Direito básico

Comunidade na África do Sul enfrenta dificuldade no acesso à água em plena pandemia

Hammanskraal é apenas uma de muitos povoados que vêm lutando há anos por água decente

Tradução: Ítalo Piva

New Frame | África do Sul |

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Morador de Hammanskraal carrega água
Um morador de Hammanskraal, África do Sul, carrega água de um caminhão-pipa, em novembro de 2019 - Phill Magakoe/AFP

Para os moradores de Hammanskraal, pequena cidade no norte de Gauteng, na África do Sul, a chegada de um caminhão-pipa, uma vez por semana, é um luxo e dá vida aos moradores que vêm sofrendo a indignidade de ter que implorar por água limpa. Embora fazer fila na frente de um caminhão não seja o ideal, é melhor do que ter que utilizar água contaminada com esgoto.

Ao longo dos últimos quatro anos, os moradores vêm revindicando seu direito básico de acesso à água potável. A raiz do problema é o centro de tratamento de Rooiwal, na cidade de Tshwane, que precisa de uma renovação urgente. Com uma infraestrutura ultrapassada, o centro despeja água contaminada no Rio Apies, que desemboca na represa de Temba. Esta, por sua vez, alimenta o fornecimento de água de Hammanskraal.

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Em entrevista ao portal New Frame, o líder comunitário Tumelo Koitheng diz que os habitantes estão felizes porque seus pedidos foram atendidos – embora tenham batido em todas as portas do governo para chegar a esse ponto. Afinal, a comunidade realizou uma paralisação completa para chamar a atenção do governo local, dos funcionários públicos da província, do Parlamento e da Comissão de Direitos Humanos.

“Testes realizados na água determinaram que ela não é própria para o consumo,” disse Koitheng. Frank Nkwanyae, um jornalista que atua na área, afirma que quando a água era fervida, uma espuma se formava na superfície, um sinal, para os moradores, de que algo estava errado. Muitos deles, incluindo crianças, ficaram doentes depois de beber a água.

O governo destinou mais de 2 bilhões de rands, que equivalem a cerca de R$ 675 milhões, para renovar o centro de tratamento de Rooiwal, um projeto que deve demorar três a cinco anos. Os caminhões-pipa permanecerão em Hammaskraal por um bom tempo.

Caminhões ao resgate

O desastre de Hammanskraal é apenas um exemplo de como as comunidades pobres precisam batalhar para ter acesso à água potável. A pandemia de covid-19 aumentou a urgência da crise de água e gerou uma disponibilidade de recursos sem precedentes. O Departamento de Água e Saneamento planeja mobilizar 18.875 caminhões-pipa, parte de uma intervenção apresentada pelo governo ao Parlamento. O custo do projeto estaria em torno de R$ 100 milhões.

A província do Cabo do Leste deverá receber a maioria desses caminhões, 5.395 deles espalhados por vários distritos. A província de KwaZulu-Natal receberá o segundo maior número de caminhões-pipa disponíveis. No entanto, segundo o meio local, não está claro se esses já estão sendo entregues.

Na apresentação da iniciativa ao Parlamento, o departamento frisou que a água limpa é “um instrumento crucial contra a covid-19”. Os jornais The Mail e The Guardian reportaram, recentemente, que embora alguns desses caminhões-tanque tivessem chegado em algumas escolas do Cabo do Leste, eles permaneciam vazios, o que significa que, mesmo com o instrumento correto em mãos, ele nem sempre é efetivo.

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O diretor da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Gebreyesus, concorda com o argumento de que o acesso à água é fundamental no combate ao vírus. “O simples ato de lavar as mãos pode ser a diferença entre a vida e a morte, e continua sendo uma das medidas de saúde pública mais importantes na proteção de indivíduos, famílias e comunidades contra doenças”, afirmou.

Em poucas semanas, o Departamento de Água identificou quais áreas precisavam dos caminhões e providenciou cerca de R$ 100 milhões em verbas. O projeto aponta que o governo e o Departamento de Saneamento já sabiam há um bom tempo quais comunidades precisavam de água limpa, o que sugere que problemas mais profundos estão ocorrendo no setor de recursos.

Obviamente, o Departamento não está sendo bem administrado. Esses erros são, então, repassados aos municípios, que possuem infraestruturas antigas e incapazes de manter serviços básicos, resultando em situações quase tão ruins quanto a própria pandemia.

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Quem tem água na torneira?

Em maio deste ano, de acordo com Grupo de Monitoramento Parlamentar (PMG), “uma auditoria confirmou que houve uma retrocesso na qualidade d’água comparado aos cinco anos anteriores”.

“Não houve nenhuma entidade que passou na auditoria com ficha limpa. Encontramos repetidamente evidências de descaso em relação às normas e à legislação, mostrando também que não houve reparos aos danos causados ao longo dos anos", evidencia o grupo.

O relatório da auditoria demonstra sérios problemas de liderança/direção dentro do departamento. “A instabilidade de liderança persistiu nos níveis mais altos da administração por causa da suspensão e ou demissão do diretor financeiro, do diretor de contabilidade e outros diretores durante o ano da auditoria”.

A disparidade entre a verba do departamento e o dinheiro gasto para alcançar suas metas também é preocupante. O programa de desenvolvimento da infraestrutura de acesso à água gastou 98% do seu orçamento entre 2018 e 2019, embora tenha concluído apenas 50% dos seus projetos programados para o ano.

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Os “gastos sem resultados” do departamento representam mais de R$ 250 milhões, um aumento expressivo comparado aos R$ 190 milhões do ano anterior. “A maioria desses gastos excessivos e sem resultados naquele ano decorrem de contratos de terceirizados que não foram pagos, o que resultou em juros e outros acréscimos, e também por conta das multas administrativas que vinham sendo cobradas”, explicou o gabinete do auditor.

Esses erros podem ser observados na falta de melhorias no acesso à água. De acordo com as estatísticas da Pesquisa Residencial Sul-Africana, apenas 46,7% dos domicílios possuem água encanada. Outros 28,5% têm algum tipo de acesso à água encanada no local, enquanto 12% das casas usam pias e poços comunitários – uma situação que expõe milhões de sul-africanos ao coronavírus.

“Embora no geral o acesso à água tenha melhorado, em 2018, 2,7% dos habitantes ainda tiveram que buscar água em rios, riachos, poças de água parada, barragens e poços”, indica a pesquisa residencial.

Entre 2010 e 2018, houve uma pequena melhora no número de casas com acesso à água encanada – de 42,8% em 2010 para 46,8% atual. Há mais de oito anos que esse valor não chega a 50%.

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Planos para providenciar água

Nesse cenário alarmante, o Departamento de Água e Saneamento diz que está usando todos os seus recursos para dar uma resposta rápida aos problemas da água agravados pela pandemia. Também pretendem pedir R$ 300 milhões adicionais ao Tesouro Nacional para ampliar o programa de caminhões-pipa, que em meio a uma pandemia global, são como um band-aid num corte profundo.

Os próprios funcionários do departamento assumem que a falta de acesso à água potável é uma das maiores preocupações nacionalmente. O diretor do Departamento de Água da província de Gauteng, Sibusiso Mthembu, afirmou recentemente: “Ainda há muito a ser feito para controlar o vírus no país. Logo, providenciar água limpa para as comunidades é, absolutamente, uma prioridade…temos dias difíceis a serem enfrentados, por isso, devemos dobrar nossos esforços”.

A Anistia Internacional afirma que um acada três sul-africanos não têm acesso à água potável. O governo precisa achar uma maneira de assegurar o acesso à água potável, onde o dinheiro gasto chegue às torneiras das comunidades – mesmo depois da pandemia de covid-19.

Edição: Luiza Mançano e Vivian Fernandes