Coluna

Da operação Mãos Limpas à Lava Jato: crítica a um garantismo “à brasileira”

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As narrativas alinhadas ao punitivismo que comanda a sociedade contemporânea se contrapõem ao Garantismo - Fellipe Sampaio/SCO/STF
O Garantismo passou a se constituir um título honorífico, um passaporte, uma deferência

Por Marilia Lomanto Veloso*

"O que será que será / O que não tem governo nem nunca terá / O que não tem vergonha nem nunca terá / O que não tem juízo.” (Chico Buarque)

Será mesmo que há um surto de garantismo? Será, Ministro Barroso?

Rômulo de Andrade Moreira, procurador de Justiça do Estado da Bahia, canta Chico Buarque e seduz o leitor para lembrar o discurso do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental 395 e 444, verberando que “quando juízes corajosos começam a delinear direito penal menos seletivo há um surto de garantismo".

A Suprema Corte não é um bloco monolítico, mas tensiona suas decisões, se posiciona em espaços divergentes, a partir da visão de mundo, de orientação teórica, de postura ideológica (e de força política) de seus/suas integrantes. Essa “divisão de alas” se escancara, abre fissuras e implode os discursos da segurança jurídica, da “imparcialidade” nas decisões da Lava Jato e nas hipóteses dos crimes de colarinho branco (cifra oculta da criminalidade).

Desse modo, a mais alta corte de justiça do Brasil franqueou o ingresso da opinião pública, da mídia, em especial, da área jurídica, a protagonismos de ministros “garantistas”, (mais preocupados com os direitos fundamentais dos réus), ministros “legalistas” (severos na aplicação da lei), e ainda com a “terceira divisão” quando esses ministros se posicionam ora em um ora em outro espaço de disputa teórica.

O Garantismo passou a se constituir um título honorífico, um passaporte, uma deferência que, em tese, transmite confiança na resposta a uma pretensão jurídica, maior expectativa de um comportamento ético no trato com uma função pública, a exemplo da exercida pelo sistema de justiça.

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Resta indagar sobre o Garantismo nas terras brasileiras, se pratica, de fato, a essência filosófica da teoria de Luigi Ferrajoli, reconhecido por sua postura progressista, de juiz que integrou a magistratura democrática e legou às gerações o juspositivismo de suas produções.

Norberto Bobbio, em "Prefacio a Direito e Razão, Teoria do Garantismo Penal", aduz que “até mesmo o mais perfeito sistema do garantismo não pode encontrar em si mesmo sua própria garantia e exige a intervenção ativa por parte dos indivíduos e dos grupos na defesa dos direitos que, ainda quando se encontrem normativamente declarados, nem sempre estão definitivamente protegidos”. (Ed Revista dos Tribunais, 2002, p. 12)

Bobbio parece estabelecer um diálogo com Leandro Konder, quando expressa que “o Processo Histórico não se realiza automaticamente por si mesmo. Ele é o resultado da intervenção do Sujeito”. Ambos referenciam a intervenção (dos sujeitos e dos indivíduos) como ingredientes exigidos, um, para “garantir o garantismo”, outro, para realizar o processo histórico. Com isso, querem afirmar que direitos, ainda que positivados, não significam dispensa de cuidados que devem ter os sujeitos para que possam efetivamente assegurar sua efetivação.

Em leitura crítica à formulação teórica de Ferrajoli, porque descamba para a relegitimação do direito penal (o que é fato), Paulo Queiroz traduz os fundamentos da nobreza garantista do italiano, quando se presta, também “à deslegitimação dos sistemas penais concretos, que, total ou parcialmente, violem o modelo de direito penal mínimo proposto”.

Isso significa, segundo Queiroz, um direito penal onde a intervenção do Estado se limite a situações “de absoluta necessidade – pena mínima necessária” e um “garantismo” de tutela de valores e direitos fundamentais, “cuja satisfação, ainda que contra interesses da maioria, é o fim justificador do direito penal”. (Introdução crítica ao estudo do sistema penal, Editora Diploma Legal, 1999, p. 120)

Ana Cláudia Bastos de Pinho, em abordagem sobre o tema, lembra que “o garantismo foi o convidado que entrou pela porta dos fundos”, denunciando o encastelamento de "Direito e Razão" nos espaços de pós-graduação. Para a autora, nossa tradição autoritária não autorizaria que “uma teoria que resgata postulados liberal-iluministas e propõe limites e vínculos ao exercício do poder fosse amplamente difundida, seriamente estudada e corretamente utilizada pelos que atuam no sistema de justiça criminal”. O Garantismo seria, então, uma ameaça ao punitivismo, originando uma “campanha antigarantista, com o fim de produzir espécies de fake news, afirmando coisas que Ferrajoli jamais escreveu”. (Garantismo penal: Ferrajoli por Ferrajoli, colocando os pingos nos is)

Alfredo Copetti Neto e Ana Cláudia Pinho identificam tentativas de desconstrução estrutural do Garantismo jurídico, afirmando que conceitos têm genealogia, não são inventados. E indaga “o que permite alguém dizer algo sobre algo?" Deltan Dallagnol, (Procurador da Lava Jato), a propósito desse “dizer algo”, “inventou” a necessidade de um “Garantismo Integral”, diante do que denominou de “hipergarantismo”. Surge, nos autores a preocupação com a cultura punitivista do modelo penal de encarceramento do país, a exigir, “a toda urgência” uma “contra-ordem”. (Garantismo Integral: a “teoria” que só existe no Brasil)

E no Brasil, o que será de um país que tem um governo federal que não tem vergonha e não tem juízo?

A conjuntura dispara uma tragédia política, sob uma presidência de indiscutível descrédito na comunidade internacional, identificada por uma conduta irrefreável no modo de se relacionar com os demais poderes, com demonstrações públicas de descontrole verbal, de frequente surto de desrespeito a princípios e valores humanos assegurados constitucionalmente.

Uma gestão ladeada por uma horda que, independente de formação acadêmica, patente ou grau intelectual se despe desse repertorio e se subalterniza. E essa paródia de governo é resultado dessa “versão híbrida de garantismo e legalismo” do sistema de justiça que silenciou (e pactuou) diante dos abusos e das ilegalidades que subtraíram a soberania popular mediante estratégias virtuais que fazem corar a mais intrépida Orcrim.

As narrativas alinhadas ao punitivismo que comanda a sociedade contemporânea se contrapõem ao Garantismo, sob a acusação de que se coloca como um entrave à condenação de sujeitos “desviantes”, culpados no discurso dogmático. Ao ser entrevistado pela Folha de S. Paulo, via eletrônica, Luigi Ferrajoli se insurge contra essa crítica para afirmar que o Garantismo “é um obstáculo à condenação de bodes expiatórios inocentes, certamente capazes de satisfazer a demagogia populista, mas certamente não é um obstáculo à responsabilização penal daqueles que realmente cometeram crimes”.

Manifestando-se sobre a cooperação estabelecida na operação Lava Jato entre o Ministério Público e o juiz (Sérgio Moro), de ampla divulgação pelo The Intercept Brasil, lesionando o sistema acusatório com danos ao Estado de Direito, o jurista apontou os riscos à imparcialidade, o descrédito no julgamento, lembrando lição de Cesare Beccaria, de que “nessa confusão” o juiz se desveste da condição de "um imparcial investigador da verdade" e "se torna um inimigo do réu", e "não busca a verdade do fato, mas busca no prisioneiro o delito, prepara-lhe armadilhas, considerando-se perdedor se não consegue apanhá-lo”.

Na referência ao processo contra Luiz Inácio Lula da Silva, Ferrajoli expressou que a condenação violou garantias do devido processo legal, e que “em qualquer outro país, o comportamento do juiz Moro justificaria sua suspeição, por sua explícita falta de imparcialidade e pelas repetidas antecipações de julgamento”. E acrescentou que os julgamentos da operação Mãos Limpas também se pautaram por excessos. Entretanto, “comparados ao julgamento contra Lula, esses julgamentos parecem um modelo de garantismo”.

A sociedade escravizada pela linguagem apenas escuta os rumores midiáticos do que pactuam as “Cortes” de decisão jurídica, política sobre o mais novo figurante do Órgão Supremo da Justiça. Içado ao poder sem zelo algum pelas regras, mesmo que não sejam protocolares, mas da fineza e elegância no trato com as ferramentas que regem as relações institucionais, bastou um estalar de dedos para a aceitação de partilha do poder no Olimpo, aboletar-se em um lugar que nem vazio está, ainda. Aplausos ressoaram consagrando a escolha, junto à afirmação: “É um garantista”. Mas quem garante qual será a decisão do garantista, diante de um enredo como o que se canta no Brasil?

Indaga o poeta:

"O que será que será, que andam combinando no breu das tocas?"

Shakespeare responderia, como o Capitão a Hamlet:

"Pra falar a verdade, sem rodeios,

Vamos tomar uma pequena terra,

Que nada vale além do simples nome."

*Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, Mestra e Doutora em Direito Penal, Professora aposentada da UEFS. Promotora de Justiça da Bahia, aposentada, Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos, membro do CDH da OAB/BA, da AATR, da RENAP e da ABJD.

Edição: Rodrigo Chagas