PROJETO EMERGENCIAL

Compra de alimentos da agricultura familiar é crucial, diz ex-diretor da Conab

Para Silvio Porto, a aprovação do PL 886/2020 salvaria vidas que estão em jogo em meio à pandemia do novo coronavírus

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Proposta emergencial que atende demandas da população camponesa pode ser votada ainda essa semana no Congresso Nacional - Foto: Fernando Dias/Governo RS

A aprovação do Projeto de Lei (PL) 886/2020 pela Câmara dos Deputados seria fundamental para milhares brasileiros, do campo e da cidade, sobrevivendo em condições de extrema vulnerabilidade e insegurança alimentar em meio à pandemia da covid-19.

Conforme explica Silvio Porto, ex-diretor da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), entre as medidas emergenciais defendidas no projeto está a compra da produção de pequenos agricultores por meio da criação de um Programa de Aquisição de Alimentos Emergencial (PAA-E). 

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Além de beneficiar as 70 mil famílias que sobrevivem da comercialização dos produtos da agricultura familiar, a ação também seria uma resposta eficaz à ameaça da fome nas periferias brasileiras. 

Isso porque, segundo Porto, o PL prevê a simplificação da compra da produção, assim como possibilita a entrega dos alimentos agroecológicos para populações vulneráveis duramente afetadas pela crise socioeconômica. 

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Na opinião do professor e pesquisador da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), a aprovação do projeto seria uma resposta imediata, diferente das medidas anunciadas até então. 
 
“Os R$500 milhões que foram liberados por meio de medida provisória, infelizmente, até agora, não foram executados. A Conab está fazendo o cadastramento das famílias agricultoras e tudo isso é muito moroso. Lembremos que o isolamento social já ultrapassa três meses. Portanto é fundamental que consigamos dar celeridade”, defende. 

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A proposta é que as ações determinadas pelo PL 886 sejam válidas durante o estado de calamidade pública, que vigora oficialmente até o final do ano. 

Além do PAA emergencial, o projeto também prevê o fomento à atividade agropecuária familiar com crédito em condições especiais, soluções para amortização de dívidas agrícolas e ações específicas para apoio às mulheres rurais.

Porto ressalta que, apesar da tragédia social causada, a pandemia do novo coronavírus permite que a importância da compra de produtos da agricultura familiar se evidencie, possibilitando que o PAA, alvo de cortes orçamentários nos últimos anos, seja recolocado em uma posição de política central.

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“O que nós esperamos é que a partir dessa articulação, e no pós-pandemia, que esse programa consiga ter musculatura para se revitalizar, e que se mantenha como uma alternativa concreta. Até porque a pandemia poderá passar mas as consequências, certamente, viveremos por muitos anos”, lamenta. 

“É crucial que um programa dessa natureza, junto com renda mínima, transferência de renda, se estabeleça como um programa central na garantia da segurança alimentar e nutricional, articulando produção e consumo”, acrescenta. 

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Confira entrevista na íntegra: 

Brasil de Fato: Qual a importância da compra da produção da agricultura familiar nesse momento de crise?

Silvio Porto: Estamos em uma situação em que muitas famílias agricultoras não estão conseguindo comercializar sua produção e, principalmente nesse momento em que a covid avança, se interioriza no país, os problemas serão, possivelmente, ainda maiores. Tem muitos municípios que fecharam inicialmente seu comércio, depois reabriram, algumas feiras foram retomadas. Mas mesmo em lugares em que as feiras foram retomadas, o próprio público, o fluxo de pessoas, é menor. De alguma forma as pessoas estão buscando se proteger e a questão do isolamento social, sabemos, que é o principal meio de proteção para evitar a contaminação. 

Em relação à necessidade e urgência de provar no contexto dessa proposta, o que está sendo denominado como Programa de Aquisição de Alimentos Emergencial, é crucial. A ideia base desse projeto, das propostas que foram apresentadas pelos movimentos sociais em conjunto com a Articulação Nacional de Agroecologia, é a simplificação da forma de compra.

Hoje estamos em uma situação de que os R$500 milhões que foram liberados por meio de medida provisória, infelizmente, até agora, não foram executados. A Conab está fazendo todo um processo de chamamento via editais, para que as organizações apresentem suas propostas, municípios e estados estão fazendo o cadastramento das famílias agricultoras e tudo isso é muito moroso. Muito lento para responder às necessidades. Lembremos que desde março a situação da pandemia vem avançando, com todo o isolamento social, que já ultrapassa três meses. Portanto é fundamental que consigamos dar celeridade [a esse processo].

A proposta vem exatamente propor que se abandone uma das modalidades, que é a mais utilizada pela Conab, a doação simultânea, que exige muitos procedimentos por parte das organizações sociais, até conseguir chegar a proposta colocada no sistema que a Conab atua, para um processo em que seja a oferta de uma lista de produtos, acertado o preço, onde há entrega. Uma vez entregue, emite-se a nota fiscal e a Conab faz o pagamento daquele alimento entregue. 

É muito mais rápido, mais fácil a execução. E é dessa forma que entendemos que precisa ser feito porque, afinal de contas, estamos em uma situação de pandemia. A alimentação que não é comercializada se perde, acaba se perdendo no campo, e as pessoas que precisam comer não tem acesso a esses alimentos. 

Há um dado de que 37% da população das famílias que residem em favelas no Brasil, não conseguiram ter acesso ao auxílio emergencial. E, portanto, estão totalmente soltas à própria sorte.  

O que está previsto no PL 886 é a compra da produção de mais de 70 mil famílias. Além de ajudar milhares de pessoas do campo, então, a medida pode auxiliar também as pessoas da cidade em condição de maior vulnerabilidade?

Isso. O PAA tem essa virtude. Com o mesmo recurso, ele ataca duas demandas, dois polos de demanda: Um, que é o da oferta, o da produção. E o outro da assistência alimentar, de quem precisa consumir os alimentos. Essa conexão é fundamental, necessária, estamos trabalhando junto com o próprio relator, o deputado Zé Silva, que felizmente tem acolhido bem as propostas em relação ao programa. Nós acreditamos que há grande chance [do projeto] ser aprovado no âmbito do Congresso Nacional.

Agora, para além da proposta, o que não temos claro nesse momento é exatamente o volume de recurso que será aportado, o que é crucial. Em março, o conjunto das organizações sociais apresentaram ao governo e para a sociedade brasileira, uma proposta de que para esse ano, no período da pandemia, precisamos de pelo menos R$ 1 bilhão para serem aplicados na aquisição de alimentos. 

Esses recursos, parte deles foram alocados, uma parte estava prevista no orçamento, uma pequena parte, cerca de R$180 milhões. Veio mais R$ 500 milhões via medida provisória, só que precisamos mudar a lógica de funcionamento. Precisamos de agilidade. Nesse momento o fundamental é isso. E é nessa perspectiva que estamos trabalhando no projeto.


Silvio Porto atuou como diretor da Conab de 2003 a 2013 / Foto: Arquivo Pessoal

Qual as condições de financiamento do PAA nos últimos anos? A ausência de verba denunciada pelo agricultores compromete a resposta em meio à pandemia?

O programa teve um auge em 2012, que chegou a cerca de R$ 840 milhões aplicados naquele ano. Em torno de 140 mil famílias agricultoras foram atendidas e 40 mil organizações que trabalham no campo da assistência alimentar foram acionadas, estavam naquela rede entre produção e consumo.

Só que a partir do processo de criminalização que houve com a operação absurda chamada Agro Fantasma, em 2013, o programa entrou em declínio por uma questão onde as pessoas começaram a se afastar. E o governo começou, cada vez mais, a alocar menos recursos. 

Ao ponto que chegamos esse ano com um orçamento inferior a R$ 200 milhões. O programa estava falimentar. Infelizmente devido à pandemia, mas ela abriu a janela, ela oportunidade de recolocar o programa como central na possibilidade de resolver a questão da comercialização para agricultura familiar e camponesa, e na assistência alimentar para famílias que estão em insegurança alimentar nesse momento.

O que nós esperamos nesse momento, é que a partir dessa articulação, e no pós-pandemia, sobretudo, que esse programa consiga ter musculatura para se revitalizar, e que se mantenha como uma alternativa concreta. Até porque a pandemia poderá passar mas as consequências, certamente, viveremos por muitos anos, sobretudo do ponto de vista econômico e social. 

É crucial que um programa dessa natureza, junto com renda mínima, transferência de renda, se estabeleça como um programa central na garantia da segurança alimentar e nutricional, articulando produção e consumo. 

É inegável que a insegurança alimentar que cresce agora vai se perpetuar nos próximos anos...

Sim, os dados são bastante assustadores. Pegamos o nível de desemprego, da informalidade crescendo cada vez mais. A reforma trabalhista que contribui pra isso. Não é só um problema da pandemia. Estamos vivendo um problema de ordem macro no sentido de uma visão ultraliberal por parte deste governo que coloca em risco o direito dos trabalhadores, que está efetivamente atacando e retirando direitos. Nesse sentido, esse problema já vinha acontecendo. Só que, com a pandemia, se potencializou muito mais.

Estudos estão mostrando isso. Francisco Menezes, ex-presidente do Consea, hoje da Action Aid, tem trabalhado bastante para evidenciar esses dados da problemática do crescimento da miséria no país. Essa situação vai se agravar ainda mais. Sabemos da situação desse momento e não sabemos o quando a pandemia vai crescer. E ela está em uma ascendente. 

É evidente que teremos ainda um crescimento muito significativo dos problemas sociais nesse país e, certamente, a questão da insegurança alimentar, infelizmente, e a fome, o grau máximo da insegurança alimentar, volta. Está crescente e certamente é um tema que tem que entrar para a agenda pública, para a agenda política, e ser tratada com a devida atenção que merece. São vidas que estão em jogo nesse momento.

Para além da compra da produção, quais são outras medidas que merecem destaque no PL 886?

Eu diria que são temas bem relevantes. São quatro eixos. Considero e repito, que um segundo tema, o crédito do fomento, um recurso não reembolsável liberado para agricultores e agricultoras, para dar um start na retomada e na produção, ou manter a sua própria produção, é uma pauta histórica dos movimentos. Felizmente está caminhando bem e acreditamos que há chance, de fato, de aprovação. Isso será uma grande conquista.

Junto com isso, tem um aporte de 50%, inclusive para as mulheres agricultoras. As camponesas terão possibilidade de acessar mais recurso que os homens, o que é um estímulo importante nesse processo. É uma conquista importante das mulheres trabalhadoras rurais, que estão firmes, juntos nessa articulação.

Tem o crédito especial, que é uma reivindicação de R$ 20 mil por família. Há uma sinalização, talvez, de ser a metade do recurso, R$ 10 mil. Isso já foi colocado.

E um outro tema, crucial, que é o da dívida agrícola. Tem a possibilidade de parte desse problema ser resolvido se, hoje, na votação do Congresso Nacional ser derrubado um veto do presidente em relação a esse tema da dívida agrícola. Só que o veto se relaciona à dívidas agrícolas até 2011. Nós esperamos que o relator também trate desse tema, caso conquistemos a derrota em relação ao veto hoje, esperamos que de 2012 até o período recente seja tratado no atual projeto que estamos defendendo.

Esses quatro temas: dívidas, crédito emergencial, crédito de fomento e PAA, são os quatro eixos que estão no debate com o relator. E a unidade que tem os movimentos sociais, do campo, das florestas e das águas, em torno dessas propostas emergenciais.  

Qual a relevância dessa mobilização popular?

Os movimentos estão, diuturnamente articulados em negociação direta. Eu diria que os movimentos estão vigilantes, atuando junto às diferentes lideranças parlamentares, de diferentes partidos. Enquanto não for votado, tem que manter-se o processo de mobilização. Ele é fundamental para que se consiga aprovar esse projeto e que depois ele seja sancionado.

São duas ou três etapas importantes. Agora a votação, conquistar que as propostas sejam aprovadas. Depois a perspectiva que sejam sancionadas pela presidência da República e, se eventualmente houver veto, depois uma nova articulação no Congresso no momento que os vetos forem votados para derrubá-los.  É um processo longo, que exige muita energia por parte dos movimentos sociais, mas que, felizmente, as lideranças estão muito atentas e trabalhando diuturnamente nesse sentido. 

Penso também um quarto momento. A reivindicação de mudanças estruturais, para o pós-pandemia, certo?

Muito importante essa colocação. De fato. Estamos tratando aqui do emergencial e ainda da locação efetiva dos recursos, e que realmente esses recursos sejam aplicados. Isso é crucial. A partir disso, aí sim, junto com isso, o debate mais amplo das mudanças estruturais nesse país.

Aí vem a reforma agrária, todas as questões ambientais que estão colocadas, toda a problemática do avanço da pecuária e da soja e tudo que isso causa em relação aos conflitos agrários e ambientais e de saúde pública no campo. Toda a problemática do consumo de produtos ultra-processados e doenças como obesidade e outras doenças crônicas decorrentes disso.  Ou seja: temos uma pauta, do ponto de vista estrutural, enorme. São grandes desafios. E, infelizmente, uma conjuntura política que não nos ajuda, ao contrário. É um processo de mobilização que precisa, não só manter-se, mas sobretudo crescer significativamente para que consigamos alcançar essas mudanças estruturais almejadas. 

Edição: Douglas Matos