CORRUPÇÃO

Protestos populares denunciam golpe parlamentar da direita no Peru

Movimentos exigem investigações sobre o ex-presidente Martín Vizcarra, mas consideram impeachment "ilegítimo"

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Mobilizações defendem investigação contra ex-presidente mas enxergam afastamento em meio à crise como manobra para proteger parlamentares envolvidos com corrupção - Foto: Reprodução/Twitter

Manifestações populares têm sido registradas em diversas cidades do Peru em repúdio à decisão do Congresso da República que afastou Martín Vizcarra da presidência do país no início da semana. 

Os atos denunciam que o interesse dos parlamentares em destituir o político neste momento é blindá-los de investigações em casos de corrupção e criar mecanismos para manter-se na casa legislativa. 

A chamada vacância foi aprovada na segunda-feira (9), ao final do segundo julgamento de impeachment do qual o político foi alvo em menos de dois meses, devido a suposto recebimento de propina de construtoras em troca de vantagens em licitações públicas. As ilicitudes teriam ocorrido enquanto Vizcarra era governador de Moquegua, na região do sul do Peru. Ele nega as acusações.

Com 105 votos a favor do afastamento, 19 contra e quatro abstenções, a maioria dos congressistas considerou Vizcarra com "incapacidade moral" para continuar no cargo, com base no artigo 113 da Constituição do país.

Manuel Merino, líder do Congresso e integrante do partido de direita Ação Popular, assumiu a presidência na terça (10) e deve exercer a função até julho do próximo ano. 

Lucía Alvites, porta-voz do Movimento Novo Peru, relata que no último período houve um grande desgaste entre Executivo com o Legislativo. Ao assumir a presidência em 2018, após a renúncia de Pedro Pablo Kuczynski, Vizcarra promoveu uma série de medidas contra atos ilícitos na política.

Ela relata que dos 130 parlamentares, mais de 60 estão vinculados a casos de corrupção.

“Milhares de pessoas estiveram e estão nas ruas se mobilizando contra o que é, sem dúvida, um golpe de Estado. De nenhuma maneira nós das organizações sociais, populares, cidadãs e políticas de esquerda defendemos Martín Vizcarra. Acreditamos que ele deve enfrentar a Justiça porque há graves indícios de estar vinculado à corrupção", explica.

"Mas esse afastamento acontece em um contexto específico: Grupos e setores políticos ocuparam o Congresso da República dando prioridade para seus interesses pessoais em detrimento dos interesses dos cidadãos”, argumenta a ativista. 


Atos acontecem nas principais cidades do país / Foto: Ernesto Benevides/AFP

Ameaça à democracia

Alvites relembra que o país está a cinco meses das eleições nacionais, previstas para abril de 2021, e alerta que a aprovação da vacância nesse momento também visa estratégias e ações para a manutenção das cadeiras no Congresso.

Em seu juramento de posse, porém, Manuel Merino garantiu que haverá novas eleições presidenciais no próximo ano e prometeu “imparcialidade nos processos eleitorais”. 

Ainda assim, diante do rechaço da população aos políticos, a preocupação permanece. Segundo a Agência France-Presse (AFP), os parlamentares enfrentam 59% de desaprovação da população peruana.

“Dissemos sim às investigações contra Vizcarra mas não à vacância. Esse governo ilegítimo busca alterar o calendário eleitoral para ter melhores condições de participação do que em 2021", acrescenta Alvites.

"Os grupos que promoveram o afastamento são políticos que não têm nenhuma chance nas próximas eleições e que de forma oportunista viram o país de cabeça para baixo em meio de pandemia, de uma crise sanitária e humana terrível”, critica.

De acordo com monitoramento da Universidade Johns Hopkins, são mais de 923 mil contaminações no país e 34.943 mortes em decorrência da covid-19.

A Asociación Interétnica de Desarrollo de la Selva Peruana (Aidesep), que reúne as organizações indígenas amazônicas, também repudiou o afastamento de Vizcarra.

“Se o Estado quebra e o mercado nos estrangula, o povo não deve mais esperar soluções de cima. Atuemos com base em nossa própria força cultural, territorial e política”, defendeu em nota.

Violência

As mobilizações populares têm sido fortemente reprimidas pela polícia peruana com bombas de gás lacrimogênio e agressões por parte das forças de segurança. De acordo com a integrante do Movimento Novo Peru, tanques atiraram água contra os manifestantes. 

Mais de 30 pessoas foram detidas de maneira arbitrária e posteriormente foram advertidas por descumprir normas de distanciamento, conforme estima a organização.

A Coordenação Nacional de Direitos Humanos do Peru também denuncia que Carlos Rodríguez, um de seus advogados, foi detido ao se apresentar para defender os demais ativistas.

Mesmo com a resposta autoritária do governo, Lúcia Alvites ressalta que o processo não representa a demanda popular e que a mobilização das ruas continuará. 

“A população não está pensando em vacância e sim em como vai comer no dia seguinte, em como chegar ao fim do mês, como pagar seu aluguel. O rechaço é a essa classe política corrompida e podre. A esse sistema político que está caduco, vencido e que reflete uma submissão aos interesses de grandes empresários”. 


Foto: Ernesto Benevides/AFP

Como se posicionaram os parlamentares?

O Congresso da República é fragmentado, com dez partidos e nenhum com maioria absoluta. Nas últimas eleições, o fujimorismo perdeu espaço e a Força Popular, partido liderado pela líder oposicionista Keiko Fujimori, se enfraqueceu.

Neste cenário, a maioria dos votos a favor do afastamento de Vizcarra veio dos parlamentares dos partido Aliança para o Progresso e Ação Popular, sigla de Merino, localizados no espectro da centro-direita. Foram 20 e 18 votos a favor, respectivamente.

Todos os congressistas da sigla Frepap, Força Popular e União pelo Peru também votaram pela destituição. O único partido que votou em sua totalidade contra o afastamento foi Partido Morado.

Quem é Manuel Merino?

Tradicional adversário do fujimorismo e pouco conhecido nacionalmente, Merino se elegeu pela primeira vez para o Legislativo em 2001, com votação pouco expressiva. O mesmo aconteceu em janeiro deste ano, quando foi eleito com pouco mais de 5 mil votos.

Engenheiro agrícola e pecuário, o agora presidente da centro-direita construiu sua trajetória política atuando em defesa dos seus setores de forma discreta.


Merino é um político pouco conhecido em nível nacional e sai do anonimato ao chegar à presidência após impeachment de Vizcarra / Foto: Cesar Von Bancels/AFP

Merino ganhou algum destaque apenas em setembro deste ano, quando moveu o primeiro processo de impeachment contra Vizcarra, que não angariou o numero suficiente de votos.

À época, foi amplamente criticado por ter entrado em contato com as Forças Armadas após a primeira moção de vacância contra Vizcarra ter sido aceita. Menino, por sua vez, alegou que só queria informar o Exército sobre o trâmite.

Na sequência de seus antecessores, o político também é investigado por tráfico de influência. 

Sua irmã, Elma Merino de Lama, foi contratada para um projeto do governo sobre saneamento rural e seu irmão, Marco Antonio Merino, é proprietário de uma fornecedora de insumos agrícolas ao Ministério da Agricultura. O mandatário nega participação nas contratações.

 

Edição: Rodrigo Chagas