Coluna

2020, um ano para não deixar saudades

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Uma outra prova de que estamos longe de qualquer tipo de “novo normal” é como a Educação vai sair desta pandemia - Elineudo Meira / Fotos Públicas
As clínicas particulares já escutam o tilintar das máquinas registradoras

Chegamos ao final de 2020, mas não da pandemia e muito menos do governo Bolsonaro. Para o vírus, pelo menos, já há vacina. Já para o aparelhamento do Estado, a irracionalidade na saúde e a destruição ambiental não se encontra ainda uma solução à vista.

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1. O plano é não ter plano. Constrangido pelo anúncio do plano de vacinação do seu concorrente em 2022, João Doria, e por determinação do STF, o governo apresentou seu Plano Nacional de Vacinação, na última quarta (16), num evento em que a única pessoa sensata era o Zé Gotinha, que não dançou aglomerado, não apertou a mão de ninguém, e usou máscara. Teoricamente, o plano prevê 16 meses de vacinação no Brasil, divididos entre grupos prioritários e com responsabilidade dos estados pela vacinação. E isso é tudo. Quando começa? Não se sabe. Qual vacina será usada? “Toda as vacinas produzidas no Brasil”, diz Pazuello. Ou seja, além da AstraZeneca/Oxford, por intermédio da Fiocruz, o plano incluiu a Coronavac do eixo do mal Doria-China. Mas não é bem assim.

O Brasil vai entrar na fila internacional por milhões de doses da Pfizer/Biontech e da Janssen, empresas que ainda não têm acordos com o governo e cuja prioridade é destinar 96% das doses aos países ricos. Também não há nada firmado com o Instituto Butantan - que já cogita a possibilidade de fazer uma grana exportando a vacina - , nem com a indiana Bharat Biotech, a norte-americana Moderna ou Instituto Gamaleya da Rússia. Em todos estes casos, não há um número de doses definido. Para o ministro da Saúde, a logística é simples. É verdade, o Brasil tem meio século de experiência em campanhas de vacinação e o SUS está estruturado para isso. Só que o mercado de insumos médicos corre risco de desabastecimento e apesar do ministério prever a compra de 300 milhões de seringas e agulhas, não diz nem quando e nem como comprará o material.

Para aumentar o temor de que o plano seja só um Powerpoint para o STF ver, no final de semana descobriu-se que os pesquisadores envolvidos na sua elaboração não foram ouvidos sobre esta versão final. Aliás, literalmente não foram ouvidos: na primeira reunião do grupo, o general falastrão desligou os microfones dos pesquisadores e transformou a reunião em um monólogo. E - surpresa nenhuma - no vácuo da ausência de políticas para a pandemia, as clínicas particulares já escutam o tilintar das máquinas registradoras.

2. Deus acima de tudo e cada um por si. Temorosos que o plano falhe ou que a liberação das vacinas fique propositalmente parada na Anvisa, o governador do Maranhão Flávio Dino (PCdoB) e a OAB conseguiram autorização do STF para que os estados possam importar diretamente vacinas que tenham aprovação internacional sem autorização do órgão brasileiro. Pode ser um bote de emergência, mas cabe se perguntar para quantos brasileiros ele estará disponível e qual o risco de se tornar um vale-tudo que só beneficie os estados mais ricos. O STF também decidiu, por unanimidade, nesta quinta (17), que o Estado pode obrigar a população a se vacinar, contanto que não se use a força.

Durante e depois do anúncio do plano, Bolsonaro reagiu de forma infantil, como faz sempre que é contrariado. Na terça, um dia antes, Jairzinho, o birrento proclamou: "não vou tomar vacina e ponto final. Minha vida está em risco? O problema é meu". Apesar de jamais admitir ser responsabilizado por nada, certamente a sua postura inspira os 22% de entrevistados do Datafolha que declararam que não irão tomar a vacina. Em agosto, eram 9%. Não satisfeito e numa prova de que ter um plano contraria sua vontade, Bolsonaro passou a sabotar a própria vacinação, como se o vacinado e não aquele que não se vacina colocasse a sociedade em risco. Ele propôs a assinatura de um termo de responsabilidade para quem tomar a vacina, uma ideia que não deve prosperar, e a criação de uma campanha de publicidade que diga que a vacinação pode ser perigosa. Como sempre, o que não faz sentido na superfície da sociedade, ecoa bastante no subsolo. No Ceará, o Ministério Público quer que um Pastor seja responsabilizado civil e criminalmente por pregar que a vacina altera o DNA, causa câncer e carrega HIV.

O terraplanismo e a negação da razão não precisam vir disfarçados de forma caricata: o El País mostra como a classe média acha que já fez demais pelo isolamento e está impulsionando o crescimento de casos com festas e confraternizações. E no nordeste, festas para a alta sociedade, com ingressos acima de R$ 3 mil, pretendem reunir de 2 mil a 3.500 pessoas no Réveillon.

3. Reprovados. Uma outra prova de que estamos longe de qualquer tipo de “novo normal” é como a Educação vai sair desta pandemia. Vale lembrar que como a busca por uma vacina é recente, ainda não há dados suficientes sobre a segurança e eficácia da vacina em menores de 15 anos. Por inúmeros motivos, entre eles, a necessidade de diminuir as internações, os jovens estão no fim da fila do plano de vacinação. Até aí, faz sentido. Os professores e demais trabalhadores da educação, porém, também estão no final. No plano brasileiro, os educadores só serão vacinados na quarta fase. Ou seja, por muito tempo as escolas em funcionamento continuariam sendo um centro irradiador do vírus.

É possível dizer que, para a educação, o plano continua sendo o de “imunidade de rebanho”. Inclusive em São Paulo, onde João Doria se apresenta como o campeão da ciência e da vacinação, mas garante que as escolas vão continuar funcionando mesmo na pior fase da epidemia. As notícias só não são piores para a educação porque, depois do constrangimento, da pressão pública e da votação do Senado, a Câmara voltou atrás e aprovou a regulamentação do Fundeb sem destinar parte dos recursos ao sistema S ou a escolas filantrópicas e comunitárias.

4. Estado profundo. Não há exatamente segredo e tampouco discrição da parte da família Bolsonaro em montar um Estado paralelo a serviço dos seus interesses. Isto, seja por saudades da ditadura - com inventário de jornalistas ou com ingerência sobre a Polícia Federal, cujo inquérito foi prorrogado por mais 90 dias - seja apenas para proteger os negócios escusos de 01, 02, Queiroz e companhia. Há uma semana, o jornalista Guilherme Amado, na Época, comprovou que a ABIN produziu relatórios para orientar a defesa de Flávio Bolsonaro no caso das “rachadinhas”, por ordem do diretor Alexandre Ramagem, atendendo o pedido da advogada de Flávio, Luciana Pires.

Os encontros entre o diretor e a advogada foram no próprio Palácio do Planalto. Das cinco sugestões da agência estatal, duas foram seguidas integralmente pela defesa e uma parcialmente. Apesar da “coincidência” entre os relatórios e o comportamento da defesa, Ramagem reconhece a reunião, mas nega os relatórios. Vale sempre lembrar da famosa reunião ministerial de abril, que se transformou num manifesto político de intenções do governo, em que Bolsonaro reclamou que precisava de um serviço de espionagem paralelo, porque a PF não respondia aos seus interesses. A máquina parece ter sido azeitada. A Agência Pública identificou 15 agentes da ABIN deslocados para outros ministérios para monitorar movimentos sociais, ONGs, opositores das políticas ambiental, indigenista, direitos humanos e ainda divergentes sobre a Covid-19 e os conflitos entre o governo Bolsonaro com governos estaduais.

5. Tá Ok. Ao que parece uma parte da população não se importa com o Estado paralelo a serviço da família Bolsonaro. Na terça-feira, a pesquisa da XP/Ipespe indicou uma tendência de melhora na avaliação do governo e onde Bolsonaro aparece melhor colocado em prováveis cenários para as eleições de 2022. Mais grave, a pesquisa Datafolha apontou que 52% dos entrevistados não o consideram culpado pelas mortes na pandemia. Porém, como alerta Helena Chagas, os dados da pesquisa mostram também que a insatisfação com o governo é muito grande. Embora o apoio dos setores mais pobres seja maior e isso pode estar ligado aos efeitos do auxílio emergencial que termina junto com o ano. Aliás, 72% dos entrevistados na pesquisa da XP/Ipespe defendem a prorrogação do auxílio emergencial. Neste caso, as perspectivas de Bolsonaro para o ano que vem não são as melhores.

De olho na popularidade e já contando com os efeitos do fim do auxílio, o governo estuda algumas medidas paliativas como a antecipação do 13º para aposentados e pensionistas do INSS, o pagamento do abono salarial e uma nova rodada do programa de saque emergencial do FGTS. Talvez o Congresso salve o governo novamente: o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) apresentou projeto para estender o pagamento do auxílio emergencial até o dia 31 de março, prorrogando também o estado de calamidade pública e a autorização para superar o teto de gastos. Por outro lado, como lembra Thomas Traumann, apesar do desmonte há de se reconhecer que Bolsonaro entrega exatamente o que prometeu: o fim do “estado petista” identificado com questões ambientais, direitos humanos, sindicatos, diplomacia multilateral, manifestações de rua, dentre outras coisas que foram sintetizadas no termo “tudo isso daí”. A leniência do judiciário com suas atrocidades, como por exemplo na lentidão do TSE em julgar os casos de disparos de mensagem há dois anos, talvez faça com que Bolsonaro até se orgulhe de ser o primeiro brasileiro denunciado no Tribunal Penal Internacional de Haia, acusado de genocídio dos povos indígenas.

6. Bolo abatumado. O ano de 2020 encerra uma década marcada por crises e que, segundo estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas, teve o pior desempenho do PIB per capital do último século no Brasil. Ou seja, o bolo está diminuindo ao invés de crescer. Mas, para além do PIB, a distribuição da riqueza é cada vez mais desigual e uma das causas é a destruição do mercado de trabalho. Estudo do Dieese mostra que a remuneração mensal média dos contratos de trabalho intermitentes, modalidade instituída pela reforma trabalhista de Temer, foi de R$637 mensais em 2019. Por isso, não deveria causar surpresa que o Brasil caiu no ranking global do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), passando da 79ª para a 84ª posição, ficando atrás dos nossos vizinhos Chile, Argentina, Uruguai, Peru e Colômbia. E nada disso é culpa da pandemia pois os dados divulgados são de 2019. O futuro imediato também não é promissor. A perspectiva é que o ano termine com alta na inflação e o governo já disse que em 2021 não vai ter aumento de salário mínimo. A prova de que a economia brasileira não inspira confiança vem do próprio mercado financeiro: este foi o ano com o menor aporte de investimentos estrangeiros no país dos últimos 11 anos.

7. A toque de caixa. Apesar da ineficácia comprovada para debelar a crise, o centro da política econômica deve seguir sendo a austeridade. Em entrevista ao Financial Times, Paulo Guedes comentou de suas expectativas com as “grandes reformas”. Mas a verdade é que até mesmo o mercado financeiro vê um ministro sem apoio e prevê que as tais reformas (privatizações, reforma administrativa e tributária) não ocorram nem mesmo em 2021. Por enquanto, a ANAC fecha o ano anunciando a privatização de 22 aeroportos em abril próximo. Mesmo assim, medidas como privatizações e redução de barreiras tarifárias a produtos importados devem encontrar resistência no Congresso, mesmo depois da troca de comando da Câmara e do Senado. No lugar delas, devem prevalecer os ajustes a conta-gotas para o corte de gastos e demandas setoriais do grande capital. Agora, passada as pressões eleitorais, o Congresso trabalha a toque de caixa. A Câmara, aprovou o PLP 101/2020, inspirado no Plano Mansueto, que renegocia as dívidas de estados e municípios. O projeto ampliou os condicionantes já existentes para aderir ao programa de recuperação fiscal, como a possibilidade de venda de estatais, a restrição a concursos públicos e o limite de despesas primárias ao índice inflacionário (IPCA). A rapidez da votação foi alvo de críticas da oposição.

8. Infernal. O Senado atendeu aos pedidos do senador Major Olímpio de mandar o chanceler Ernesto Araújo “para o inferno” e rejeitou a indicação do embaixador Fabio Mendes Marzano para o cargo de delegado permanente do Brasil nas Nações Unidas em Genebra. A rejeição dos senadores - apenas 9 votaram a favor da indicação - indica a má articulação do Itamaraty no Senado, mas também põe mais munição nas mãos dos que, dentro do próprio governo, querem a demissão de Ernesto Araújo - como o agronegócio e os militares. E para piorar o inferno astral do discípulo de Olavo de Carvalho, em outra prova da falta de articulação com o Congresso, a Câmara deixou de votar uma suplementação orçamentária para que o governo pague suas dívidas com organismos multilaterais. Com o calote brasileiro, o país pode perder o direito a voto na ONU a partir de 1.º de janeiro. Mesmo assim, continua sendo a ala olavista quem dá as cartas na política internacional brasileira. Esta semana, soube-se que a embaixada brasileira em Washington orientou o Planalto a não reconhecer a eleição de Biden, acreditando na fanfarronice de Trump de recontagem de votos e disputas judiciais. Segue também a má vontade do governo com a China, ainda que a própria Anatel prefira a participação da Huawei no leilão de 5G e de que o governo ignore a capacidade de retaliação dos chineses quando perdem a paciência.

9. E lá se foi a boiada. Outro marco das relações internacionais brasileiras tem sido a desastrosa política ambiental. Além da incógnita de como Joe Biden vai tratar o país no próximo ano, o certo é que a política ambiental brasileira é a principal responsável pela paralisação do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia, segundo o representante do bloco europeu no Brasil, o embaixador Ignacio Ybáñez. E este cenário não deve mudar. A aprovação pelo Senado do Projeto de Lei (PL) 2.963/2019, que facilita o acesso de estrangeiros a terras brasileiras, autoriza a compra, por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, de até 25% da área de municípios, uma área equivalente a duas vezes a região Sudeste do Brasil. Área que provavelmente se somará às estatísticas de desmatamento para a expansão da pecuária e monocultura de grãos. O projeto ainda volta para a aprovação na Câmara.

A grilagem também deve ser beneficiada pela portaria do INCRA que prevê a terceirização da fiscalização e regularização fundiária para municípios. Certamente, os municípios estarão mais suscetíveis às pressões locais de grileiros, muitos deles imbricados com o poder político. Somente em terras griladas - e que agora poderão ser legalizadas -  a área desmatada aumentou em 50% nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro em relação à média dos cinco anos anteriores. A área destruída em terras registradas ilegalmente corresponde a 20% de toda a devastação na Amazônia. Mas não é apenas o agronegócio que ganha com a política ambiental de Bolsonaro. O tráfico de drogas internacional também está aproveitando o estímulo ao garimpo ilegal na região amazônica, enquanto a Agência Nacional de Mineração, esvaziada e sem recursos, sequer consegue estimar quantas barragens de mineradoras existem no país que viveu duas tragédias recentes pelo rompimento destas estruturas em Mariana e Brumadinho.

10. Ponto Final: nossas recomendações de leitura

Os Melhores Livros de 2020. A revista Quatro Cinco Um publica a lista dos melhores livros do ano. Presente na lista de 2019, Torto Arado venceu o Prêmio Jabuti deste ano com uma impressionante narrativa sobre questão agrária, gênero e espiritualidade no sertão.

Heróis da classe trabalhadora. Numa época em que “Imagine” é tocada infinitamente, o marxista Tariq Ali lembra porque o octogenário John Lennon é um herói da classe trabalhadora.

Ubirany, o ritmista que revolucionou o samba nos anos 1970 sem fazer alarde. 2020 e a pandemia nos levaram importantes artistas brasileiros, dentre eles Ubirany, sambista do Fundo de Quintal, criador do repique de mão e renovador do samba brasileiro.

Amarelo. A história do samba e do movimento negro brasileiro costuram a construção do álbum de Emicida neste documentário na Netflix. Um documento sobre identidade, luta racial e direito à cidade, além de belas homenagens a Lélia Ginzales e Wilson das Neves. Vê-lo, ao final deste ano tenebroso, é uma injeção de energia e esperança, segundo o Outras Palavras.

Obrigado por nos ter acompanhado neste turbulento ano de 2020. O Ponto fará um pequeno recesso de fim de ano, mas voltamos em janeiro! Cuidem-se, fiquem bem e boa passagem de ano!

Edição: Rogério Jordão