SISTEMA PRISIONAL

Com quase 887 mil presos, Brasil desconhece extensão da covid-19 nas prisões

Relatório mostra que 32% dos estados não publicam qualquer informação da doença sobre a população carcerária

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Para entidades, Estado permite “massacre silencioso” - Foto: Gláucio Dettimar/AG CNJ

A pandemia do novo coronavírus avança para dentro dos presídios, mata detentos e servidores, mas passa invisível em alguns estados. Relatório da Open Knowlegde Brasil (OKBR, Rede pelo Conhecimento Livre), divulgado no dia 7 de outubro, aponta que o Brasil desconhece a extensão da covid-19 nas prisões. A análise, inédita, identificou que quase um terço dos estados, 32%, não publica ou atualiza informação em canais oficiais sobre o contágio da covid-19 entre a população privada de liberdade nas prisões do país. 

De acordo com o levantamento que integra o Índice de Transparência da Covid-19 (ITC-19), até a segunda quinzena de setembro, Acre, Bahia, Ceará, Mato Grosso, Paraíba, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, São Paulo e Tocantins, não eram nada transparentes sobre a situação da pandemia nas unidades provisórias, penitenciárias e do sistema socioeducativo. “Um quadro de forte opacidade”, avalia a organização social. 

Perto de atingir um total de 887 mil presos – com 886.872 pessoas encarceradas – de acordo com o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na prática, o que o país faz é quase como ignorar a situação da pandemia em Roraima e Amapá. A terceira maior população carcerária do mundo também ultrapassa em número de habitantes os dois estados, que têm 631,1 mil e 861,7 mil residentes, respectivamente, segundo o IBGE. E já está perto de alcançar o Acre, com mais de 894 mil habitantes. 

Covid-19 e óbitos em prisões

Oficialmente, só no sistema prisional até o dia 5 de outubro, haviam 39.595 casos confirmados da covid-19 e 199 óbitos. Entre as vítimas da doença, 115 custodiados e 84 servidores. Já no sistema socioeducativo, 4.190 adolescentes e agentes foram infectados pelo novo coronavírus. Sendo que 22 pessoas perderam a vida em decorrência da doença – todos trabalhadores. 

O próprio CNJ, responsável pelo monitoramento de casos e óbitos junto aos tribunais e governos estaduais, adverte, no entanto, que esses números podem ser maiores “devido às fragilidades na produção desses dados, em razão de questões como a baixa testagem e a precariedade para se realizar diagnósticos”. Até o dia 15 de setembro, segundo o órgão, 70.519 testes foram realizados na população de mais de 886 mil presos.

Informações superficiais 

Em julho, quando a OKBR deu início ao levantamento, eram 15 o total de estados, ou 54%, que também não divulgavam informações sobre os casos confirmados da doença. Apesar do número de entes ter diminuído, a redução está longe de significar que há qualidade na informação. Ao monitorar a falta de transparência na divulgação de dados, a organização também verificou a ausência de informações sobre os testes para detecção da covid-19. Ao menos 79% dos estados não informam a quantidade de exames aplicados no universo da população privada de liberdade. 

O relatório conclui que, mesmo entre os entes que publicam dados da pandemia na população carcerária, a qualidade das informações não passa do nível “superficial”. “Não é suficiente para realizar estudos mais específicos para essa população”, explica um trecho do documento. 

Até 39%, por exemplo, não divulgam o número de óbitos. Mais da metade (57%) não publica a quantidade de casos curados, ou de notificados, suspeitos e em investigação (61%). Dos estados, 68% não têm informação sobre quantas pessoas estão sendo acompanhadas, em isolamento ou quantos casos foram descartados. Segundo a OKBR, 75% não detalham a quantidade de casos por unidades prisionais ou por municípios (86%). 

Sem dados sobre idade e sexo

Faltam também dados básicos como sexo e idade das vítimas da covid-19 entre a população carcerária. Quase todos os estados, 96%, não disponibilizam essas informações recortadas por gênero e faixa etária. O que pode invisibilizar ainda a situação das mulheres no cárcere, observa o assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional, Lucas Gonçalves.

“As mulheres antes da pandemia já recebiam poucas visitas e, durante, não receberam nada. A consequência disso foi um número ínfimo, quiçá nulo de informações de qual é a realidade dessas mulheres presas durante a pandemia. Não se sabe quantas foram contaminadas ou mortas”, afirma Gonçalves.

Covid-19 cresce nas prisões

Amontoados em celas insalubres, superlotadas, pouco iluminadas e ventiladas, epidemiologistas e infectologistas já previam que os presídios seriam verdadeiras “bombas biológicas” para proliferação do novo coronavírus. Como já ocorria mesmo com doenças evitáveis, como a tuberculose, que tem alta incidência nas prisões.

De fato, até o final de setembro, segundo balanço do CNJ, apesar de toda a defasagem das informações, a taxa de contágio entre as pessoas presas – 3.774,4 para 100 mil habitantes – já era maior do que o índice de infecção entre a população no geral, de 2.258,2. Entre os trabalhadores de estabelecimentos penais, a covid-19 apresentava uma taxa três maior, de 7.694,5. 

Em 20 dias após o primeiro caso de coronavírus em uma prisão, em abril, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) já contabilizava outros 107 contaminados. O aumento de casos de covid-19 entre os meses de maio e junho chegou a atingir 645% nas unidades prisionais. Enquanto que, na população geral, o doença crescia 477%.

Massacre silencioso

Para o assessor jurídico da Pastoral Carcerária, a pandemia “escancarou a face massacrante e violenta do próprio presídio, especialmente na questão da saúde”. “A saúde sempre foi um serviço não prestado pelo Estado para as pessoas privadas de liberdade”, destaca. O agravante, contudo, segundo o assessor, é “o Estado está se negando a ir atrás, colher e divulgar” as informações sobre os casos confirmados e de óbitos. 

“Ao negar a informação sobre a realidade da pandemia no cárcere, o Estado o torna cada vez mais invisível aos olhos da sociedade. Isso permite ao próprio Estado manter e reproduzir a sua política de genocídio, massacre e produção de doenças”, analisa Gonçalves. “Isso também mostra que o que acontecia antes da pandemia está se agravando cada vez mais. O Estado está massacrando as pessoas. E esse massacre é silencioso, até por conta da própria medida que ele adotou, de suspender as visitas e, ao mesmo tempo permitir ainda que presos fossem transferidos”, contesta. 

Em São Paulo, por exemplo, um dos estados que faltam com a transparência, há familiares de presos que desde março, quando as visitas foram suspensas, não têm notícia de seus entes. A falta de informação pública, que nivela para baixo a transparência do Estado, provoca nas famílias medo e saudade. 

O drama das famílias

À RBA, a assessoria da Associação de Amigos e Familiares de Presos, a Amparar, conta que a comunicação dos custodiados está limitada a troca de cartas e e-mails. Em poucos casos, para quem está cadastrado, é possível entrar em contato por meio de visitas virtuais, criticadas por falhas do próprio serviço ou dificuldades técnicas. Em um dos casos acompanhados pela associação, um preso chegou a ser internado por conta da covid-19, mas a família só ficou sabendo do caso quando ele veio a óbito. 

Entre os que conseguem enfrentar todos os obstáculos e se comunicar com a família, os relatos vêm também carregados de denúncias. 

“O racionamento de água, a falta de alimentação e medicação”, elenca a Amparar. A Pastoral Carcerária também confirma as denúncias. De acordo com a entidade, entre 15 março a 20 de setembro, foram registradas 86 violações de direitos, desde tortura, agressão física a falta de assistência à saúde. Quase o dobro do ano passado quando, para o mesmo período, segundo a Pastoral, foram feitas 45 queixas. 

“A gente percebe que esse é um Estado que não garante nada, porque na verdade essas pessoas estão lá sobre a tutela dele. E ele não dá minimamente a garantia de direitos dessas pessoas. É uma situação muito complicada e o Estado pouco está se importando com essa população. É o tempo todo essa reprodução de violação de direitos”, lamenta a Amparar por meio de sua assessoria.  

Cadeia não é uma ilha

Há quase três meses, 213 entidades lembravam na ONU e na OEA a responsabilidade do governo de Jair Bolsonaro pelo que chamaram de “genocídio nas prisões via covid-19”. Em agosto, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) instou o Brasil a reduzir a superlotação carcerária. Em resposta à denúncia das entidades, o órgão da OEA também defendeu a importância da Resolução 62 de 2020 do CNJ, que determina penas alternativas ao cárcere para garantir o desencarceramento. Até o início de outubro, 58,2 mil presos passaram para a prisão domiciliar. O que representa apenas 6,6% dos encarcerados, segundo reportagem do Correio Braziliense. 

Gonçalves, assessor jurídico da Pastoral Carcerária, adverte, contudo que a doença do novo coronavírus é capaz de transpor os muros mais difíceis. Até mesmo o dos presídios, onde as informações são retidas pelos estados. 

“A cadeia está dentro da sociedade e múltiplas relações atravessam esses poros dos muros das prisões, então as coisas que acontecem lá dentro podem repercutir fora. Se a covid-19 continuar existente dentro das prisões, isso significa que ela continuará existente dentro da sociedade. E a sociedade também irá sofrer as consequências dessa enfermidade tão mórbida que está assolando o país”, previne.