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Paulo Freire, a primavera e o tempo de esperançar

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O alimento da esperança é a luta, ancorada no fazer, que possamos nos nutrir e alimentar os nossos sonhos. Ainda que doa, é tempo de primavera, ousemos plantar! - Reprodução / Instituto Tricontinental de Pesquisa Social
O que Paulo Freire ainda poderia nos ensinar se estivesse presencialmente entre nós?

Por Delana Corazza*, Maria de Lurdes Ide** e Cristiane Ganaka***

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O mês de setembro marca a chegada da primavera no hemisfério Sul, o florescer traz consigo a ideia de renascimento, regeneração, reinício. Nessa áurea época do ano, como só os trópicos conhecem, certamente em um dia ou noite quente do Recife, anunciando a chegada da nova estação nasceu Paulo Freire, em 1921.

Semana passada, em virtude do aniversário de seu nascimento, teve início a Jornada Esperançar América Latina: rumo ao centenário de Paulo Freire. Relembramos uma breve passagem, em que ele retratava de forma amorosa sua infância: “Meu primeiro mundo foi o quintal de casa, com suas mangueiras e cajueiros... Ali engatinhei, andei, balbuciei, me pus de pé, andei e falei... eu fazedor de coisas, eu pensante, eu falante”. Germinava ali um “andarilho da utopia”.

Tempos mais tarde, Paulo Freire nos mostrou, entre infinitos ensinamentos, que a “leitura do mundo precede a leitura das palavras”: o quintal de sua casa foi sua primeira leitura do mundo.

O centenário do nascimento de Paulo Freire é marcado pela maior crise sanitária dos últimos cem anos. Porém, isso não é um problema criado somente pela pandemia do coronavírus, mas sim resultado da organização de uma ordem econômica a favor do sistema financeiro que há tempos tem gerado graves problemas de ordem social.

Esse cenário global tem despertado em nós, que acreditamos que é possível um mundo mais humanizado, múltiplos sentimentos de angústia, sofrimento, insatisfação, raiva, tristeza, apatia e impotência.

Em um exercício diário de pensar e refletir os atuais acontecimentos sobre o mundo que nos cerca - e usando as lentes de uma perspectiva antropológica freiriana de que o ser humano é inacabado, inconcluso e incompleto, que somos seres por se fazer, sempre movidos pela curiosidade e inquietudes - nos perguntamos quais os elementos necessários a nós militantes para que todos esses sentimentos aflorados nos coloquem em movimento e nos conduza a novos caminhos e a novos lugares.

Freire nos dizia que ter a consciência que “somos seres inconclusos” só fará sentido se juntarmos isso a uma luta política pela transformação da realidade; caso contrário cairá no fatalismo, pois, todos nós somos sujeitos capazes de promover a mudança; toda realidade está ai para ser modificada.

Como manter nossos sonhos com justiça, ética e liberdade nesse momento tão particular da humanidade marcadas por crises econômica, política, ética e agora sanitária? Em seu texto “A história como possibilidade”, Freire inventariou cinco dilemas que continuam desafiando a humanidade: o desequilíbrio Norte-Sul; a fome no mundo; a violência em todas as suas dimensões; a ameaça fascista e a estupefação da esquerda. Por isso indagamo-nos o que Paulo Freire ainda poderia nos ensinar se estivesse presencialmente entre nós?

Ao buscar referências em seu imenso legado - constituído de muitos ensinamentos e aprendizados - que possa nos reorientar sobre um pensar, um agir e até mesmo que sirva de acalento para nossos corações, encontramos entre tantas “bonitezas” e “tesouros” as reflexões sobre a ESPERANÇA. Nesse sentido, em virtude da tamanha urgência e necessidade em face de nossa atual “desesperança”, que iremos nos debruçar sobre esse elemento.

Antes de tudo, Paulo Freire se denominava um ser esperançoso, “não por pura teimosia, mas por imperativo existencial e histórico”. Em uma de suas obras, Pedagogia da Autonomia, Freire ressalta que a esperança é necessidade inerente ao ser; sem um mínimo dela não podemos sequer iniciar algo.

Por isso dizia que “seria uma contradição que uma pessoa progressista que não teme a novidade, que se sente mal com as injustiças, que se ofende com as discriminações, que se bate pela decência, que luta contra a impunidade, que recusa o fatalismo cínico e imobilizante, não seja criticamente esperançosa".

Dizia que é preciso ter esperança do verbo esperançar. Esperança do verbo esperar é espera. Já esperançar é ir atrás, construir, levantar adiante. “Esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo. A esperança é um condimento indispensável à experiência histórica, sem ela não haveria história, mas puro determinismo. Só há história onde há tempo problematizado e não pré-dado, a inexorabilidade do futuro é a negação da história”.

A esperança tem essa dimensão coletiva, de “sujeitos históricos que constroem no campo da existência, o amanhã, e este amanhã tem que ser feito por nós enquanto sujeitos e objetos da história. Porque, enquanto estamos fazendo este amanhã na transformação do hoje, nós somos também condicionados pelo hoje que veio do ontem. Então, ninguém é só sujeito da história. Mas é exatamente porque sei que sou objeto que posso transcender a condição de ser objeto e virar sujeito também".

Esse curto reencontro aqui com a ESPERANÇA definida por Paulo Freire nos relembra que a história não está dada, que o nosso horizonte e nosso amanhã dependem de nossa luta e nossa organização de classe. “O mundo não é, está sendo”.

Uma das inúmeras características de Freire era sua forma particular de criar ou reinventar termos e conceitos para se expressar, afinal tudo está em constante construção. O termo “que fazer” foi um desses conceitos e se encaixa às nossas atuais reflexões.

Para tornar mais concreto, citamos aqui os versos de sua Canção Obvia que nos mostra muito bem o sentido dessa expressão “que fazer”: “que” designa a busca de uma direção e o conteúdo para a ação, e o “fazer” diz a forma direta que se trata de um agir no sentido de produzir algo. Toda “boniteza” de sua vida também está expressa nesse poema publicado na Pedagogia da Indignação, após sua morte física, e escrito durante seu exílio.

Escolhi a sombra desta arvore para repousar

do muito que farei,

enquanto esperarei por ti.

Quem sempre espera na pura espera

Vive um tempo de espera vã

Por isto, enquanto te espero

Trabalharei os campos e,

Conversarei com os homens

Suarei meu corpo, que o sol queimará;

Minhas mãos ficarão calejadas;

Meus pés aprenderão os mistérios dos caminhos;

Meus ouvidos ouvirão mais,

Meus olhos verão o que antes não viam,

Enquanto esperarei por ti.

Não te esperarei na pura espera

Porque o meu tempo de esperar é um

Tempo de que fazer

Desconfiarei daqueles que virão dizer-me:

Em voz baixa e precavidos:

É perigoso agir

É perigoso falar

É perigoso andar

É perigoso, esperar na forma em que esperas

Porque esses recusam a alegria da tua chegada.

Desconfiarei também daqueles que virão dizer-me

Com palavras fáceis, que já chegastes

Porque esses, ao anunciar-te ingenuamente

Antes te denunciam.

Estarei preparando a tua chegada

Como jardineiro prepara o jardim

Para a rosa que se abrirá na primavera.
 

Na busca desse “que fazer?” Paulo Freire disse também que uma tarefa do Sul era começar a sulear, deixando assim de ser norteado. Sulear é também nos debruçarmos em nossa realidade e bebermos das formulações dos pensadores latino americanos para estarmos e agirmos no mundo.

Em diálogo com Paulo Freire, o colombiano Fals Borda difunde na década de 70 uma nova forma de fazer ciência a partir do chão latino-americano, compreendendo o enfrentamento às opressões como possibilidade de análise científica. Este enfrentamento passa a ser, portanto, não somente prática política, mas também a possibilidade concreta de leitura da realidade e de construção de conhecimento.

Subverter a ordem é tarefa científica do pesquisador militante; é a partir dessa subversão que criaremos nossos códigos de interpretação da realidade que vivemos para compor, radicalmente, a nossa narrativa, construída pelo olhar do nosso povo, de sua história, sua trajetória e, principalmente, de sua participação na luta contra as opressões vividas historicamente.

Somos cientes de nossa tarefa na condição de sujeitos históricos, capazes de promover mudanças e imaginar um futuro para continuar desejando sonhos, utopias e justiça social. Viver sem sonhos seria a negação de nossa “vocação ontológica para ser mais”. Já compreendemos que não queremos voltar ao “normal”, pois esse “normal” já não era bom para nós, classe trabalhadora.

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Assim, no inverno que vivemos já há alguns meses, as forças populares têm insistido em transformar o frio em flores, resistindo ao fatalismo e transformando o medo em esperança, esperançando. As tantas mãos trabalhadoras em uma conexão histórica entre o campo e a cidade têm enfrentado a fome que avançou assim que a pandemia se fez assustadoramente presente nessas terras.

A reforma agrária e suas bandeiras vermelhas colorindo os campos desse país tem dado respostas objetivas para a crise a partir do alimento sem veneno, plantado e cultivado pelas mãos camponesas. Desde o início, diversas organizações populares se reuniram e construíram uma campanha de solidariedade que se denominou Periferia Viva.

A doação de alimentos saudáveis, seja em forma de cestas ou na elaboração de marmitas, tem sido o marco da campanha e possibilitado a construção de vínculos e organização nos territórios.

O Tricontinental, compreendendo sua tarefa de desvelar a realidade a partir da experiência militante, tem se desafiado a construir, difundir, testemunhar e disputar o conceito de solidariedade observando ativamente o trabalho de base.

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Nesse momento, em diálogo direto com o povo, com a necessidade do povo, Paulo Freire se faz presente na fala curta de um companheiro da campanha Periferia Viva: “O aprendizado vai se dando no fazer”. É nesse momento que o fazer, fundamental na prática libertadora se coloca como princípio para a disputa.

Mais do que o medo da doença, o medo da fome atingiu diretamente os trabalhadores mais empobrecidos das cidades. Essa realidade e - nos atrevemos a dizer - o amor ao próximo, em seu sentido mais radical, se colocaram como determinante nas ações.

Saciar a fome é mais do que o ato em si, que já é tanto, mas “fazer da fome uma presença chocante, constrangedora e revoltante entre nós”, como bem nos ensinou Paulo Freire.

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Não sejamos ingênuos achando que, necessariamente, a recepção do alimento é algo passivo. Ousemos acreditar na inteligência e curiosidade do povo e na capacidade da construção de contra-narrativas a partir dessas ações.

Esse acreditar deve ser profundo e verdadeiro, “o nosso testemunho (…), se somos progressistas, se sonhamos com uma sociedade menos agressiva, menos injusta, menos violenta, mais humana, deve ser o de quem, dizendo não a qualquer possibilidade em face dos fatos, defende a capacidade do ser humano de avaliar, de comparar, de escolher, de decidir e, finalmente, de intervir no mundo".

A pergunta do povo com fome “por que essa gente sem terra está nos doando alimentos?” tem sido um caldo grosso de inúmeras possibilidades, e os militantes souberam disso.

Estiveram atentos e seguem construindo a pedagogia da escuta: ouvir as perguntas, compreender a leitura do mundo através delas, “desmontar a visão mágica” da “vontade de Deus” e construir de forma conjunta as respostas que transcendem o fatalismo, geram novas reflexões e, necessariamente, ações.

No percurso dessas ações e no avanço da organização nos territórios, novos sujeitos se colocam como parte fundamental do processo, como a construção dos agentes populares de saúde, moradores dos bairros atendidos que, a partir de um processo de formação sobre prevenção e cuidados, avançaram na contra-narrativa do negacionismo do presidente Bolsonaro em relação ao vírus.

“O povo cuidando do povo” anuncia uma nova forma de organização e de estar no território. Suas ações cotidianas possibilitaram ainda mais, afinar o olhar para a realidade desses espaços. A oportunidade de gestar um novo militante a partir da prática do cuidado é um dos elementos do avanço na disputa da solidariedade.

Os militantes do Periferia Viva têm carregado em suas mochilas máscara, álcool em gel, poemas, amores, medos. Carregam Paulo Freire, pensadores populares, mulheres em luta nas periferias e nos campos e a história de tantos outros militantes; mas não estariam ali sem a capacidade de esperançar.

As tantas periferias de nosso país têm sido a terra fértil de um povo que, acostumado a ajudar e ser ajudado em seu cotidiano, se vê agora desafiado a se auto-organizar e a compreender o seu território como espaço de cuidado e autocuidado coletivo.

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Essa solidariedade popular, tão presente na necessidade imediata das tantas gentes, é alimento da luta e semente do avanço na disputa de um solidariedade revolucionária. Senhorinha, militante de Olinda, da mesma Pernambuco de Paulo Freire, aprofunda a reflexão:

“A solidariedade popular é a capacidade criativa que o nosso povo tem em momentos de maior crise encontrar coletivamente as respostas dessa crise. O nosso povo já tem o germe da solidariedade: a mãe que leva o filho da vizinha na escola, Dona Maria que só tem um quilo de feijão divide com José que não tem nenhum, mas a solidariedade de classe é a gente se perceber como um povo, como uma classe que é explorada, oprimida o tempo todo, é essa necessidade de ajudar o outro chamando-o a perceber a realidade que está inserido. Não é ensinar a pescar, mas perguntar por que ele, ainda que possa aprender a pescar, não tem a vara”.

A pandemia colocou, dramaticamente, a possibilidade de repensarmos nossas práticas e reinventarmos nossas ações e formulações, nos desafiarmos a desvelar e disputar essa nova solidariedade, imbuídos da esperança que Paulo Freire nos ensinou, fincada na prática militante, na ação concreta que nos desafia a fazer e mudar a história.

O alimento da esperança é a luta, ancorada no fazer, que possamos nos nutrir e alimentar os nossos sonhos. Ainda que doa, é tempo de primavera, ousemos plantar!

*Delana Corazza é pesquisadora do Observatório sobre os neopentecostais na política.

**Maria de Lurde Ide é educadora.

***Cristiane Ganaka é pesquisadora do Instituto Tricontinental.

Edição: Leandro Melito