Racismo

Douglas Belchior sobre Carrefour: “Foi um protesto desproporcional. Eles nos matam”

Ao Brasil de Fato, liderança do movimento negro no país defendeu subir o tom em protestos: "Acabou a paciência"

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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"O que se viu no mercado dos playboys da Pamplona foi legítima defesa", explica Douglas Belchior - Foto: Pedro Stropassolas

Uma das lideranças do movimento negro no Brasil, Douglas Belchior está incomodado. Quando chegou à manifestação da última sexta-feira (20), na avenida Paulista, em São Paulo, que deveria ser um ato pelo Dia da Consciência Negra e se tornou mais um protesto em repúdio à morte de um homem negro, o militante disparou. “Até quando? Está insuportável.”

Na noite anterior, João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, foi espancado até a morte por dois seguranças privados e terceirizados do Carrefour, em uma unidade da multinacional francesa em Porto Alegre (RS). Os dois agentes são funcionários do Grupo Vector e trabalhavam irregularmente, de acordo com a Polícia Federal (PF). Ambos foram presos.

No dia seguinte, por volta de 18h, o movimento negro marchou da avenida Paulista até a unidade do Carrefour na rua Pamplona, nos Jardins, zona nobre de São Paulo (SP). Lá, um grupo se destacou e entrou no supermercado, destruindo e incendiando a unidade. Ninguém ficou ferido durante a ação e nenhum militante foi preso.

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Douglas Belchior, fundador da Uneafro e da Coalizão Negra por Direitos, explica que a ação não estava planejada.

“O que houve durante a marcha e a ação no Carrefour, a ocupação e a ação direta, não foi articulada ou combinada. Foi ação espontânea de parte dos que estavam na marcha, pessoas negras e brancas revoltadas, indignadas, e com toda razão", enfatiza.

Para Belchior, esse deve ser o novo tom adotado pelo movimento negro daqui em diante. “Protestamos em legítima defesa de nossas vidas. E é um protesto absolutamente desproporcional. Eles nos matam. Nós escrevemos notas de repúdio, organizamos caminhadas, fazemos protestos pacíficos, denunciamos na ONU [Organização das Nações Unidas]. Até quando deve durar nossa paciência?”, questiona o militante.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Douglas, a ação de ontem foi articulada pelo movimento negro?

Douglas Belchior:
A Marcha da Consciência Negra é uma ação organizada por entidades do movimento negro já há 17 anos. Isso sim foi articulado. O que houve depois, durante a marcha e a ação no Carrefour, a ocupação e a ação direta, não foi articulada ou combinada. Foi ação espontânea de parte dos que estavam na marcha, pessoas negras e brancas revoltadas, indignadas, e com toda razão.

Douglas, você está nas ruas têm 20 anos. Inúmeros protestos e reuniões com representantes do poder público. Você cansou?

Não se trata de eu ter cansado. Não sou um militante avulso e não atuo a partir da minha vontade individual. Sou organizado em um movimento. Me submeto à construções e decisões coletivas. O movimento do qual sou parte é uma das organizações responsáveis pela marcha e não houve qualquer orientação dessas instâncias no sentido de que se deveria ocupar o supermercado.

Eu, particularmente, sou a favor do diálogo. Acredito no poder das ideias e na capacidade que os seres humanos têm de resolver problemas com inteligência e sabedoria. Mas também acho que tudo tem limite e que a população negra brasileira, por conta da história de violência permanente que sofre, tem muitas razões para perder a paciência. Acabou a paciência. Albert Camus, filósofo franco argelino dizia que “a violência não é patrimônio dos exploradores. Os explorados também podem empregá-la”. E eu concordo com ele.

Por quê você acha que o ataque ao mercado começou?

O Carrefour atacou primeiro. João Alberto foi espancado até a morte na frente da esposa. Pediu socorro e não foi atendido. O que se viu no mercado dos playboys da Pamplona foi legítima defesa, assim como em Recife. O que sê vê nos protestos que estão acontecendo em todo país é legítima defesa.

Até quando deve durar nossa paciência? Até matarem o último negro?

Protestamos em legítima defesa de nossas vidas. E é um protesto absolutamente desproporcional. Eles nos matam. Nós escrevemos notas de repúdio, organizamos caminhadas, fazemos protestos pacíficos, denunciamos na ONU. Até quando deve durar nossa paciência? Até matarem o último negro?

Sempre organizamos ações e protestos em que ocupamos shoppings ou ruas com muitas lojas de departamento, quase sempre sem nenhum incidente. Eu estava no chão e acompanhei a marcha toda, do Masp [Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand] até o Carrefour da Pamplona, sempre à frente da caminhada.

Um mercado é pouco. Há motivos para pôr fogo no mundo!

Foi uma ação espontânea. A expressão “à flor da pele", da nossa pele preta, cabe como nunca. Havia um clima de chega, de basta, de não aguento mais. Quando se percebeu, as pessoas já estavam dentro do supermercado. E lá, agiram em legítima defesa. Um mercado é pouco. Há motivos para pôr fogo no mundo!

O tom de reivindicação do movimento negro tende a se manter elevado daqui para frente?

O tom da reivindicação do movimento negro vem aumentando nos últimos anos. O movimento pautou a sociedade no último período. Em especial neste ano de 2020 no Brasil, o debate politico ficou em torno da pandemia do corona vírus e do racismo.

O que são vidraças e prateleiras diante do sofrimento de uma família, filhos, esposa, mãe, que perde o pai, o marido o filho, por conta da violência racial? 

A pressão imposta pelo movimento negro e por parte da sociedade que nos apoia, nos levou a avanços institucionais importantes. O TSE [Tribunal Superior Eleitoral] e o STF [Supremo Tribunal Federal] terem acatado a reivindicação dos movimentos e obrigado os partidos a distribuir recursos para candidaturas negras - por mais pouco eficaz que tenha sido; a eleição de vereadoras e vereadores negras e negros Brasil afora; e agora o fato de altos executivos virem se desculpar em público pelo racismo de suas empresas, isso tudo é fruto da radicalização do movimento negro. Eu espero que seja daqui para mais, nenhum passo atrás.

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Dessa vez, a oposição aos protestos violentos foi bem menor do que em outros momentos. Ainda assim, como você leu a crítica dos que classificam como vandalismo a ação de sexta-feira?

Temos uma sociedade e especialmente uma imprensa que criminaliza lutas sociais, lideranças e ativistas. A cobertura jornalística brasileira olha para manifestações contra o racismo nos EUA e os chama de protestos. Olham para as pessoas e os chamam de manifestantes.

Aqui, as manifestações contra o racismo são tratadas como baderna, depredação e as pessoas como vândalos e criminosos. Mas o que é vandalismo num país que mata um jovem negro a cada 23 minutos? Porque o patrimônio vale mais do que uma vida humana?

Esse país é um barril de pólvora. E o povo negro é a faísca, é o fósforo. É bom que saibam disso

O que são vidraças e prateleiras diante do sofrimento de uma família, filhos, esposa, mãe, que perde o pai, o marido o filho, por conta da violência racial? Estamos num estágio tão avançado do genocídio negro que, talvez, parte das pessoas brancas estejam começando a perceber. Quero acreditar nisso. Esse país é um barril de pólvora. E o povo negro é a faísca, é o fósforo. É bom que saibam disso.

A esquerda negra avançou em representatividade no legislativo em todo o país. Como você acha que esse recado de sexta-feira vai ecoar nos gabinetes dos parlamentares eleitos?

Pessoas negras, sobretudo aquelas alinhadas às pautas e agendas dos movimentos negros, ocupam esse lugar para fazer a diferença. Para dar voz às demandas históricas que carregamos nas costas, para radicalizar o exercício parlamentar e executivo em favor do povo negro.

Estamos numa virada de página da história. Acredito que nossos parlamentares em todo país tem essa percepção e colocarão seus mandatos a serviço desta tarefa histórica, que é fazer avançar as lutas do povo negro nos espaços institucionais e, ao mesmo tempo, fortalecer os movimentos em sua tarefa de pressionar a sociedade nas ruas, custe quantas vidraças e prateleiras custar.

Edição: Leandro Melito