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Arapongagem contra antifascistas: o voo do bolsonarismo ao método da ditadura

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Jair Bolsonaro foi eleito fazendo o discurso da doutrina de guerra, da caça permanente ao inimigo - Fernando Frazão / Agencia Brasil
Dossiês são o primeiro passo do tripé repressivo usado na ditadura: vigilância

Araponga é o nome de uma ave de porte médio que habita alguns países da América do Sul, inclusive o Brasil, cuja característica mais marcante é o canto alto e estridente. Popularmente, tornou-se sinônimo de espionagem, por ser título e apelido do personagem central de uma telenovela do gênero comédia pastelão da Rede Globo do início dos anos 1990.

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Na vida real e nada cômica, o Serviço Nacional de Informações (SNI), que no folhetim televisivo o atrapalhado detetive Aristênio tenta convencer seus superiores de reativar, foi o centro de produção de informações sobre pessoas, grupos políticos, movimentos sociais e instituições, criado no primeiro ano da ditadura civil-militar em 1964.

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Com subdivisões espalhadas pela máquina burocrática: as Divisões de Segurança e Informação (DSI) e a Assessoria de Segurança e Informação (ASI), instaladas em cada órgão importante da administração pública, o SNI encabeçou o aparato que possibilitou o reconhecimento dos “inimigos internos”, os chamados “subversivos”, que correspondiam a qualquer um que contestasse o regime mais diretamente, e possibilitou a repressão em todas as suas formas.

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O processo de redemocratização do Brasil, que culminou com a Constituição Federal de 1988 e as eleições nacionais de 1989, consagrou a liberdade de expressão, vetando qualquer tipo de censura pela disseminação do pensamento e de crença.

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Ressalvado o atentado ao princípio da dignidade da pessoa humana, os crimes de ódio, o racismo e atos discriminatórios de qualquer natureza, que comprometem a ideia de igualdade, um dos fundamentos do Estado democrático de direito, a Constituição em vigor garante o direito à manifestação do livre pensamento, de reunir-se pacificamente, de organizar-se, à pluralidade de ideias no campo político. O que significa que qualquer tentativa de intimidação deve ser denunciada.

No dia 4 de junho de 2020, um dossiê com quase mil páginas com nomes, endereços, RGs, locais de trabalho e outras informações pessoais dos chamados "antifas” começou a circular em redes de WhatsApp de grupos da direita. A produção do documento foi atribuída ao deputado estadual Douglas Garcia (PSL-SP), aliado do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e um dos investigados pelo inquérito das Fake News, conduzido no Supremo Tribunal Federal pelo ministro Alexandre de Moraes.

Na última sexta-feira (24), o portal Uol e a Revista Época publicaram matéria sobre a existência de uma ação sigilosa, com produção de um dossiê, elaborado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, para monitorar servidores identificados como militantes antifascistas, com foco na organização de policiais antifascistas e professores.

O Ministério Público Federal abriu investigação. Caso comprovada, a ação sigilosa da Secretaria de Operações Integradas (Seopi), de gravidade extrema e típica de regimes autoritários, demonstra que as tentativas de perseguição aos militantes que se opõem ao governo Bolsonaro, como tática de intimidação, não são atos isolados que partem apenas de seguidores bolsonaristas de redes, ou com mandatos legislativos. É uma conduta orquestrada nas entranhas do governo federal e com o uso do aparelho de estado e suas instituições. Um plano de voo de volta ao passado totalitário.

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Dossiês dessa natureza, além de seu caráter claramente intimidatório, evidenciam não haver limite jurídico, ético, moral ou qualquer justificativa, que não implique no prejuízo da ideia de democracia e liberdade, como fundadora da ordem política e social, e contra as regras do Direito e da boa política, dos preceitos constitucionais e práticas de negociação e pactuação.

A criação de listas de identificação de pessoas e movimentos da sociedade civil que discordam da linha adotada para dirigir o Brasil, demonstra que o governo de Jair Bolsonaro não possui qualquer respeito pela liberdade de expressão e de organização dos cidadãos.

Durante a ditadura civil-militar, qualquer contestação política moderada, um protesto por liberdades democráticas ou a emissão de uma opinião crítica ao regime ou ao sistema capitalista, poderia ser lida como “subversão”, dado o poder arbitrário e a amplitude da Lei de Segurança Nacional. O conceito de “crime político”, portanto, equivalia ao conceito de crime de guerra, ancorado na tradição dos crimes de “lesa-pátria”, isto é, contra a pátria. Como a Doutrina de Segurança Nacional entendia que a fase da “guerra psicológica” ou cultural era preparatória da “guerra revolucionária” dos comunistas contra a ordem social, uma matéria de jornal contra o regime seria, na visão implacável e paranoica dos dirigentes fardados, parte da estratégia dos “subversivos” para desgastar a ordem e tomar, futuramente, o coração do Estado.

Jair Bolsonaro foi eleito fazendo o discurso da doutrina de guerra, da caça permanente ao inimigo, que deveria ser combatido sem trégua, com mobilização de todos os recursos: militares, políticos, de informação, e alimentando os grupos radicalizados em contextos de polarização ideológica. Dossiês são o primeiro passo do tripé repressivo usado na ditadura: vigilância. O que demonstra que elementos de estado de exceção podem conviver na democracia formal.

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A oposição amigo-inimigo como categoria sócio jurídica constitui uma viga mestra do pensamento autoritário. No jogo retórico de uso de subterfúgios, Douglas Garcia, o deputado, afirmou publicamente que encaminhara o dossiê às autoridades, como um documento identificando os militantes antifascistas, que seriam, segundo ele, uma organização criminosa.

Sua “arapongagem” quase o aproxima do personagem da paródia novelesca global, um cidadão com ideias fixas delirantes e elos imaginários entre pessoas e situações. Com a diferença que o protagonista da trama é um genuíno parvo, enquanto o deputado age com patenteada má-fé.

O deputado Douglas e o Ministério da Justiça encarnam, na verdade, outra modalidade de atuação. Em tempo de pós-verdade, intentam inverter a lógica criando uma suprema incongruência, uma desconexão com a realidade, segundo a qual os que lutam contra o fascismo seriam criminosos. Estabelecem uma conexão direta com o regime civil-militar ditatorial, que intentou rotular os lutadores pela democracia todos como revolucionários contra a ordem.

Contra isso, para além da provocação das instituições contra as aventuras autoritárias, não há caminho diverso senão reforçar a cultura política democrática da sociedade, com educação e formação geral do cidadão. Em paralelo, lutar para o fortalecimento dos valores democráticos, aumentar a participação institucional da sociedade civil e reduzir as desigualdades materiais graves. Cuidar das asas do pássaro democracia, para que sejam propulsoras, que impulsionam sempre à frente, nunca em marcha a ré.

Edição: Rodrigo Chagas