Poucos dias separam o momento em que Andressa da Cruz recebeu uma ligação com a informação de que seu avô estava internado em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) em Olinda (PE) com sintomas do novo coronavírus, da notícia de que ele havia se tornado uma das cem mil vítimas fatais da pandemia.
A velocidade do avanço da doença respiratória é o que mais marca a memória da jovem, que enfrentou o processo de luto à distância. Devido à todas as restrições da pandemia, teve que se despedir e homenagear seu avô, Rosil da Silva, de longe.
O olindense de 76 anos apresentou inchaço e falta de ar no início de maio mas não conseguiu acesso a uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) na cidade ou na região. A região metropolitana de Recife, na época, enfrentava um crescimento acelerado no número de contaminações e, por consequência, a superlotação dos leitos.
Vivendo em São Paulo, Andressa acompanhava as notícias sobre a pandemia na região Nordeste com preocupação, mas não havia cogitado a hipótese de seu avô ser contaminado.
“Eu nem pensei no meu avô. Ele era uma pessoa muito forte, já tinha passado por tanta coisa na vida.. Foi um choque, de todas as pessoas que eu estava preocupada, ele foi a pessoa que eu nem imaginava. E aconteceu”, conta a jornalista, que adjetiva a doença como rápida e traiçoeira.
“Ele veio a óbito sem conseguir uma vaga na UTI e ficamos com esse trauma. E se ele tivesse tido um atendimento melhor? Como teria sido? Mas não temos emocional pra lidar com isso”, desabafa.
O caso de Seu Rosil da Silva apresenta algumas das principais características do perfil mais comum das vítimas da covid-19 no Brasil. Segundo boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, dos 90.973 casos de óbitos pela Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) em decorrência do vírus, 52.948 vítimas são do sexo masculino.
A faixa etária mais acometida é, justamente, a de 70 a 79 anos. Já as regiões do país mais afetadas são a Sudeste, seguida pelo Nordeste. As informações são referentes a semana epidemiológica nº31, de 26/07 a 01/08.
Além da idade, o avô de Andressa também apresentava comorbidades pré-existentes, ou seja, fazia parte dos grupos de risco para a doença.
Do total de óbitos por coronavírus até a publicação do Boletim Semana Epidemiológica 31 (26/07 a 01/08), 61,8% apresentavam pelo menos uma comorbidade. Cardiopatia e diabetes foram as condições mais frequentes entre as vítimas.
A falta do abraço e do apoio presencial também pesou muito no processo de despedida para os familiares mais próximos fisicamente de seu Rosil. Andressa relata que, entre os mais velhos, compreender as limitações da pandemia foi ainda mais difícil.
“Minhas avós, minhas tias-avós, ficaram muito abaladas com a perda do meu avô e com esse luto à distância de não poder fazer velório, não poder chorar junto, de cada uma ter que passar esse luto sozinha em casa”, lamenta.
Ela relembra que as ferramentas virtuais de comunicação foram - e ainda são - a única saída para aproximar a família naquele momento difícil. Hoje, meses após a morte e com o números de vítimas fatais muito maior, Andressa acredita que não é possível falar em “novo normal”.
“Os números não deixam a gente ter esperança. Por mais que a gente tente pensar em um mundo sem covid, o mundo com covid é muito triste. Não vai passar, não tem como ignorar o que aconteceu. Chegamos a esse nível de normalizar mil mortes por dia”, critica a jovem.
“Eu lembro que no dia que meu avô morreu, foi quando o Brasil alcançou dez mil mortes. Parece que sentimos muito mais esse luto de dez mil mortes do que sentimos agora essas cem mil.”
Vítimas estruturais
O avanço do novo coronavírus no Brasil não atinge a população de forma igualitária. A começar pela cor da pele.Segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, das 93.563 (até 01/08) vítimas fatais da pandemia, 35% são pardos, 26,6% são brancas, 5% são pretas, 1.1% amarelas e 0,4% indígena.
Há ainda uma abismo socioeconômico entre os infectados pelo novo coronavírus: Diante do descaso do governo Bolsonaro com a pandemia e falta de orientações políticas efetivas, dados oficiais mostram que as populações mais pobres das periferias das cidades são afetadas em maior escala.
É essa a situação de São Paulo, onde os bairros mais pobres apresentam maior número de mortes por semanas consecutivas.
De acordo com levantamento divulgado na última terça-feira (4) pela Prefeitura de São Paulo, Sapopemba, Brasilândia e Grajaú são os distritos que lideram o ranking de mortes.
Cada um registrou mais de 400 óbitos. As informações tem como base dados registrados entre o período de 11 de março e 3 de agosto.
Em Sapopemba, na zona leste da cidade, 437 mortes pela doença respiratória foram registradas. A Brasilândia, na zona norte, que já foi o distrito com mais mortes pela doença no início da pandemia, aparece na segunda posição, com 368 mortes.
Além do Grajaú, que computa 360 vítimas fatais, outros distritos da Zona Sul, como Sacomã e Jardim Ângela seguem a lista com 330 e 327 óbitos, respectivamente.
O Estado de São Paulo tem concentrado mais casos de infecções desde o início da pandemia. De acordo com dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) publicados neste sábado, 8, 621.731 casos e 25.016 mortes, no total.
O contexto se repete no Rio de Janeiro, que é o quarto estado em numero de infecções mas o segundo que registra mais mortes até o momento.
Um estudo divulgado recentemente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que a população que vive em bairros mais pobres do estado é também a mais atingida pela pandemia,
O documento informa que, até o final de março, a faixa mais rica da cidade concentrava 50% dos casos de covid-19 enquanto os bairros mais pobres, 11% das notificações. No período total da amostragem (de 8 de março a 13 de junho), contudo, a letalidade nos bairros mais pobres já era o dobro em relação aos bairros ricos, Das 6.735 mortes até aquele momento, 45% ocorreu em bairros menos desenvolvidos e 21,6% em bairros mais desenvolvidos.
Sem precedentes
Frente a marca de cem mil vítimas fatais, a médica infectologista Ceuci Nunes, que trabalha há mais de 30 anos na área, afirma nunca ter presenciado uma doença tão avassaladora em toda sua carreira.
Ela traça alguns paralelos com o surgimento do HIV, quando, assim como a covid-19, não se sabia corretamente as formas adequadas de prevenção, tratamento, medicamentos ou doses corretas para responder à doença. No entanto, em termos quantitativos, os danos do coronavírus são incomparáveis.
“Nunca se viveu nada semelhante em termos da necessidade de alteração e adaptação do serviço de saúde para pacientes tão graves. Isso aconteceu há 102 anos. Essa experiência ficou escrita mas ninguém teve a experiência viva”, diz a diretora do Instituto Couto Maia, unidade hospitalar dedicada exclusivamente à covid-19 na Bahia.
Segundo Nunes, o hospital em questão enfrentou mudanças radicais para atender as demandas, principalmente com a ampliação dos leitos de UTI e leitos de enfermaria em lugares como ambulatórios e centro cirúrgico.
Além do alto número de pacientes infectados, ela afirma que a contaminação por parte da própria equipe médica é algo que preocupa muito no dia a dia dos atendimentos. No início da pandemia, os profissionais chegaram a trabalhar dois meses seguidos, de domingo a domingo.
“Os casos são extremamente graves. O que temos achado é que essa doença tem dois polos: Ou você tem um quadro leve, assintomático, ou muito grave. Os casos moderados são muito raros. Isso dá um stress muito grande na equipe. São intensivistas com 20 anos de experiência que nunca viram uma doença dessa, com dificuldade pra controlar o paciente, para estabilizar”, ressalta.
Tragédia anunciada
Para a médica infectologista, o Brasil se tornou o segundo país do mundo com maior número de contaminações devido ao descontrole total do Ministério da Saúde sob o governo Bolsonaro.
Ela pontua que, quando os primeiros casos começaram a acontecer, havia um período para que o país se preparasse de melhor forma. A exemplo da atuação da pasta contra o H1N1, uma experiência bem-sucedida.
Mas, o descaso do presidente com a doença, assim como a ausência de medidas adotadas de forma uniforme, abriram o caminho para que o Brasil fosse em direção às cem mil mortes.
Do micro ao macro, o número exorbitante choca os profissionais. “Eu não consigo nem pensar. É um negócio tão chocante que nem conseguimos colocar... É como se a ficha não tivesse caído. Vemos muita morte. Temos um necrotério, todo hospital tem, mas ele é pequeno. Tem lugar para 3 cadáveres. E chegou aqui um container refrigerado para colocar corpos. Foi um impacto imenso”, detalha.
Na avaliação da infectologista, o fato do Brasil chegar a um número tão grande de vítimas fatais e proliferação do vírus sem um ministro da Saúde para orientar as políticas da área é uma prova de como o coronavírus foi banalizado pelo governo federal.
“Vimos o presidente da República dizer que era uma gripezinha, não acreditando no distanciamento social e no uso de máscara. E isso passa uma mensagem de muita dubiedade pra população. O que a população vai dizer: 'se o líder do Brasil não acredita, porque eu vou acreditar?'”, critica a médica.
Vidas arrancadas
Diogo de Oliveira Neves Neto está entre as centenas de milhares de pessoas que sabem muito bem o peso de cada vida perdida para a covid-19. Morador de Interlagos, extremo sul de São Paulo, o técnico de informática não imaginava que sua vida viraria de cabeça para baixo em um período tão curto.
Sem poder interromper as atividades no trabalho, Neves começou a sentir febre e um grande mal-estar na semana do dia 17 de abril. Procurou o médico e teve a confirmação que havia sido infectado pelo coronavírus logo nas primeiras semanas do avanço da pandemia no país.
“Eu tinha muito cansaço no pulmão. É como se eu estivesse com uma bronquite eterna que não passasse nunca. Tudo que eu fazia, eu ficava cansado. Um cansaço muito estranho”, relembra ele.
Após uma tomografia confirmar o diagnóstico, voltou para casa preocupado, onde encontrou sua mãe, de 72 anos, também abatida. Sem apetite e com muito sono, dona Naira Rodrigues Neves precisou ser encaminhada ao pronto socorro poucos dias depois.
“Pelo estado de saúde dela, sabíamos que minha mãe ia ficar internada. Achávamos que seria coisa de quatro ou cinco dias… Mas minha mãe entrou no hospital e não saiu mais. Naquele mesmo dia, já a entubaram e ela foi para a UTI. Ali, ela ficou”, conta Diogo.
Também enfrentando as sequelas da doença, o homem de 51 precisou ser internado durante uma semana. Assim que pôde sair, a atenção foi totalmente voltada para os cuidados com sua mãe.
Exatamente 30 dias após a ter levado ao hospital deitada no banco de trás do carro, imagens que voltam frequentemente à cabeça de Diogo, dona Naira não resistiu às complicações da covid-19.
“Minha mãe entrou no dia 24 no hospital. Ficou internada e nunca mais trocamos uma palavra com ela. Nunca mais. Se a gente imaginasse que minha mãe estava saindo pra morte...Eu choro todos os dias. Minha mãe foi a maior amiga que eu tive na vida. Minha maior companheira”, desabafa.
Ele lembra de forma vívida do primeiro dia de volta ao trabalho após a partida de sua mãe. O choro compulsivo e contínuo, que durou toda a jornada, por vezes revisita Diogo de forma mais contida, mas ainda assim, dolorosa.
Ao lado de seu pai, que se despediu de uma companheira de 55 anos de casamento, e de sua irmã, o técnico de informática tenta encontrar sentido e motivação para seguir. Para ele, entretanto, a vida perdeu a cor sem a presença doce - como faz questão de registrar - de sua mãe.
“A covid mudou o mundo. Esse ano é um ano de choro. Pode até retornar [ao normal], mas pra mim perdeu a graça. Se não existisse a covid, minha mãe não ia morrer agora, ela ia embora lá pra frente. Ela estaria aqui, com a gente. Se ela tivesse uma doença pré-existente, estaríamos mais preparados... Mas minha mãe foi arrancada da vida.”
Quase três meses após a morte, o momento mais difícil para ele é chegar em casa e não encontrá-la. Diogo não consegue entender como, diante tamanha dor, ainda há pessoas que não entendam a gravidade da pandemia.
“Na hora que essas pessoas que estão bagunçando, rindo e brincando sem máscara, perderem uma mãe, um pai, um irmão, eles vão ver o que é a covid. Tem gente que não acredita. Fazem deboche da doença. A covid é triste”, alerta.
O recado que o técnico de informática deixa gravado é para que as pessoas se cuidem, acima de tudo.
“Você nunca acha que vai bater na tua casa, mas bate sim. Quantas notícias a gente viu na televisão, morrendo 900 pessoas na Itália. Ficamos chocados. Quando eu ia imaginar, ouvindo aquelas notícias com a minha mãe, que a covid ia bater na minha casa e levar ela embora? Se eu soubesse que minha mãe ia morrer, eu ia grudar nela e não ia soltar mais”.
Perspectivas
A ausência das medidas assertivas no momento certo, na opinião de Ceuci Nunes, fará com que o Brasil continue “esticando a epidemia” em altos números diários de morte. Neste cenário, o distanciamento social e o uso de máscaras seguem imprescindíveis.
“Não tem remédio e não tem vacina. Existe uma perspectiva mas não vamos ter vacina pra todo mundo antes de um ou dois anos. Acho que vamos chegar ao fim do ano com um número de 50% a 100% maior de óbitos”, lamenta a médica infectologista.
Edição: Marina Selerges