Controvérsias

Revogações "truculentas" do Conama geram insegurança jurídica, diz advogada da OAB-SP

Em entrevista ao Bem Viver, Glaucia Savin aponta falta de diálogo do governo Bolsonaro como motivo para disputa judicial

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |

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"O que você vai ter é o Judiciário, porque não sobrou nenhum outro espaço de negociação”, afirma Glaucia Savin, da Comissão de Meio Ambiente da OAB-SP - Arquivo/Agência Brasil

As revogações de quatro normas de controle ambiental por parte do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) na última segunda (28) continuam provocando protestos pelo país. Apesar de temporariamente suspensas pela Justiça na terça-feira (29), as extinções de duas resoluções, as de número 302 e 303, que traziam regras para Áreas de Preservação Permanente (APPs), ainda podem voltar a valer porque o caso segue sob disputa judicial.

Em entrevista ao programa Bem Viver, da rádio Brasil de Fato, nesta quarta (30), a presidente da Comissão de Meio Ambiente da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP), Glaucia Savin, afirmou que as revogações trazem insegurança jurídica porque foram articuladas pelo governo Bolsonaro sem diálogo e participação social.  

“Dessa maneira como estão sendo feitas, de forma truculenta, o que você vai ter é o Judiciário, porque não sobrou nenhum outro espaço de negociação”, cravou a presidente, que atuou no Conama durante dez anos.

Ela chamou a atenção para a “aderência” que as normas do conselho costumavam ter pelo fato de passarem por um longo período de discussão até sua vigência. “Todos os atores participam e, quando elas iam pra plenário pra votação, já estavam maduras, e já tinham uma ampla aceitação de todos os atores sociais”.  

Durante a conversa, Glaucia Savin também comentou a importância da Resolução 284, que definia normas de licenciamento ambiental para projetos de irrigação, e  foi extinta. Ela lamentou ainda a nova e controversa norma criada pelo colegiado, que autoriza a queima de embalagens e restos de agrotóxicos em fornos industriais.

Confira a entrevista na íntegra.  

Brasil de Fato: Especialistas apontam que cada norma extinta tinha sua importância dentro do arcabouço normativo que protege o meio ambiente no Brasil. Sobre a Resolução 284, que trazia regras por licenciamento ambiental em projetos de irrigação, o que significa não ter mais uma normativa como essa em vigor? Vai ser possível fazer esse tipo de empreendimento sem licenciamento?

Glaucia Savin: Depende do estado da Federação. Se o estado tiver alguma norma mais restritiva, ela prevalece, mas, se for um estado que não tem norma nenhuma, essa possibilidade realmente está aberta. Então, não vai ser necessário você ter licenciamento pra algum tipo de empreendimento agropecuário que vai utilizar o sistema de irrigação.

Tem especialistas alertando pro risco de uma escalada ainda maior no numero de conflitos por água no país. Os números da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostram que essas ocorrências aumentaram 77% entre 2018 e 2019, segundo levantamento próprio da entidade. Em Correntina, na Bahia, um conflito dessa natureza eclodiu em 2017 porque a comunidade local disputa o recurso com o agronegócio. A senhora também vê um risco de aumento mais estratosférico com o fim da resolução?

Vejo que existe um desregulamento geral e há estados não só no Nordeste, mas agora no Sul, por exemplo, que vivem um estresse hídrico. A gente vê, por exemplo, que o estado de Santa Catarina tem mostrado uma deficiência de sobra de água pra projetos.

É um estado que tem uma matriz agropecuária bastante forte e, quando você flexibiliza as regras de utilização de um recurso que é escasso, você está incentivando o conflito, porque o papel do governo é esse de regular a utilização desses recursos escassos e prevenir o conflito.

Na hora em que o governo desregulamenta, ele deixa pra sociedade esse papel. Eu acho que isso veio num instante ruim principalmente porque a Resolução 284 priorizava projetos com eficiência de consumo de água e de energia. Então, ela era bastante positiva nesse sentido de incentivar projetos sustentáveis do ponto de vista ambiental. Agora a gente perdeu mais uma resolução.

Essa mudança também pode ter algo a ver com insegurança jurídica?

Totalmente. Da forma como essas resoluções foram revogadaas, sem um debate maior, com o Conama esvaziado em relação a sua representatividade, a gente vai ter a judicialização de todas essas revogações, e isso traz para o empreendedor insegurança jurídica.

O Conama se notabilizou, durante todos esses anos passados, pela aderência das suas normas, porque, como ele era um conselho composto por mais de 90 membros de uma ampla representação social, a gente brincava [dizendo] que as normas do Conama “pegavam”.  

Então, você tem as normas do Proconve [Programa de Controle de Poluição do Ar por Veículos Automotores], tem as normas que são relacionadas a efluentes líquidos dos empreendimentos, etc. Eu posso citar aqui uma série de normas, e todas elas tiveram aderência porque você tem longo tempo de discussão, com nove ou dez meses de discussão, até que elas sejam editadas.

Então, como todos os atores participam, quando elas vão pra plenário pra votação, elas já estavam maduras, e aí já tinham uma ampla aceitação de todos os atores sociais. Agora, dessa maneira como está sendo feita, de forma truculenta, o que você vai ter é o Judiciário porque não sobrou nenhum outro espaço de negociação.    

Sobre as Resoluções 302 e 303, também revogadas, elas tratavam de padrões e limites para Áreas de Preservação Permanente (APPs) de reservatórios artificiais e o regime de uso do seu entorno. Tem especialista dizendo que os manguezais e as faixas de restinga do litoral tendem a viver maiores ataques... A senhora também vê esse risco?

O ministro Salles fala que essas resoluções teriam sido tacitamente revogadas pelo Código Florestal, mas essa é uma interpretação, a meu ver, apressada porque existiam dispositivos que traziam regulamentações nas quais o Código não chegava. Então, quando você fala do regime de utilização do entorno de reservatórios, o Código estabelece os limites, mas a resolução previa, por exemplo, os planos pra utilização dessas áreas.

Da mesma forma, a Resolução 303, que também fala das APPs... O Código não fala das APPs, áreas de manguezal, restingas, mas ele não falava em detalhes desses limites. A 303 trazia um dispositivo bastante útil que era a caracterização de uma área urbana, porque a gente sabe que, muitas vezes, os municípios, até pra fins arrecadatórios de IPTU, transformam áreas rurais em áreas urbanas, e a resolução falava, do ponto de vista ambiental, quais eram as características de uma área pra ela ser reconhecida como urbana.  Ela trazia os requisitos.

Então, isso era muito importante e auxiliou bastante na interpretação do direito, na aplicação dos limites do próprio Código. Agora, sem isso, eu acho que quem analisou e quem fez o parecer pro ministro se apressou. Se tivesse tido uma discussão, alguns dispositivos teriam sido salvos, dispositivos esses que são importantes pra dar segurança jurídica para os próprios empreendedores. 

Paralelamente a essas revogações, o governo também trouxe uma nova norma que permite que materiais de embalagens e restos de agrotóxicos sejam queimados em fornos industriais pra serem convertidos em cimento. Essa novidade se impõe sobre a norma em vigor até então, que determinava um descarte mais responsável do material. Que prejuízos ambientais tendem a surgir, com isso?  

Foi a revogação da Resolução 264, que já permitia queimas em fogos de cimenteira. Ok, já existia essa possibilidade, mas o que acontece agora? Foi editada uma nova norma, que também permite a destruição de resíduos em fornos de cimenteira. Só que a gente precisa ter a seguinte compreensão: o forno de cimenteira não é um incinerador. Ele é um forno pra fabricação de cimento, e você utiliza biomassa ou outros resíduos como combustíveis, mas, originalmente, ele não foi concebido pra destruição de resíduo.

Então, quando você vai destruir resíduo num forno de cimenteira, tem que ter muito cuidado porque você tem que ter esse resíduo muito bem caracterizado, tem que fazer teste de queima pra saber se esse forno tem capacidade, se atinge temperaturas tais que conseguem destruir aquele resíduo de uma forma completa. E o que a gente tem aqui [agora]? Tem a previsão de queima de resíduos sólidos urbanos.

Essa é uma preocupação, pra mim, muito mais elevada do que a queima do agrotóxico, porque o agrotóxico você tem uma batelada, identifica, caracteriza e vê se é possível ou não fazer essa destruição, mas o resíduo urbano é heterogêneo. Então, cada vez que chega uma batelada, não adiante você caracterizar porque ela não vale pra batelada seguinte, e você não vai caracterizar todo dia. E o resíduo urbano a gente produz nas nossas casas.

Como isso funciona? Eu jogo meu lixo, você joga seu lixo. Eu faço reciclagem do meu aqui em casa, separo o úmido e o seco. Mas, vamos imaginar uma cidade ou estado onde isso não aconteça e tudo que você produz vai embora, aí a norma fala que tem que ter uma caracterização e uma triagem, mas você não faz triagem de resíduo urbano, pelo seguinte [por exemplo]: você está com uma pessoa doente na sua casa com covid-19, então, os restos de alimento, as fezes no papel higiênico, isso tudo vai pro lixo da mesma forma que vão as caixas ou qualquer outro recipiente. Você não vai colocar uma pessoa em contato com esse lixo porque ele é infectante.

Esse esvaziamento do plenário do Conama foi prejudicial pra toda a sociedade.

As pessoas também jogam, às vezes, remédios vencidos, pilhas, baterias, então, o lixo urbano é muito heterogêneo e você não pode fazer triagem do lixo úmido. Isso é uma falha grande da legislação, inclusive, porque ela prevê que alguns parâmetros você vai monitorar com uma frequência maior e outros você vai monitorar eventualmente. O de dioxinas [grupo de compostos químicos poluentes] é um deles.

Quando você pega o lixo urbano, você tem de tudo e, se não tiver um forno de cimenteira trabalhando numa temperatura elevada, você não só vai ter formação de dioxinas e furanos [substâncias cancerígenas que contaminam o meio ambiente e prejudicam a saúde humana] como você vai ter a destruição incompleta de boa parte desses resíduos. Então, não ficou bom. Mais uma vez, faltou o diálogo com a sociedade.

Falando nisso, a pauta da reunião da última segunda do Conama foi muito questionada por parlamentares, ambientalistas e pela Associação Brasileira de Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), que chegaram a solicitar a retirada desses pontos da agenda. A OAB também entende que faltou essa interlocução com outros atores, então?

A OAB de São Paulo entende isso. E o que eu acho é que esse esvaziamento do plenário do Conama foi prejudicial pra toda a sociedade porque, quando você tem diversos atores, claro que a decisão é mais complexa, dá mais trabalho, mas democracia dá mais trabalho mesmo. Eu costumo brincar dizendo que democracia é para os fortes porque nos obriga a ouvir opinião contrária, nos obrigada a continuar discutindo em cima das divergências, e a imposição é sempre o caminho dos fracos, daqueles que não têm argumentos muito fortes em seu favor.

E a gente demorava muitos meses pra elaborar uma resolução. Eu trabalhei dez anos no Conama, representando a Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente, e eu me lembro muito bem disso. Nós passávamos um tempo bastante grande, mas isso era importante pra trazer maturidade pros textos. Agora, sem essa discussão, perdemos todos porque a gente vê que equívocos que poderiam ter sido evitados não foram por conta da falta de oitiva com especialistas, com pessoas que conhecem esses temas.

Edição: Rodrigo Chagas