Ensino remoto

"Estudantes sobem em caixa d'água e árvore para conseguir sinal", diz professora

Em Roraima, alunos precisam fazer verdadeiros malabarismos para se adaptar à nova rotina

Brasil de Fato | Boa Vista (RR) |

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De acordo com a Lei 9.934 a educação a distância é considerada complementar ou emergencial para o ensino fundamental e pode se dar por convênio para o cumprimento de exigências no ensino médio - Divulgação / MCTIC

Com 46 milhões de brasileiros sem acesso à internet, manter as aulas de forma remota durante a pandemia tem sido um desafio a mais para o ensino no Brasil, tanto para professores, quanto para alunos. Por todo o país as escolas foram pegas de surpresa e tiveram que se adaptar à nova realidade.

“Nem nós, professores, estávamos preparados para isso. A gente estava praticamente ainda na fase das aulas serem 80% lousa e giz e, de repente, estamos na plataforma tentando entender como usar ferramentas. E pros alunos também é muito complicado, ainda mais para os alunos pequenos do fundamental I, pro pessoal de educação infantil mais ainda”, aponta Paula Baptista Capriglione, professora das redes públicas municipal e estadual de São Paulo.

Se na região Sudeste, onde 3 a cada 4 casas tem acesso à internet, a adaptação para as salas de aula virtuais tem sido um processo complexo, em outras regiões do país os desafios são ainda maiores.

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Em Roraima, na região Norte, os alunos da rede estadual contam com o ensino virtual e aulas por rádio. Para acompanhar as aulas, alguns precisam fazer verdadeiros malabarismos.

“Tenho estudantes na minha turma que, para não deixar de acompanhar as aulas, sobem em caixa d'água e árvores para conseguir sinal melhor. Já outros que entregaram as atividades nos horários mais improváveis, já que dependem dos celulares dos parentes que trabalham durante o dia”, conta Jivaneide Barbosa, professora da disciplina de Geografia da Escola Estadual Hélio da Costa Campos.

Essa é a segunda de uma série de quatro reportagens do Brasil de Fato sobre os desafios da Educação a Distância (EaD).

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A pesquisa TIC Domicílios, realizada pelo Centro Regional e Estudos para Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), em 2019, revelou que na região Norte a proporção de banda larga fixa, por cabo ou por fibra ótica, é muito baixa se comparado ao restante do país. “Estamos falando de uma topografia diferente, de um tipo de vegetação diferente, que torna mais difícil o acesso da banda larga fixa. Enquanto a média nacional é de 61%, na região norte só tem 38% dos domicílios têm banda larga fixa”, explica Fabio Storini, analista de dados do Cetic. 

Sirdennys da Silva Santana também é professora em Roraima, mas da Rede Municipal de ensino da capital, Boa Vista. Ela leciona na Escola Municipal Professor Carlos Raimundo Rodrigues e explica que o município não validou o ensino remoto.

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As atividades são repassadas através de um projeto nas redes sociais, Aprendendo em Casa. O objetivo é reforçar o conteúdo estudado nas séries anteriores, mas não conta oficialmente como aula. Há um acompanhamento dos professores, mas só a título de reforço escolar. 

Miriam Mançano, professora da rede municipal de São Paulo, ressalta que o ensino remoto que tem sido oferecido de forma emergencial durante a pandemia não pode ser considerado Educação a Distância (EaD). "Educar é diferente de repassar atividades", aponta.

“Quando você vai dar um curso ou participar de uma formação EaD, essas pessoas foram formadas para isso. Então você conhece a plataforma, se apropria dela, percebe tudo que pode acontecer lá e conosco não foi assim. De um dia para o outro os governos decidiram que nós trabalharíamos de uma plataforma que ninguém conhecia e que nós que tivemos que ir atrás para conhecer”, explica.

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Mançano exerce a profissão há 24 anos e hoje atua também como coordenadora pedagógica. Ela aponta que, mesmo com acesso à internet, a utilização da plataforma de estudos de maneira virtual é um desafio para muitas famílias.

“Eu vou pensar nas crianças que estão no período que eu trabalho, são crianças de 6 a 10 anos, a maioria delas dependem das famílias para que tenham esse acesso e quem tem esse acesso? As pessoas sabem se comunicar pelo WhatsApp, elas tem acesso ao Facebook  em muitos dos pacotes, mas quem conhece como funciona uma plataforma?", questiona.

Santana conta que um sentimento recorrente é o de impotência. No início ela chegou a comprar com dinheiro do próprio bolso equipamentos para produzir vídeos, mas a falta de treinamento para gravação, edição e roteirização das produções a fizeram desistir. Era muito trabalho para pouco consumo, já que nem todos os alunos conseguiam acessar o material. 

Falta de conexão para estudar

A pesquisa TIC Domicílios também revela que em todo o país apenas 41% das pessoas utilizaram, no último ano, a internet para realizar atividades ou pesquisas escolares. E apenas três de cada dez pessoas utilizaram a internet para assuntos relacionados a educação, entre a população dos indicadores D e E. 

Para 57% das pessoas com renda de até um salário mínimo, a principal causa para o não-acesso à internet de maneira geral são os altos preços do serviço no Brasil. Considerando a mesma faixa salarial, 46% dizem não ter aparelhos como celular ou computador.

“Eu tive que comprar um celular e cartão de memória para um afilhado, pois a família, muito carente, só tinha 1 celular na casa e 5 filhos estudando com atividades remotas”, explica Santana sobre sua experiência em Boa Vista.

Nesse ponto, as dificuldades se assemelham com aquelas encontradas no Sudeste. “O aparelho celular, às vezes o único da família, é o da mãe e a mãe está indo trabalhar, então chega tarde e a criança já está dormindo”, relata Capriglione, sobre sua experiência em São Paulo. 

Mudança de horário

Por conta da variação de horários em que os alunos conseguem se conectar à internet, Barbosa e Santana também relatam que é comum algumas mães ligarem depois das 22h para tirar dúvidas sobre as atividades escolares. 

Em São Paulo, Capriglione passou a trabalhar em horários alternativos para aumentar a participação dos alunos em suas aulas virtuais. “Eu comecei dando aulas às 15h, depois da aula deles na TV [através da TV Univesp, na TV Cultura],  eu percebi que mais tarde dava mais certo, então agora dou aula para eles das 18h30 às 20h”, explica.

Com a mudança do horário, ela conseguiu que a participação dos alunos aumentasse. De 12 estudantes pulou para 20 ou 22. Considerando uma sala de 31 estudantes, 2  a cada 3 alunos estão conseguindo assistir as aulas no novo horário. Mas um terço ainda não consegue acompanhar a rotina de estudo há 4 meses. 

“É uma escola que tem tem bastante vínculo com os estudantes, mas tem esses alunos que estão sem interagir com a  gente, com a escola e em alguns casos a gente teme que esse vínculo acabe se quebrando”, lamenta. 

Edição: Leandro Melito