verba?

Há muitas pessoas fazendo esses questionamentos. Eu fiquei muito surpresa. Também vemos pessoas bem novas, do ensino fundamental e médio, saindo para as ruas, e que não fazem parte de nenhum movimento social em busca de justiça. 

Eles estão apenas se sentindo orgulhosos e reivindicando suas dignidades humanas. "Eu mereço direitos humanos. Todos merecem. Estamos cansados das mentiras, não vamos recuar". 

Em Ferguson tínhamos pessoas jovens, mas não como agora. Tínhamos jovens entre 18 e 30 anos. Agora, vou aos protestos e temos pessoas de 16 a 23 anos. É muito único. E também temos pessoas mais velhas que estão indo às ruas. Porque eles também estão mandando sua solidariedade aos jovens. 

:: Justiça por George Floyd: reação foi gigantesca e multirracial :: 

Em Ferguson, havia vergonha entre os manifestantes. Nós nos sentíamos mal porque a mídia nos fez parecer terroristas, como se fossemos os vilões. 21:36 E tudo que estávamos fazendo era dizer que merecíamos justiça. Que Michael Brown merecia justiça. Em todos os lugares dos Estados Unidos temos que abolir a polícia. 

Essa é outra questão interessante. Em Ferguson, nós estávamos com as mãos pra cima e pedíamos para o policial ser processado pelo crime, mas agora, o que tem sido visto, é que as pessoas estão pedindo pra cortar o financiamento da polícia. Nesse momento, eles estão olhando para as verbas e, em lugares como Los Angeles, onde há a maior população sem teto do país, mais de 50% do orçamento da cidade vai para a polícia. 

Por causa da pandemia, todas as cidades estão tendo os orçamentos cortados mas as instituições policiais não. As pessoas estão se perguntando: "Por que dar suporte para a polícia e não para ações de ajuda?". Isso é uma coisa muito única e que deve ser questionada. 

Falta tanta instrução nesse país que temos esse senso comum que acredita em tudo que a mídia diz. E agora estamos realmente nos perguntando porque não recebemos ajuda, porque os profissionais da saúde não recebem equipamento para proteção, mas há essa polícia militarizada.

O que mudou depois de Ferguson? Quais foram os resultados dessa revolta, por assim dizer?

Eu diria que o que mudou, em primeiro lugar, foi a mentalidade. Nós tínhamos um presidente negro mas isso não significou que estávamos protegidos. 

A Guarda Nacional está atuando sob o governo Trump, é é inimaginável. Ele disse: "começam os conluios, comecem a atirar". Ele olha para os manifestantes brancos e pensam que são pessoas legais. Mas os negros são terroristas, pessoas más, e isso é esperado.

Mas, em Ferguson, as pessoas estavam sendo tratadas de maneira agressiva frequentemente. Eram muitos tiros de balas de borracha... eles passaram por tanto. As pessoas tinham gás lacrimogêneo dentro de suas casas. 


A repressão de Ferguson se repete agora com a revolta antirracista nos EUA / Foto: Jewel Samad/AFP

Os ativistas estavam em lanchonetes se reunindo e o gás lacrimogêneo era atirado dentro dos cafés. E tivemos tudo isso sob um presidente negro. 

Podemos ter pessoas negras em cargos altos, mas isso não quer dizer que a polícia não irá atacar e se mobilizar do jeito que sempre fez. É parte da história deles. 

E é por isso que as pessoas exigem o fim das polícias, porque não podemos reforma-lá. Pós-Ferguson, vimos pessoas tentando reformas. Obama colocou a polícia em supervisão, trouxe pessoas para sentar e conversar com eles, mas isso não mudou nada.

Também vimos pessoas exigindo para sentenças maiores para os policiais que cometeram crimes e perguntando: "Eles, por favor, podem ser condenados?". 

E agora nós queremos que a estrutura da polícia passe por um desmonte porque sua completa organização foi iniciada com base na perseguição aos escravos aqui nos Estados Unidos. 

Das raízes, eles têm políticas racistas e crenças supremacistas brancas. Desde sua fundação. Não é só a supremacia branca, mas o dever de proteger a elite branca e suas propriedades. É uma história muito triste. A população negra e outras populações não brancas era propriedade dos brancos e é por isso que a polícia surgiu. 

Quando pensamos nos Panteras Negras, como essa organização de auto-defesa começou, foi porque existiam todos esses policiais e eles protegiam propriedades. Nós não possuímos propriedade. Eles aparecem só para nos prender, para nos criminalizar. Não estão nos protegendo, não estão nos dando ajuda, suprimentos. Então, essa é uma grande mudança que vemos. 

Quando Ferguson aconteceu, depois dos primeiros seis meses, o resultado foi que o chefe da polícia pediu demissão 2015. O promotor da cidade também perdeu sua reeleição, basicamente perdeu poder. 

Acho que os jovens acharam "podemos mudar essas pessoas". "Podemos mudar o sistema mudando as pessoas". Mas, é perceptível que essas pessoas foram embora e novas entraram e é a mesma estrutura.

Por isso é interessante que as pessoas estão pedindo o corte de orçamento. Não queremos que nosso dinheiro seja usado para nos criminalizar. Estamos em um contexto econômico crítico e não precisamos da polícia nos criminalizando, precisamos de recursos. 

Não houve mudanças em leis, só tiraram essas pessoas de seus cargos. Dizemos para as pessoas irem votar localmente, isso é muito importante, mas também é preciso continuar a pressionar o sistema, organizar e se educar porque se você não sabe como o sistema funciona, não entende o problema, não é possível resolvê-lo.

Podemos ter pessoas negras em cargos altos, mas isso não quer dizer que a polícia não irá atacar e se mobilizar do jeito que sempre fez. É parte da história deles.

O policial Darren Wilson matou Michael Brown e posteriormente o juri se negou a condená-lo. Então podemos dizer que não houve justiça até hoje? Acha que isso pode acontecer com o caso de George Floyd?

Não houve justiça para família. Mesmo hoje, no caso de George Floyd, a mídia continua forçando que a análise forense diz que ele morreu por questões médicas dele. O que é uma mentira completa. 

É o que a polícia e a mídia estão dizendo para mudar a percepção da população sobre o que está acontecendo e justificar o que aconteceu. Não houve justiça para nenhuma pessoa negra que foi assassinada por policiais ou seguranças brancos.


Protesto em Detroit, no estado de Michigan, relembra outras vítimas da brutalidade policial / Foto: Seth Herald/AFP

Com George Floyd, vimos que eles processaram e detiveram o policial, apenas um, mas quatro estavam lá. Eles processaram apenas um por assassinato em terceiro grau, e ontem, devido aos protestos que estão pedindo que ele seja processado por assassinato em primeiro grau, eles subiram para segundo grau e liberaram pedidos de prisão para os outros policiais. 

Isso não significa nada. Ouvimos isso o tempo todo. Ouvimos que vão levá-los ao tribunal e condená-los mas isso não acontece. Eles não condenam policiais. Todos estão atentos, é o que posso dizer. 

Há uma participação multirracial nesses protestos. Por que outras populações devem protestar ombro a ombro com o movimento negro nesse momento?

Definitivamente vemos isso acontecendo agora. O ano de 2014 foi muito importante para o movimento Black Lives Matter ser criado, e algumas pessoas queriam que ele fosse organizado só por pessoas negras. "Esse é nosso espaço, se você é de tom diferente, não pode vir."

Isso dividiu muito as pessoas e perdeu a unidade. Mas quando todos estamos lutando contra o desemprego, quando todos estão lutando por não ter acesso à saúde, quando todos estão lutando porque passam fome, vemos essa unidade. Todos compreendemos melhor as feridas.

E hoje temos muitas pessoas brancas que entendem. Que entendem o privilégio branco, que entendem a supremacia branca, que estão tentando participar e estão se responsabilizado pela violência branca e silêncio branco em todo país. 

Apesar de Trump tentar fortalecer sua base super branca e racista, eles não são a maioria que está nas ruas.  

É importante pra mim, pessoalmente, enquanto uma ativista negra e porto-riquenha, em 2015, e para muitas pessoas mesmo hoje, que estão tentando sobreviver e se sentindo indignos por tantas vezes nesse país.

Eu cresci em um bairro muito pobre no norte da Philadelfia e na minha escola do ensino médico, tínhamos 2 mil estudantes e no primeiro dia de aula éramos colocados em auditório e dizia: "daqui algumas séries, muitos de vocês não estarão aqui". 

Isso é muito desmotivador para os jovens. Tínhamos mais policiais na nossa escola do que professores. Eu fui presa quatro vezes no ensino médio e isso é comum nos Estados Unidos, que criminaliza as pessoas negras e outras populações não brancas o tempo todo, em uma idade muito nova. 

Dizem que temos que atingir a "excelência negra". Sermos os melhores dos melhores, alcançar o sucesso, mas temos que nos perguntar: "O que é ter sucesso em um sistema que nos mata? Que mata pessoas pobres em todos os lugares?".

Quando fui a Ferguson, não conhecia a luta Palestina. Mas enquanto estava sentindo os efeitos do gás lacrimogêneo, assim como muitos outros, eram os palestinos que estavam tuitando e nos dizendo como nos curar, como nos preparar e como cobrir nossos rostos, nossos olhos e cuidar de nós mesmos. 

Quando tiramos fotos das carcaças de bombas que estavam jogando contra nós, eram as mesmas atiradas contra os palestinos. Então, ao ir nos protestos, é possível começar a pensar em um nacionalismo negro. E também é possível começar a entender o internacionalismo e a pensar: "como o povo palestino está passando pelo que passamos agora?". E aí nós demos conta de como que o exército está treinando as forças policiais. Precisamos continuar fazendo essas perguntas. 

As pessoas estão afirmando que não há uma minoria maior que seja melhor que as demais. Eles nos colocam um contra os outros para que lutemos entre nós. Mas todos estamos contra o mesmo opressor.

Não há instrução nos Estados Unidos. Não podemos ficar bravos porque pessoas brancas não entendem como a supremacia branca funciona, quando pessoas negras não entendem que o capitalismo e suas regras são racistas, e temos capitalistas negros tentando crescer o tempo todo. Nós não conhecemos nossa própria história de forma muito intencional. 

Dizem que temos que atingir a "excelência negra". Sermos os melhores dos melhores, alcançar o sucesso, mas temos que nos perguntar: "O que é ter sucesso em um sistema que nos mata? Que mata pessoas pobres em todos os lugares?".

Quais são as lições de revoltas do passado que podem ajudar nessa mobilização atual?

Postei algumas coisas no Twitter que foram compartilhadas por mais de três milhões de pessoas. Há muitas lições que podemos ter. Em primeiro lugar, em Ferguson, muitas jovens criaram uma campanha que dizia "esse não é movimento por direitos civis de sua avó", envergonhando os mais velhos, dizendo que eles eram passivos. Quando, na verdade, pessoas nos anos 1960 e 1970 eram radicais. Eles fizeram muitas coisas que nós, jovens, não temos ideia.

A grande lição é: aprenda sobre revoltas do passado, porque as pessoas estão se revoltando desde 1600. Nossas histórias não estão publicadas mas isso significa que não existiram. Há muitas histórias para serem contadas. 

Uma das outras coisas que compartilhei foi: cubram suas caras. Estamos vivendo em tempos de redes sociais em que os policiais estão usando reconhecimento facial. Como estamos nesse contexto inédito da pandemia, temos que usar máscaras, mantê-las cobrindo nosso rosto.

A grande lição é: aprenda sobre revoltas do passado, porque as pessoas estão se revoltando desde 1600.

Nos Estados Unidos, pelo menos, temos uma emenda que protege nosso direito de privacidade e não temos que dar a senha dos celulares para os policiais. Entretanto, qualquer reconhecimento biométrico não é protegido. 

Temos um aplicativo de reconhecimento facial para desbloquear o celular, e isso pode ser facilmente usado contra nós. Então estamos compartilhando para usar o aplicativo Signal, que é realmente bom e criptografado. 

Muitas pessoas usam o Whatstapp, que diz que é criptografado mas ele é do Facebook. E o Facebook pode puxar toda informação. O Signal é uma "open source" e temos muitas pessoas da comunidade tecnológica que trabalham com ele para que não haja divulgação de dados. 

São muitas lições: A união que estamos vendo, saber como se posicionar contra  a narrativa e a mensagem da mídia dizendo que "são algumas maçãs podres" sobre a polícia. E não, não são algumas maçãs podres. Esse é o trabalho deles. 

O que carregamos de Ferguson é que nossos jovens, as pessoas que estão protestando, precisam ser educadas, precisam saber o que está acontecendo. Porque teremos muitas organizações e ativismo de celebridades que basicamente domina a mídia, e eles vão pressionar por reformar. Não tentarão realmente mudar o sistema.

Nós não nos comprometeremos. Continuaremos a pressionar por uma mudança radical e isso é muito importante que seja visto. É o mesmo legado político. O mesmo.

Quais você imagina que serão os próximos passos dessa mobilização que vemos em todo mundo hoje?

Essa revolta acontece em meio a uma pandemia, não podemos olhar para revoltas do passado e usá-las como referência porque não tínhamos as duas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Somos todos estudantes. O movimento e a luta são os melhores professores. E estamos compartilhando o máximo de informação que temos e não tínhamos visto isso.

Em Ferguson, muitas pessoas não sabiam nossa história. Pensávamos que estávamos apenas contra a polícia, e éramos reprimidos todos os dias. Agora as pessoas estão compartilhando e querem aprender como traçar estratégias. Querem entender melhor contra o que eles se revoltam contra. 

Neste cenário, as redes sociais ocupam um papel contraditório. Quando todas as ações estavam caindo, as do Facebook, Amazon e Twitter subiram. Todas essas empresas de tecnologias estão fazendo dinheiro a partir do caos. É difícil conscientizar e saber que elas estão ganhando tanto dinheiro no mercado, atuando com governos e compartilhando nossas informações. 


Com a Guarda Nacional nas ruas, os protestos antirracistas estão sendo reprimidos com bombas e balas de borracha ao longo da semana / Foto: Roberto Schimitd/AFP

Mas ainda assim, as idealizamos como uma ferramenta para que a palavra circule, para que a mensagem chegue, para que as pessoas tenham acesso à conhecimento e possam se preparar melhor. 

Haverá mais dias de protestos. Mesmo com os toques de recolher que estão acontecendo, as pessoas serão inteligentes. Há tantos jeitos de protestar. Não é apenas indo para as ruas. As pessoas continuarão fazendo barulho porque estamos doentes e cansados. Os Estados Unidos são um belo lugar para estar agora. 

As pessoas pobres são sempre chamadas de preguiçosas, é sempre uma coisa individual: "você fez uma coisa errada". Agora há milhões de pessoas nas ruas se dando conta que é um problema sistêmico. Você vai lá fora e se contamina por uma força e pensa "eu mereço isso". Você sente que realmente merece dignidade humanidade. São tempos interessantes para estar vivo nos Estados Unidos. 

Edição: Rodrigo Chagas