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Presos políticos após golpe na Bolívia relatam violências, arbitrariedades e traumas

Durante o governo interino de Áñez foram realizadas mais de mil prisões com fins políticos; vítimas lutam por reparação

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Manifestantes são detidos pela Unidad Táctica de Operaciones Policiales (UTOP) durante protestos contra o recém-instalado governo interino de Añez, em La Paz, em 13 de novembro de 2019 - AIZAR RALDES / AFP

"Infelizmente, os presos políticos são sempre os mais esquecidos em todos os conflitos. Geralmente, liberam primeiro os casos mais conhecidos, e aqueles que não têm apoio, nem organizações, são deixados para trás. Eles são os últimos a serem soltos", diz ao Brasil de Fato o ativista Daniel Soliz, membro do Comitê de Apoio aos Presos Políticos de Cochabamba, na Bolívia.

Há pouco mais de um mês após o país andino ter recuperado sua democracia, os efeitos deixados pelo governo interino de Jeanine Añez ainda permanecem na memória de muitos bolivianos. Um deles diz respeito aos presos políticos que continuam enfrentando um processo turbulento pela anulação das acusações, assim como pela busca de justiça e reparação.

"Os presos políticos vão desde ex-autoridades do governo de Evo Morales, ativistas que foram presos por usarem as redes sociais, até ativistas dos setores populares, ou seja, pessoas que saíram só para se manifestar mas não pertenciam a nenhuma organização", detalha Soliz, que acompanhou por um ano a situação dos presos políticos em Cochabamba, uma região onde foram detidas pelo menos 905 pessoas após o conflito pós-eleitoral e a renúncia forçada de Morales em novembro de 2019.

O país sul-americano viveu um de seus episódios mais dramáticos quando uma crise política e social, materializada em vários protestos no país, se intensificou após os resultados eleitorais de 2019, sobre os quais a Organização dos Estados Americanos (OEA) havia anunciado uma "suposta fraude".

Os protestos nas principais cidades, convocados pelos comitês cívicos, haviam mostrado sua expressão mais racista, com ataques dirigidos principalmente à população indígena. Uma violência cujo auge foi atear fogo na wiphala [bandeira que representa os povos originários], provocando o levante destes setores, assim como de diferentes organizações sociais.

O que se seguiu, além dos massacres em Senkata e Sacaba que tiveram uma repercussão internacional e marcaram a violência estatal vivida durante o governo de Añez, são também centenas de detenções, torturas e acusações infundadas de crimes como terrorismo, sedição e outros, contra indivíduos que foram considerados dissidentes.


Mulheres indígenas bolivianas se protegem do gás lacrimogêneo durante um protesto contra o governo interino em La Paz, em 15 de novembro de 2019. / AIZAR RALDES / AFP

"Nós identificamos que há, por um lado, uma perseguição político-judicial. E, por outro, a violação do direito à liberdade de movimento. Há 1534 detenções que ocorreram em diferentes momentos durante o conflito entre 21 de outubro e 23 de novembro de 2019", diz a Defensora do Povo da Bolívia, Nadia Cruz, ao Brasil de Fato.

No relatório "Crise de Estado, Violação dos Direitos Humanos na Bolívia, outubro-dezembro de 2019", aponta Cruz, se distinguem três etapas nas quais se identificou um uso excessivo da força por parte da polícia e das forças armadas bolivianas durante o governo interino de Añéz.

De acordo com o relatório, especialmente na terceira etapa [de 11 a 23 de novembro], "as detenções ilegais e arbitrárias foram realizadas, prendendo indiscriminadamente pessoas que não estavam cometendo nenhum ato ilícito, com base em preconceitos como o local de residência ou mesmo a aparência", resultando em violações de direitos humanos e torturas.

Além disso, na terceira etapa, de acordo com Cruz, foram registradas a maior parte das detenções. Há pelo menos 1.061 detenções registradas em todo o país.

"Nestes 1.061 casos, há padrões que indicam que a causa da detenção foi uma questão política. [Portanto] aqui poderíamos considerar que houve realmente uma perseguição político-judicial sim, porque evidentemente existe uma espécie de abertura de processos judiciais para a prisão preventiva", assegura a Defensora do Povo.

Nesse cenário, muitos bolivianos foram presos injustamente e tiveram que enfrentar processos demorados, que se prolongaram ao longo de um ano, enquanto outros foram vigiados, perseguidos e intimidados pelas forças policiais, bem como por grupos paramilitares civis. Também houve uma perseguição a jornalistas e defensores dos direitos humanos, criando um contexto de medo que atingiu sobretudo os estratos populares do país.


Uma mulher é detida pela polícia de choque durante manifestações após a demissão do ex-presidente Evo Morales em La Paz, em 13 de novembro de 2019 / AIZAR RALDES / AFP

O caso do policial boliviano Ismael Marquina

"Eu era policial na cidade de Cochabamba, mas morava em Chimoré, no Trópico de Cochabamba, o pilar mais forte do MAS [Movimento ao Socialismo]. Fora de [minhas funções como] policial, tinha um cargo como presidente da Fejuve distrito 1 [dirigente de bairro], por essa razão [como autoridade] algumas vezes recebi o presidente irmão em Chimoré. Então, como eles [seus camaradas ] sabiam que tinha uma afinidade ou apoiava essa convicção [do MAS], me procuraram", conta ao Brasil de Fato Ismael Marquina, policial boliviano que decidiu não participar do motim policial que ocorreu em Cochabamba em 8 de novembro de 2019, dias antes da renúncia de Morales.

Após um ano de prisão preventiva, Marquina, que foi acusado sem nenhuma prova, segundo ele, por "tráfico de armas, terrorismo, assim como posse e comercialização de agentes químicos", chega a afirmar que sua detenção, arbitrária, foi uma vingança [por parte de seus colegas] por não ter se amotinado. Ele foi liberado no dia 20 de novembro deste ano, embora seu julgamento ainda esteja em curso.

"Aqui [em Cochabamba], a polícia saiu para se reunir com a Resistência Juvenil Cochala [grupo paramilitar] e reprimir o povo, isso não é um motim, é um golpe de Estado. Porque o motim consiste em que nenhum policial deixe sua unidade. É por isso que decidi me retirar", diz Marquina.

"Pessoalmente, foi um trauma muito difícil para mim. São 13 anos de serviço. E ver como meus camaradas zombaram de mim quando fui preso. Gritaram para mim: 'traidor!'. Jogaram água com urina em mim. Me disseram: 'Seu masista [apoiador do MAS] de merda, vamos te matar!'. Ouvir essas palavras foi muito difícil", relembra o policial boliviano, que foi enviado para a prisão de segurança máxima El Abra, em Cochabamba.

Na avaliação de Soliz, a história do policial é um "caso emblemático" que, de certa forma, abre uma brecha de esperança em relação à confiança que a polícia perdeu no país andino, principalmente nos setores indígenas e populares, já que "mostra que não foi toda a polícia que se amotinou, foi a maioria, mas não toda".

"Se consigo provar minha inocência, iniciarei as ações judiciais correspondentes perante as organizações internacionais para o ressarcimento dos danos, porque eles me causaram danos, prejuízos e violaram meus direitos", diz Marquina.


O policial boliviano, Ismael Marquina / Perfil pessoal do Facebook

Perseguição de integrantes e apoiadores do MAS

Um relatório da organização internacional Human Rights Watch (HRW) que analisou as violações de direitos humanos cometidas na Bolívia e investigou as acusações contra os ex-membros e apoiadores do governo de Morales, conclui que foram encontrados indícios de "acusações infundadas, violações do devido processo, restrição da liberdade de expressão e uso excessivo e arbitrário da prisão preventiva" durante o governo da autoproclamada presidenta.

A organização, que também teve acesso ao arquivo completo da investigação do Ministério Público sobre o ex-presidente, acusado de terrorismo e financiamento do terrorismo, observou que muitas das denúncias careciam de provas que as autoridades do governo interino não poderiam apresentar.

Um dos casos mais simbólicos foi o de Patrícia Hermosa, que foi representante legal de Morales e ex-chefe de gabinete no seu governo. O seu caso chamou a atenção devido a sua detenção, com base no fato de ter mantido contacto por telefone com Morales após a sua demissão, mas também por causa do seu encarceramento apesar de sua gravidez.

De acordo com a HRW, as supostas ligações – que nunca foram provadas – a tornaram uma “colaboradora” nos crimes atribuídos a Morales. Numa violação completa da lei boliviana, a ONG internacional afirma que Hermosa foi presa e mantida em prisão preventiva enquanto estava grávida. Sem receber nenhuma atenção médica, sangrou durante dez dias e perdeu a gravidez.

"Tive um aborto na prisão, é um pouco delicado para mim esse assunto", contou recentemente Hermosa entre lágrimas para o meio boliviano La Razón, onde comentou pela primeira vez o ocorrido.

"A violência não era dirigida a mim, já que ninguém conhecia Patrícia Hermosa. A violência era contra Evo Morales Ayma; o ódio era contra o ex-presidente, um presidente indígena", afirmou.

Outro relatório apresentado pela Clínica Internacional de Direitos Humanos de Harvard e pela Rede Universitária de Direitos Humanos intitulado 'Eles atiraram em nós como animais': novembro negro e o governo interino da Bolívia, revelou que uma das formas mais comuns de perseguição política levada a cabo pelo governo Áñez foi não apenas a prisão e acusação de membros ou simpatizantes do MAS, mas também de seus familiares e funcionários.

De acordo com dados apresentados pela Clínica no início de 2020, mais de 100 políticos do MAS haviam sido presos ou estavam enfrentando acusações, e quase 600 ex-funcionários e familiares estavam sob investigação.

Além disso, "não era apenas uma questão de perseguição político-judicial a um partido, mas o governo interino assimilou as nações e povos indígenas originários camponeses e organizações [sociais] a um partido político, e só porque eles achavam que eram de um partido [MAS], começou a perseguição político-judicial", acrescenta Cruz.


Patricia Arce, prefeita do município de Vinto pelo partido do MAS, fala à imprensa enquanto é humilhada e agredida por uma multidão de opositores que lhe cortaram o cabelo em Cochabamba, em 6 de novembro de 2019 / STR / AFP

E o sistema de justiça?

"O que podemos dizer, como Defensoria, é que entre as instituições ou instâncias que geram a maior violação dos direitos humanos na Bolívia está o sistema de justiça", diz Cruz, referindo-se aos principais problemas apresentados no sistema judicial do país e às condições que permitem seu uso indevido para fins políticos.

"É um sistema que demonstrou mais claramente, no último ano, que se move para os interesses ou o poder que está vigente [...]  Não é que a independência esteja nas entrelinhas, mas que simplesmente não há independência", afirma.

O sistema de justiça na Bolívia é "bastante corrupto", diz Soliz, ressaltando que muitos dos presos políticos tiveram que pagar aos juízes mais de 5 mil dólares para serem libertados, enquanto aqueles que se recusaram a pagar acabaram ficando mais tempo.

"É um sistema que te leva a subornar o juiz, a dar a soma [de dinheiro] para obter justiça". Eu fiz o acompanhamento de dois juízes que estavam conduzindo as audiências dos presos políticos. E pude constatar como eles [os juízes] criaram um modus operandi para que os detentos chegassem ao ponto do desespero e soltassem algum dinheiro para serem libertados", conta o ativista boliviano.

Na Bolívia, apesar de os juízes da jurisdição nacional serem eleitos por voto popular, eles são pré-selecionados por mandato constitucional pela Assembléia Legislativa Plurinacional (maioria do MAS nos últimos anos).

Para alguns, esta modalidade teria permitido que, nas últimas eleições de 2017, os critérios para escolher os candidatos tenham sido políticos, gerando desconforto em alguns setores. 

Sobre isso, o atual ministro de Justiça, Iván Lima, expressou recentemente a necessidade de definir uma reforma judicial, que poderia implicar também mudanças na Constituição a fim de alcançar a independência dos poderes.


A tropa de choque prende simpatizantes do ex-presidente Evo Morales no que foi chamado o massacre de Sacaba, em Cochabamba, em 15 de novembro de 2019 / STR / AFP

Justiça e reparação para as vítimas

"É responsabilidade do Estado esclarecer todos estes fatos". A tortura é um crime contra a humanidade, e afetar a liberdade individual é uma violação dos direitos humanos", aponta Cruz.

Embora a grande maioria dos presos políticos na Bolívia tenha conseguido sua libertação, alguns ainda mantêm medidas de substituição, tais como prisão domiciliar ou outras restrições. Ou seja, eles continuam sendo afetados, já que "não podem ter uma vida com relativa normalidade porque têm que carregar nas costas um processo judicial" que parece longe de acabar.

"Os presos políticos estavam na linha de frente do conflito [...] eles são os que colocam o peito à prova de bala, os que colocam sua liberdade, seus corpos para resistir, mas eles são os últimos a serem reconhecidos", ressalta Soliz.

Na avaliação do ativista, o último ano foi um ano de desgaste, no qual houve perdas, não só econômicas, mas também afetivas, porque muitos perderam companheiros ou companheiras, suas famílias que os abandonaram. Portanto, "conseguir a liberdade [sair da prisão] acaba sendo uma grande notícia" para as vítimas, mesmo que seus processos persistam.

"Foi muito difícil para os presos políticos porque, além de todos esses abusos que o governo interino cometeu, temos vivido a pandemia na prisão, deixando nossas famílias desamparadas. Tem sido muito difícil. Por exemplo, algumas pessoas recebiam ligações de suas esposas e choravam porque suas famílias estavam passando dificuldades. Então foi difícil", relata o policial boliviano.

Por outro lado, na opinião de Soliz, a experiência vivida pelas vítimas da violência exercida pelo Estado, além de todos os danos materiais e o estigma deixado na sociedade por ter estado na prisão, também tem deixado danos psicológicos como resultado do estresse pós-traumático.

"Um dos presos me ligou faz um mês e me disse: 'Queria te contar que ainda estou tendo pesadelos'. Ou seja, em seus sonhos ele ainda sente os policiais pisando em sua cabeça na van. A polícia pisou em sua cabeça até sangrar, provocando-lhe uma grande ferida.  Ele diz: 'Alguns dias sonho que ainda estou na prisão, mas acordo e estou na minha cama. Tudo isso está me causando problemas com minha companheira’", conta Soliz.

"Então, isto é parte do estresse pós-traumático que vários deles ainda têm, quem vai pagar por todos estes danos? questiona o ativista boliviano, esperando que se faça justiça.

Edição: Luiza Mançano