Rio Grande do Sul

Nota Pública

Mais de 300 religiosos se solidarizam com padre ameaçado por bolsonaristas

“Saiba que você não está sozinho”, avisam os religiosos na nota pública, dirigida ao padre Edson Tagliaferro

Porto Alegre | BdF RS |
Após fazer críticas ao governo Bolsonaro em uma homilia e ter parte de sua fala filmada e viralizada nas redes sociais, padre Edson Adélio Tagliaferro recebeu ameaças - Divulgação

Um grupo de 300 padres e freis de todo o Brasil solidarizou-se com o padre Edson Tagliaferro, da Igreja Matriz Nossa Senhora das Dores, do município de Artur Nogueira, interior paulista, perseguido e ameaçado por apoiadores de Jair Bolsonaro nas redes sociais. “Saiba que você não está sozinho”, avisam os religiosos na nota pública, dirigindo-se a Tagliaferro.

O documento critica severamente o modo de ser e agir do presidente da República e de seus seguidores, considerando-os “incompatíveis com a fé cristã e o exemplo legado por Jesus Cristo”. Os religiosos acentuam a importância da voz profética do pároco “que se levanta para denunciar todo esse projeto de morte que vem sendo implantado”. Reparam que Jesus foi “carinho e acolhida”, mas “nem por isso foi conivente com as injustiças e tantos desmandos de sua época”.

Adiante, denunciam que “um projeto de morte vem sendo instalado em nosso país”, referindo-se ao congelamento dos investimentos em Saúde e Educação por 20 anos, o ataque aos direitos trabalhistas e à Previdência social, que não leva em conta a situação dos mais pobres, além da venda do patrimônio público nacional. Mencionam ainda os “cães de guarda” desta “necropolítica”, empenhados em linchar pessoas pelas redes sociais, disseminar notícias falsas e destruir vidas.

“Vocês querem que eu fale o quê?”

A ofensiva contra o sacerdote começou após suas críticas ao caos sanitário no país durante sua homilia na quinta-feira, dia 2. "Um país que já chegou a 60 mil mortos (hoje, 68 mil) pela pandemia e não tem um ministro da Saúde? Vocês querem que eu fale o quê?” questionou. Para ele, quem votou em Bolsonaro deveria se confessar e “pedir perdão a Deus pelo pecado que cometeu, porque elegeu um bandido pra por de presidente".

Com a repercussão do episódio, alimentada por vídeo de sua declaração, Tagliaferro argumentou que sua fala fora retirada do contexto. Em nota, o pároco comentou o caso. “Eu falava da necessidade de que os cristãos tomassem uma posição clara a respeito do que Jesus prega e a respeito desse populismo, desse fascismo que a gente vê no mundo de hoje”, explicou. Sentiu-se inspirado pelo profeta Amós que, pregando no reino de Israel, lamentou o proceder do rei, advertindo que “as consequências de seus desmandos e das elites que o apoiavam iriam levar o país à ruína”, citou. 

“O mundo não gosta dele”

“Foi uma explanação acerca da fé em Jesus Cristo e a clareza do seu evangelho de vida. Quem comunga o seu evangelho não pode se associar ao reino da morte”, salientou.

Na missa de domingo (5), o sacerdote optou por classificar Jair Bolsonaro como uma pessoa ‘desequilibrada’, que prefere pensar “em seu grupeto” do que se importar com as vítimas do novo coronavírus no Brasil. E esclareceu: “Eu queria deixar claro que não sou eu que não gosto do Bolsonaro. O mundo não gosta dele. O mundo está preocupado e debochando do Brasil, por causa do nosso presidente”, ressaltou.

Assista ao pronunciamento de Padre Edson

Leia o manifesto dos Padres da Caminhada na íntegra:

NOTA DE APOIO AO PADRE EDSON ADÉLIO TAGLIAFERRO

“Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem os poucos caminhos, mil trilhas nascerão”

(Pão de Igualdade, de Cecília Vaz Castilho)

O texto bíblico  que  inspirou esta  música  de Cecília  Vaz Castilho está no  contexto  da entrada de Jesus em Jerusalém. Os fariseus, neste momento, pedem que Jesus mande as multidões se calarem! Logo depois Jesus chora sobre Jerusalém, por causa da falta de acolhida à  sua  proposta de  vida e liberdade.  A seguir Jesus  entra  no  Templo e expulsa de lá os comerciantes, acusando-os de desvirtuarem a religião, que manipula Deus e a fé do povo em vista de seus interesses (cf. Lc 19,39-40).  Alguns teólogos afirmam que aqui está o motivo pelo qual Jesus foi condenado, pois mexeu no coração do sistema político-religioso-financeiro.

Frei Betto constantemente nos lembra que somos seguidores de um perseguido político, que foi assassinado pelo  centro  do poder  de  sua  época. Jesus não se dobrou nem compactuou com os poderes de sua época. Permaneceu firme à missão que Deus lhe confiou, instaurou o Reino com seu jeito de ser e de viver. Pautou sua vida pelo carinho e acolhida. Mas, nem por isso, foi conivente com as injustiças e tantos desmandos de sua época.  Jesus, neste sentido, foi verdadeiramente Profeta.  Não se calou nem permitiu que calassem a voz dos pequenos e humildes, das mulheres e dos pecadores, dos marginalizados e tantos intocáveis de seu tempo. Pela fidelidade a Deus e ao Povo levou até o fim a sua missão profética, sem pedir licença nem perdão aos poderosos.

Em sintonia com o Mestre, Profeta e Mártir Jesus, não podemos nos calar diante de tanta injustiça e de tantos desmandos. Um projeto de morte vem sendo instalado em nosso País.  Este projeto de morte congelou os investimentos no campo social por 20 anos, cortou direitos trabalhistas, deu um golpe terrível na Previdência; ainda temos muitos outros sinais desta necropolítica. Além disso, está avançando numa política econômica ultraliberal que tem como horizonte a privatização de empresas estatais importantes e abre mão da soberania, submetendo-se a uma subserviência ao poder imperial e econômico estadunidense. Este projeto não leva em conta a vida dos pobres e descartáveis da sociedade.

Se não bastasse isso, ainda encontramos “cães de guarda” do capital e desta necropolítica. São pessoas que se empenham diuturnamente a fazer linchamentos de pessoas pelas redes sociais. Seus instrumentos são largamente conhecidos e estão sob investigação. Disseminam notícias mentirosas e destroem a vida dos que se opõem a este projeto de morte. Qualquer um que se atreva a discordar ou levantar sua voz contra este projeto e seus executores sofrem ataques sem dó nem piedade, chegando ao ponto de sofrerem também ameaças e pressões.

Mas a profecia na Igreja, embora não seja a maioria, resiste! Ela não está adormecida! Temos   muitas comunidades e pessoas que mesmo diante das perseguições e tribulações mantêm-se fiéis no seguimento do Morto-Ressuscitado, anunciando o Reino e denunciando as mazelas dos poderes deste mundo. Queremos trazer presente e agradecer a Deus por uma voz que não se calou! Ousou levantar sua voz profética diante desse projeto de morte, para anunciar o projeto de Jesus, pois “quem comunga o seu Evangelho não pode se associar ao reino da morte” (Padre Edson Adélio Tagliaferro). No dia 02 de julho, quinta-feira, Padre Edson refletiu sobre as leituras e sobre a realidade em que nos encontramos. Não foi discurso de político! Foi discurso teológico!  Assim como os profetas e Jesus, Padre Edson denunciou a opressão e o descaso que nosso povo brasileiro está submetido. Não é possível ficar impassível, indiferente diante de tantas mortes, de maneira especial dos empobrecidos e dos esquecidos.

Dante Alighieri retrata o futuro dos indiferentes, ou no dizer de Jesus, daqueles que são mornos, nem frios nem quentes, que ocuparão o vestíbulo (ante-inferno) aqueles que não se rebelaram nem foram fiéis a Deus (Inferno, Canto III,61-63), o qual John F. Kennedy interpretou da seguinte forma: “No inferno os lugares mais quentes são aqueles reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempos de crise”. Não existe neutralidade quando o povo, principalmente, os empobrecidos são solapados em seus direitos e em sua justiça. Por emprestar sua voz à voz dos empobrecidos, Padre Edson teve um gesto de pai e de profeta. E agora, por tal atitude, ele tem sido vítima de ataques e manipulações de grupos que estimulam o ódio, a mentira e o linchamento virtual. Tais práticas são próprias de quem está distante do  Deus do Reino, pois “o Diabo é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8,44).

Por isso, nós, que nos denominamos “Padres da Caminhada”, articulados em nível de Brasil, viemos nos solidarizar com você, nosso irmão, Padre Edson Adélio Tagliaferro. Nós nos alegramos com sua voz profética que se levanta para denunciar todo esse projeto de morte que vem sendo implantado! Saiba que você não está sozinho. Conte sempre conosco e com nossa solidariedade. E agradecemos ao bom Deus que não deixa morrer a profecia. Continua a suscitar homens de coragem e de compromisso. Continue sendo essa voz que denuncia tudo o que diminui ou mata a vida de nosso povo. As palavras do profeta continuam a ecoar em nossas mentes e em nossos corações: contra uma religião refém das conveniências e dos intimismos, “que o direito corra como a água e a justiça como um rio caudaloso” (cf. Am 5,21-27).  Vale também lembrar o Papa Francisco, na Exortação Evangelii Gaudiumm: “A missão é uma paixão por Jesus, e simultaneamente pelo seu povo” (268) e de seu chamado a cada um de nós que é a de “que toquemos a miséria humana, que toquemos a carne sofredora dos outros” (270). Somente quem tem amor a Deus e ao povo é capaz de não se conformar e calar.  Quem tem a capacidade de se sensibilizar pelas chagas do povo precisa gritar para que toda essa morte cesse! “Se eles calarem, as pedras gritarão!”.

Conte sempre com nosso apoio neste momento e em toda a sua caminhada. Não estamos sós! Estamos distantes, mas unidos num mesmo sonho, num mesmo projeto. Continue sendo sempre este grande profeta e conte sempre com nossas orações.

Edição: Katia Marko