Coluna

A boiada que desmatou manguezais e restingas

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O setor imobiliário se beneficiará com a derrubada, por Ricardo Salles, de resoluções que restringiam o desmatamento em áreas de manguezais e restingas. Ramo de hotelaria, que busca regiões praianas para resorts, é o que mais ganha - Tânia Rêgo / Fotos Públicas
A reorganização administrativa feita no CONAMA foi um retrocesso na proteção ao meio ambiente

Por Marina Rocha Moreira*

Na reunião ministerial do dia 22 de abril deste ano, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, sugeriu ao Presidente da República “passar a boiada” em relação à aprovação de normas ambientais que desfavoreçam a proteção dos ecossistemas brasileiros, modificando o ordenamento jurídico e simplificando regras no período de pandemia do coronavírus.

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Na segunda-feira, dia 28 de setembro, o referido ministro fez com que, de fato, a boiada passasse, quando, na presidência do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), derrubou resoluções que restringiam o desmatamento em áreas de manguezais e restingas, dentre outras medidas.

Ao extinguir essas resoluções, que eram válidas no ordenamento jurídico desde o ano de 2002, o presidente do CONAMA justificou, em uma reunião rápida de pouco mais de três horas, que as medidas que restringiam o desmatamento nas áreas de proteção permanente citadas já eram previstas em outras leis, inclusive no Código Florestal vigente. O Ministério Público Federal, que não tinha direito à voto nesta reunião, se mostrou contra as decisões de derrubadas das resoluções diante da alegação de inconstitucionalidade das medidas adotadas pelo Conselho. Soma-se a isto, a diminuição da participação de membros da sociedade civil como conselheiros do CONAMA, número esse que foi diminuído no ano passo pelo governo federal, passando de 96 para 23 membros, dentro os quais Ricardo Salles, ocupando o cargo de presidente.

Em termos de política ambiental, essa reorganização administrativa feita no CONAMA no ano passado foi um retrocesso na proteção ao meio ambiente brasileiro. Isso porque, da forma como foi reestruturado o Conselho, com a diminuição da participação da sociedade civil, inclusive de organizações ligadas à proteção da natureza, o CONAMA foi ordenado estruturalmente para favorecer as decisões do atual presidente da instituição.

Essa desestruturação é considerada pelo advogado ambientalista Rodrigo Bordalo uma ilegalidade que, somada a outras 14, são o ponto de partida para pedir a condenação do ministro na prática de crimes ambientais resultando em seu afastamento do cargo.

Apesar da decisão do governo já ter sido tomada e aprovada nesta última semana, vários partidos políticos, além do Ministério Público Federal e organizações ambientais, já estão ingressando com ações de inconstitucionalidade contra a decisão proferida por Ricardo Salles.

A Rede Sustentabilidade foi uma dessas siglas políticas que, em sua ação, alega a frontal ofensa ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, previsto no art. 225 da Constituição Federal de 1988. Além disso, os procuradores do Ministério Público Federal e o PSOL, protocolaram ações diretamente no Supremo Tribunal Federal (STF), pedindo o afastamento do atual ministro do Meio Ambiente de seu cargo, sob o argumento de que suas ações estariam potencializando a destruição dos biomas nacionais.

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O retrocesso ambiental marcado pela derrubada das resoluções que restringiam o desmatamento em manguezais e restingas será marcante nos litorais brasileiros, posto que são esses espaços territorialmente protegidos que resguardam a costa brasileira já que funcionam como barreiras que impedem o avanço das marés na área continental, causado, muitas vezes, pelo aquecimento global. Em contrapartida, o setor imobiliário destas regiões é que passará a se beneficiar com tais medidas, principalmente o ramo de hotelaria, que busca regiões praianas para instalação de resorts nesses locais de proteção ambiental.

Tanto a reestruturação do CONAMA quanto as reiteradas medidas do ministro Ricardo Salles que estão sendo adotadas com capacidade de aumentar o desmatamento e a destruição ambiental no Brasil, são decorrência de um projeto político de favorecimento a um capitalismo predatório nos biomas de conservação do meio ambiente e da consequente invisibilização de povos tradicionais que vivem nos biomas brasileiros.

Nesse viés, é importante relembrar que um dos pressupostos do capitalismo é a separação entre os homens e seus meios de produção que é dada sob a ótica de diferentes regimes de acumulação. E é a partir desta ótica de expansão de capital que tudo o que não é humano se torna coisa, inclusive a natureza, que perde sua identidade enquanto parte essencial e vital para a sobrevivência humana. Tudo o que é coisa, segundo a visão do capital, pode ser mercantilizado e colocado à disposição dos homens para a reprodução capitalista e econômica no mercado. Assim, a natureza passa a ser explorada, comandada e empoderada pelo homem quando conceituada como um objeto e, deste modo, se torna instrumento utilitário, disponível quando for conveniente à ação humana e que pode ser substituída quando servir aos interesses do mercado.

O que o atual ministro do Meio Ambiente vem proporcionando enquanto estruturação e organização da sociedade brasileira é um favorecimento a categorias específicas de sujeitos que interagem com a natureza, representados aqui pelo setor imobiliário e o agronegócio. Esses sujeitos que se favorecem deste capitalismo predatório se valem da apropriação da terra e da natureza à medida em que coisificam os elementos naturais e os mercantilizam com base no seu valor de troca, desconsiderando todo o uso, cultura, história e formas de sobrevivência de tais elementos e de outros sujeitos que também socializam com aqueles.

A autorização do desmatamento em restingas e manguezais nada mais é do que a manifestação real e concreta da apropriação da natureza e da mercantilização que será feita a partir de então. A medida de Salles se mostra temerária ao colocar em risco não só o bioma da Mata Atlântica, mas também por gerar a mercantilização desses espaços de proteção ambiental pelo setor imobiliário, retirando a possibilidade de sobrevivência e reprodução social e cultural de uma série de outros sujeitos, como ribeirinhos e carcinicultores locais. A boiada está passando, passando por cima da natureza e de sujeitos que dela vivem, dependem e protegem.

 

*Marina Rocha Moreira é professora universitária e mestre em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás.

Edição: Rogério Jordão