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O culto à preguiça: entre a admiração e a perda da aposta

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Crônica adentra uma aposta sobre preguiça feita na mesa de bar
Crônica adentra uma aposta sobre preguiça feita na mesa de bar - Pixabay
O sujeito mais preguiçoso que eu conheci foi um da minha terra, em Minas Gerais

Sempre tive muita admiração pelo Dorival Caymmi, tanto por sua música quanto pelo seu modo de viver. Ele gostava de parecer preguiçoso, cultuava a preguiça. Criou um verdadeiro mito em torno disso.

Tanto que inventaram muitas histórias sobre essa preguiça. Segundo uma delas, um dia Caymmi estava conversando com Jorge Amado, na varanda da sua casa, em Salvador (BA). Ele, recostado numa rede, com os pés no chão, uma perna de cada lado da rede, e Jorge Amado em frente, sentado numa cadeira.

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A certa altura, Caymmi teria perguntado:

- Jorge, você que está aí em frente, me diga: minha braguilha tá aberta?

Jorge Amado teria respondido.

- Não, Dorival... Tá não...

Aí ele deu uma respirada funda e falou:

- Então eu mijo amanhã...

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Mas o sujeito mais preguiçoso que eu conheci foi um da minha terra, em Minas Gerais, conhecido como Julinho da Penha.

Eu já morava em São Paulo (SP). Fui passar umas férias lá e estava conversando com um amigo, Tião Dentista, em frente a um bar, quando vi o Julinho se aproximar vagarosamente... Mas vagarosamente mesmo. Parecia que tinha que pensar para dar cada passo.

Figura simpática, o Julinho gostava de se enfeitar com fitas de papel crepom de todas as cores, enroladas no chapéu. E as pessoas davam dinheiro e comida a ele.

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Falei com o Tião:

- Olha o Julinho da Penha... Fazia uns cinco anos que eu não via esse mudo.

O Tião respondeu:

- Ele não é mudo, não.

- Como? - falei.

- Eu conheço o Julinho há muitos anos e nunca ouvi ele falar nada.

- Ele não fala por preguiça - afirmou o meu amigo.

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Duvidei. Ele garantia que o Julinho não era mudo, mas tinha preguiça de falar. Apostamos.

Para se ter ideia de como ele era vagaroso, deu para fazer toda essa discussão até ele caminhar uns vinte metros e chegar a nós.

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Aí ele levantou a mão vagarosamente, perto da boca, e fez sinal que queria comer. O Tião falou para ele:

- Olha Julinho, nós vamos te pagar um sanduíche. Mas você tem que pedir. Tem que falar: "eu quero comer".

O Julinho fez uma cara triste, para ver se nos emocionava, mas o Tião foi firme:

- Se não falar, nós não te damos o sanduíche.

Ainda com a cara triste, o Julinho me deixou espantado. Falou no ritmo dele:

- Eeeuuu... que...ro... co...mer.

Edição: Daniel Lamir