Garimpo

Mercúrio contamina populações indígenas no Pará, mostra estudo

Em conversa com Rádio BdF, pesquisador da Fiocruz, Paulo Basta, faz alerta: “Garimpo não traz benefício nenhum"

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Garimpo ilegal traz impactos para saúde humana e meio ambiente, contaminando rios e fauna - Divulgação

Populações indígenas dos municípios de Itaituba e Trairão, no Pará, estão fortemente afetadas pela contaminação ambiental ocasionada pelo mercúrio. A conclusão faz parte de um estudo divulgado recentemente pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com a WWF-Brasil. Após análise de amostras de cabelo e de pescado consumido na região, os pesquisadores se depararam com um índice de 57,9% de pessoas com percentual da substância acima do limite máximo de segurança definido por instituições de referência.

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“Observar [cerca de] 60% de contaminação em uma área da Amazônia em um povo que é considerado vulnerável é um número bastante alarmante”, afirma o coordenador da pesquisa e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), Paulo Basta.

Em entrevista à rádio Brasil de Fato, ele lembrou que o problema tem como motivação o garimpo ilegal, prática que se intensificou no último biênio, contaminando solo, rios e provocando sérios danos aos seres humanos. Entre 57 crianças pesquisadas, por exemplo, 15,8% apresentaram problema em testes de neurodesenvolvimento, segundo o estudo.  

Basta também assinalou a importância de políticas públicas destinadas ao controle do problema e deixou um recado que, apesar de não ser novo, dá a tônica das suas conclusões: “O garimpo não traz benefício nenhum”. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.  

BdF – De cada dez participantes do estudo, seis apresentaram níveis de mercúrio acima de limites seguros. Isso é um percentual alto, na avaliação de vocês?

Sem duvida. O que recomenda a Convenção Internacional de Minamata, que prevê o banimento do mercúrio nas atividades industriais, é que o ser humano esteja livre da contaminação. Então, observar [cerca de] 60% de contaminação em uma área da Amazônia num povo que é considerado vulnerável é um numero bastante alarmante.

BdF –  Vocês colheram amostras em diferentes aldeias e em algumas delas a quantidade de pessoas contaminadas chega a ser de nove em cada dez participantes do estudo, ou seja, acima da média do universo total pesquisado. O que tem nesses lugares que os leva a apresentar um índice ainda maior?  

Esse nível de contaminação por mercúrio observado pela nossa equipe é decorrente da atividade garimpeira de ouro, então, durante o processo do garimpo, o garimpeiro utiliza o mercúrio pra identificar o ouro em fragmentos do solo, nas rochas. O mercúrio faz um amálgama com o ouro, gruda no ouro, por isso é utilizado nesse processo.

Só que, pra cada quilo de ouro extraído, estima-se que são desperdiçados entre 2 e 8 kg de mercúrio, então, é uma quantidade de duas a oito vezes maior utilizada em relação ao ouro identificado. Esse mercúrio cai no meio ambiente, se transforma no leito do rio, entra na cadeia alimentar, atinge os peixes e o ser humano, ao se alimentar do peixe contaminado, acaba se contaminando também.

E aí o que aconteceu? Nessas regiões que a gente visitou, foram três aldeias, e a que estava mais impactada do ponto de vista do meio ambiente foi a aldeia em que as pessoas apresentaram os maiores índices de contaminação. 

BdF –   Que tipo de amostras vocês escolheram para o estudo?

As amostras utilizadas para constatar a contaminação por mercúrio foram de duas naturezas. Nas de seres humanos, nós coletamos amostras de cabelo. [Para] todos os participantes do estudo que ofertaram amostras de cabelo, esses cabelos foram encaminhados ao laboratório do Instituto Evandro Chagas do Pará e lá ele foi analisado.

E também coletamos amostras de peixes. Coletamos 200 amostras de cabelo dos participantes e 88 amostras de peixes. Em todas elas, sem nenhuma exceção, foram detectados níveis de mercúrio. Nos seres humanos, seis em cada dez apresentaram acima do limite que é considerado seguro e, nas amostras de peixes, a maioria deles foi estratificada por nível trófico da cadeia alimentar. Os peixes carnívoros ou piscívoros foram os que apresentaram os maiores níveis de contaminação por mercúrio.  

BdF – Os resultados identificaram a presença de mercúrio em diferentes grupos, como crianças e idosos. Em algumas aldeias em particular vocês constataram que, de 57 crianças, nove (ou seja, um índice de 15,8%) tiveram problema nos testes de neurodesenvolvimento. O que vocês analisam em relação a esse percentual? É muito acima da média esperada também?

É, também é um nível elevado, se a gente considerar a premissa da Convenção de Minamata, que prevê a eliminação do mercúrio em todas as atividades industriais. Então, o que acontece?

[Pra] esses testes de neurodesenvolvimento, a gente considera quatro áreas do desenvolvimento infantil: a primeira é a comunicação, a da linguagem; a segunda é a interação psicossocial com crianças da mesma idade, com os familiares; a terceira são atividades motoras finas, delicadas, de pinças, de pegar um lápis, fazer um desenho; e a quarta é a das atividades motoras mais amplas, de caminhar, correr, brincar.  

Aplicamos um teste de neurodesenvolvimento que abrangeu essas quatro áreas. Chama a atenção que uma criança de 11 meses apresentou alteração nesse componente motor amplo, mais grosso dos movimentos, de caminhar, de brincar, de fazer as atividades motoras. E nessa criança havia uma concentração de mercúrio de 19,6 ppm. É um índice considerado maior do que três vezes o limite de segurança.


Equipes da Fiocruz fizeram coletas locais e avaliação clínica nas comunidades tradicionais envolvidas no estudo / Fiocruz/divulgação

BdF – Na questão da contaminação por mercúrio no pescado consumido na região, as concentrações médias apontaram para doses de ingestão diária entre quatro e dezoito vezes mais que os limites considerados pela Agência de Proteção Ambiental Norte-Americana e também duas a nove vezes mais que a referência considerada pela FAO, das Nações Unidas.  Quais os riscos disso pra saúde humana?  

É importante considerar que a Organização Mundial da Saúde junto com a Anvisa determina que o peixe pode ser comercializado quando ele tem, no máximo, 0,5 ppm de mercúrio para cada grama de músculo, do tecido muscular do peixe. Isso para pessoas que têm o hábito de comer peixe uma a duas vezes por semana. São padrões de referência que as organizações utilizam para evitar problemas futuros.

Nós fizemos um cálculo, uma estimativa a partir dos peixes que nós coletamos, das amostras, e selecionamos cinco espécies de peixes carnívoros. Com base nesses cálculos, os índices de ingestão de área de mercúrio ultrapassaram de duas a dezoito vezes essas duas agências de saúde que você mencionou. Isso demonstra que os índices de contaminação estão elevados, colocando os povos tradicionais, que têm o hábito de se alimentar regularmente de pescado, em grande risco de desenvolver sintomas e ter prejuízos decorrentes da contaminação por mercúrio.  

BdF – Além desses aspectos, tem algo mais desse estudo que chamou a atenção dos pesquisadores? Tem algo mais que vocês destacam como preocupante nesse universo de informações colhidas?

O que preocupa a gente é a invasão crescente nos territórios indígenas, nas áreas de proteção ambiental das unidades de conservação ou das atividades de conservação. Essas atividades são consideradas ilegais em áreas de proteção e, nos últimos dois anos, há um movimento de expansão dessas atividades criminosas nos territórios tradicionais.

Essa é nossa principal preocupação, tanto que nós fizemos um conjunto de recomendações e a nossa primeira recomendação é que as autoridades interrompam essa atividade criminosa nos territórios.  

BdF – Você poderia comentar um pouco as outras orientações feitas no estudo? O que mais se destaca?

Temos um conjunto de nove recomendações. A primeira é essa interrupção das atividades garimpeiras, de intrusão nas terras indígenas, que são de propriedade da União, mas também sugerimos o desenvolvimento de um plano de descontinuidade do uso de mercúrio na atividade de mineração artesanal em todo o país.

Sugerimos também a elaboração de um plano de manejo de risco pras populações que estão cronicamente expostas ao mercúrio, que vivem nas florestas, que são povos originários, que têm o hábito de se alimentar rotineiramente de peixes e estão correndo esse risco de contaminação.  

Então, esse plano de manejo de risco inclui o monitoramento dos níveis de mercúrio nos peixes consumidos, não só nos territórios, mas também os comercializados nos mercados da Amazônia, nos centros urbanos.  

[Também sugerimos] elaborar um conjunto de orientações, nos idiomas locais, pra que as populações sejam orientadas em relação ao consumo seguro do pescado; ampliar a testagem dos níveis de mercúrio em cabelo ou em amostras de sangue, principalmente de mulheres em idade fértil, gestantes e crianças menores de 5 anos; e desenvolver um protocolo de atendimento básico pra pessoas com suspeita de contaminação no SUS.

Além disso, a gente sugere fortemente que sejam fomentados programas de pesquisa de monitoramento em que as populações possam ser avaliadas de forma longitudinal ao longo do tempo, para se avaliar em diferentes situações como se comportam os níveis de mercúrio e como se comportam as alterações clinicas decorrentes dessa contaminação.  

Por fim, a gente sugere também que sejam formuladas políticas públicas que visem criar alternativas econômicas sustentáveis pras populações tradicionais, porque muitos dos povos tradicionais acabam se envolvendo com a atividade da mineração porque não há outra opção de desenvolvimento econômico na região.

Então, a gente sugere que sejam consideradas técnicas agroextrativistas, comercialização sustentável de produtos nativos da floresta, como mel, castanha, cacau, cogumelo, palmito, entre outras atividades que podem auxiliar essas comunidades a terem outro tipo de renda e se inserirem no mercado consumidor de alguma maneira.    

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Por fim, a gente sugere que as autoridades públicas realizem ações intersetoriais destinadas ao combate à ilegalidade na extração, na produção e na comercialização de ouro ilegal proveniente dessas regiões onde a atividade garimpeira não é permitida. Essa atividade, sendo feita de maneira ilegal, não deixa nenhum benefício pra sociedade local – não são recolhidos impostos, não são feitas melhorias, não são feitas ações de reparação do ambiente. Então, isso precisa ser fortemente combatido pelas autoridades brasileiras.

BdF – Uma última questão: a partir de que elemento a Fiocruz se interessou em fazer o estudo nesses locais? Teve alguma manifestação das próprias comunidades? E o que os pesquisadores perceberam em relação aos anseios que a população local coloca diante dessa problemática na região?

Essa pesquisa foi realizada pra atender uma demanda da própria comunidade. A Associação Kariri, que representa o povo Munduruku, que vive às margens do rio Tapajós, elaborou uma carta pro meu grupo de pesquisa na Fiocruz pra que a gente pudesse ajudá-los a entender melhor o que estava acontecendo na comunidade.

Eles vêm sofrendo o impacto da mineração há décadas e, preocupados com a situação da saúde da comunidade, nos solicitaram esse apoio. E, de maneira geral, os indígenas são contrários, eles não querem o garimpo dentro da sua terra porque eles já perceberam que o garimpo não traz benefícios nenhum.

Pode dar lucro pra uma, duas ou três famílias, mas grande parte da população é severamente afetada pela contaminação, pela devastação ambiental, por todas essas relações sociais que ficam deturpadas com a presença do garimpo na comunidade.

 

 

Edição: Rogério Jordão