Denúncia

República do Eucalipto: a Bracell e o agronegócio nas terras do centro-oeste paulista

Multinacional arrenda propriedades rurais da região para plantio; concentração das terras afeta reforma agrária

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Fabrica de Lençóis Paulista vai produzir mais de 1 milhão de toneladas de celulose solúvel até o ano que vem - Lucas Mendes / Jornal Dois

A disputa pela terra no centro-oeste de São Paulo vem ganhando novos contornos nos últimos dois anos. Desde que a empresa multinacional Bracell se instalou em Lençóis Paulista (a 43 km de Bauru), proprietários rurais da região estão tendo a oportunidade de transformar suas terras em plantações de eucalipto.

O incentivo ao cultivo da árvore vem da própria Bracell, que se oferece para arrendar propriedades rurais da região. O arrendamento se dá como uma parceria entre a empresa e os proprietários. Nessa prática, os produtores rurais disponibilizam sua terra e a empresa providencia o plantio e a manutenção do eucalipto. Após a colheita, a parte da madeira que fica com o proprietário é comprada pela empresa, pelo valor de mercado. 

Principal insumo da Bracell, o eucalipto plantado na região de Bauru e Lençóis Paulista é a matéria-prima da celulose, produzida pela empresa em larga escala e voltada para a exportação. A maior parte da produção tem como destino a China.

O cultivo em massa de um único produto agrícola, a chamada monocultura, para abastecer grandes empresas exportadoras é uma característica do agronegócio. Um dos impactos desse modelo de produção é a mudança no perfil do meio rural: o uso da terra e de sua produtividade passam a ficar concentrados nas mãos de poucas pessoas.

O poder político e econômico que o agronegócio conquistou no país, junto com o encolhimento dos incentivos aos pequenos proprietários e agricultores familiares, além da paralisação de instrumentos como a reforma agrária, são ingredientes que intensificam o cenário de desigualdade no campo.

Por um lado existe uma pressão econômica para que até pequenos produtores rurais se adequem ao modelo de produção do agronegócio. Por outro, há também o uso do arrendamento como um meio encontrado por proprietários para dar “função social” às suas terras, fugindo da reforma agrária – instrumento legal que desapropria terras improdutivas. 

Nos dois casos a terra passa a ser explorada em benefício do agronegócio.

Quem pesquisa esse setor da economia entende que a presença de grandes empresas gera um desequilíbrio no campo. Ocorre uma centralização da terra em volta do agronegócio e uma diminuição da diversidade de cultivos. A situação traz impactos para a produção de alimentos, para o meio ambiente e para as famílias que vivem da agricultura. 

De acordo com Márcio Costa, pesquisador do agronegócio e militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), nos próximos anos a questão agrária regional terá muitas forças envolvidas. “Nós vamos ter um processo de centralização ainda maior da terra, porque justamente os pequenos proprietários de dez, doze, quinze hectares, terão seus imóveis arrendados ou vendidos para grandes empresas”.

Líder mundial 

A Bracell é uma empresa produtora de celulose do grupo Royal Garden Eagle (RGE), de Cingapura, que chegou no interior de São Paulo em agosto de 2018. Foi nesse ano que a empresa comprou a fábrica da Lwarcel Celulose, do grupo Lwart, marcando seu primeiro passo na região. O segundo foi o “Projeto Starr”, um investimento de R$ 7 bilhões para a expansão dessa fábrica, que se localiza em Lençóis Paulista. 

Essa expansão está prevista para ser concluída em 2021, quando a fábrica será capaz de produzir 1,250 milhão de toneladas de celulose solúvel, número que até o ano passado girava em torno de 200 mil toneladas. A empresa pretende ser a maior produtora de eucalipto e de celulose líquida do mundo.

No site da Bracell, a empresa se autodenomina como “orgulhosamente brasileira” e promete empregar uma média fixa de 3.500 trabalhadores nos primeiros três anos. No dia 5 de novembro de 2019, a prefeitura de Bauru anunciou um acordo de cooperação com a multinacional, para auxiliar no fornecimento de mão-de-obra para o projeto. 

Pouco tempo depois, em janeiro de 2020 o governador João Dória (PSDB) anunciou que iria em busca de investimentos no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça. De lá, saiu mais R$ 1 bilhão em investimentos que se incorporaram ao projeto. 

Outro fato relacionado ao nome da empresa é a compra de uma das duas áreas leiloadas no Porto de Santos (SP) para movimentação de celulose. O leilão foi promovido em 28 de agosto deste ano pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). O valor da aquisição foi de R$ 505 milhões. A outra área ficou com a Eldorado Celulose.

Driblando a reforma agrária 

Na Constituição Federal, terras que não possuem função social, por serem improdutivas ou por crimes ambientais, devem ser desapropriadas e destinadas à reforma agrária. Uma prática que pode ser usada por proprietários de terras improdutivas para escapar da lei é o seu empréstimo para grandes empresas do agronegócio.

Nesse processo, ocorre o arrendamento da terra para a produção de laranja, cana de açúcar, pecuária, ou celulose. “A tendência geral é essa mesma”, sugere Henrique Tahan Novaes, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) na Unesp de Marília.

No Google, ao buscar pelo nome da empresa, o primeiro resultado que aparece na busca é o anúncio: “Cultive eucalipto na sua fazenda para diversificar sua renda. Transporte gratuito de mudas. Suporte técnico especializado. Preço de mercado garantido. Seja parceiro da Bracell”. 

De acordo com divulgação da Bracell, os eucaliptos no sistema de arrendamento podem ser plantados em propriedades dentro de um raio de até 200 km de distância da fábrica, em Lençóis Paulista. O campo de ação engloba cidades como Catanduva e Ribeirão Preto, ao norte, Campinas, à leste, Itapeva e Capão Bonito, ao sul, e Ourinhos, Tupã e parte do Paraná, à oeste.

A região de Borebi, Agudos e Iaras, nos arredores de Bauru, abriga grandes fazendas que poderiam ser destinadas à reforma agrária segundo levantamento do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). É o que aponta Chico Maia, ex-secretário de Agricultura e Abastecimento de Bauru.

República do eucalipto 

A celulose é uma commodity. Essa palavra, que vem do inglês, significa mercadoria. Na prática, é a matéria prima produzida em larga escala destinada principalmente à exportação. No Brasil, as principais commodities atualmente são soja (45%), carnes (16,02%), produtos florestais, como celulose, papel e madeira (10,78%) e café (4,76%). Os dados são do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. 

Em 2020, até o momento, a China foi a maior compradora das exportações brasileiras com 39%, seguido da União Europeia, com 16%. 

Além da cana de açúcar e da citricultura, a produção de eucalipto cresceu nos últimos anos, impulsionada pela procura do mercado externo. Como lembra Márcio Costa, no início do século existiam 50 mil hectares de eucalipto. Em 2010, esse número subiu para 110 mil hectares plantados.

Nativo da Austrália, o eucalipto é uma árvore exótica no Brasil. As primeiras plantas chegaram aqui no século XIX. O rápido crescimento da planta, que pode chegar a 40 metros de altura, e sua demanda por água motivam alguns cuidados no cultivo, como o respeito a uma distância mínima de córregos e cabeceiras d´água. 

A Indústria Brasileira de Árvores (IBÁ), associação que representa as empresas do setor, estima que cerca de 4 milhões de empregos são gerados no país pela cadeia produtiva de florestas plantadas. Dados de 2019 da associação apontam uma produção de mais de 19 milhões de toneladas de celulose em todo Brasil. Segundo a IBÁ, a venda de produtos florestais para outros países, em 2018, somou cerca de US$ 12,5 bilhões, o equivalente a 5,2% das exportações brasileiras.

De acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), as áreas de plantios de eucalipto estão distribuídas em todo país, mas a região sudeste concentra mais da metade do cultivo (54,2%). 

Lista que aumenta 

Um levantamento realizado em 2015 pela Ouvidoria Agrária Nacional do Incra apontou que haviam 2826 famílias com interesse em participar do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) na Região Administrativa de Bauru. A divisão engloba 39 municípios e uma área de pouco mais de 16 mil km². 

Do total de famílias, quase 60% estavam concentradas em quatro cidades: Bauru (545), Iacanga (482), Pederneiras (349) e Agudos (292). 

Esse número pode ter subido, na avaliação de Chico Maia. Segundo ele, o processo de retorno ao campo ocorre por causa da crise econômica e social enfrentada pelo país, que piorou com a pandemia do novo coronavírus. Com o fechamento dos postos de trabalho nas cidades, há uma busca pelo trabalho no campo.

Em Bauru não ocorre a criação de um novo assentamento rural há pelo menos cinco anos. Em 2017, na gestão Michel Temer (MDB), o Governo Federal estabeleceu que propriedades do campo que tivessem ocupação por movimentos sociais não seriam desapropriadas. 

Disputa pela terra 

Quando ocorre uma desapropriação, os antigos donos recebem o pagamento do valor das terras. Ao final do processo, famílias cadastradas na reforma agrária mudam-se para a terra, onde é dado início a um projeto de assentamentos. 

Isso pode levar anos. Segundo o Incra, no estado de São Paulo o tempo médio é de cinco anos até que se formalize a criação de um assentamento em via desapropriação.

Diferente da desapropriação, a expropriação se dá como consequência de um ato ilegal do proprietário, seja através da cultura ilegal de plantas psicotrópicas, ou pela utilização de trabalho escravo. Nesse caso não há o pagamento de indenização, e o proprietário pode inclusive sofrer outras penas. 

Em resposta a um pedido de informação feito pelo Jornal Dois, o Incra informou não ser possível quantificar o número de imóveis rurais “ociosos” no estado. Segundo o órgão, a verificação das terras que descumprem a função social só é possível após andamento do processo administrativo de desapropriação. “Tais processos têm seu andamento moroso”, apontou o instituto.

Agricultura familiar sob ataque 

Durante a pandemia, ficou claro o apoio ao agronegócio oferecido pelo Governo Federal em detrimento da agricultura familiar. Enquanto o primeiro lucra em dólares com a exportação de arroz aumentando os custos internos para a população, o segundo sofre vetos por parte do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no projeto de lei que previa a extensão do pagamento do auxílio emergencial aos agricultores que não tivessem recebido o benefício. 

O desprezo do presidente pela agricultura familiar não é de hoje. Logo no seu terceiro dia do mandato, em janeiro de 2019, Bolsonaro decidiu suspender a reforma agrária por tempo indeterminado. Devido à repercussão negativa da medida, o governo recuou. Mas em menos de três meses voltou a suspender. 

Em fevereiro de 2020, um decreto de Bolsonaro retirou do Incra o poder de formulação da política agrária, que passou ao controle do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. No governo de Bolsonaro, o Ministério do Desenvolvimento Agrário foi extinto. 

Ficou para a pasta da Agricultura a responsabilidade pela reforma agrária, com o secretário nacional Luiz Antonio Nabhan Garcia à frente do processo. Nabhan tacha o MST de “organização criminosa” e defende a revisão de assentamentos feitos nos últimos 30 anos.

“O cenário é pior pois os militares e os ruralistas no poder praticamente jogaram a reforma agrária na lata de lixo da história”, avalia Henrique. 

Ameaças de despejo rondam assentamentos da reforma agrária por todo país. Na região de Bauru, os moradores do Assentamento Luiz Beltrame, em Gália, lutam na Justiça para barrar uma ordem de reintegração de posse. O Jornal Dois acompanha a situação.

A alimentação das pessoas é afetada diretamente pela prioridade dada ao agronegócio no país. Com a maior participação da monocultura voltada à exportação, ficam mais restrita as possibilidades de produzir comida. 

Na visão do professor da Unesp Henrique Tahan, não há interesse em alimentar o povo na agenda do agronegócio . “Quando os alimentos deixam de ser alimentos e se tornam produtos com preços atrelados às variações das bolsas de valores, não há soberania alimentar em hipótese alguma”, atesta.

Um passado ainda vivo 

As origens desse modelo de produção agrícola estão na nossa história. A Lei de Terras (Lei n° 601) de 1850, sancionada pelo então imperador do Brasil, D. Pedro II, foi a primeira regulamentação nacional que garantiu a propriedade privada de terras agrícolas em território brasileiro. 

Com a lei, o acesso à terra ficava restrito àqueles que pudessem pagar. A regulamentação contribuiu para a consolidação legal do latifúndio, propriedade agrícola de grande extensão pertencente a uma pessoa. Na época, prevaleciam as “plantations” – modelo colonial de produção agrícola – com o emprego de mão-de-obra escravizada. 

João Pedro Stédile, dirigente nacional do MST, comenta que legislações já previam o fim da escravidão antes da sua abolição formal, em 1888. Em aula online, ele levanta fatores históricos de que ex-escravizados foram excluídos do processo de aquisição de terras, colocados nas periferias das cidades, sem possibilidade de trabalho ou dinheiro: 

Márcio Santos explica que a região de Bauru passou por um processo de colonização recente, que acompanhou o aumento da produção do café. No final do século XIX, a região era habitada por indígenas, principalmente das populações kaingangs. Esse processo de ocupação foi impulsionado pela expansão da malha ferroviária paulista, que atingiu a região de Bauru, Lençóis Paulista e Jaú.  

Entre os anos cinquenta e setenta “nossa região sofreu um processo de esvaziamento demográfico, com a migração para regiões mais atrativas economicamente”. Bauru absorveu uma parte dessa população, e hoje concentra quase 30% da população regional. 

As terras foram sendo ocupadas com pastagens extensivas e com pouca mão de obra. “Você pega o arame, cerca grandes extensões territoriais, enche de boi e tem lá três, quatro pessoas trabalhando. Não mais que isso”, conta Márcio. Segundo ele, esse cenário pastoril que forneceu o principal pilar para o agronegócio, ligado a uma “herança colonial”: grandes fazendas com a produção de itens específicos – cana, laranja, eucalipto, destinados ao mercado internacional.

“Estamos vivendo um novo ciclo de roubo, expropriação de terras e reestruturação do campo no Brasil. As queimadas na Amazônia e no Pantanal não são casuais”, explica Henrique. “É preciso lembrar que toda essa nossa região, que vai de Bauru a Presidente Prudente, passando por regiões do Mato Grosso do Sul, é fruto de grilagem e apropriação indevida de terras indígenas ou públicas”, emenda.

No dia 16 de setembro o Jornal Dois entrou em contato por email com a Bracell solicitando uma nota à reportagem. A empresa não retornou com uma resposta. Foram enviados os seguintes questionamentos:

– A empresa tem buscado parceiros que disponibilizam terras para o cultivo do eucalipto na região de Lençóis Paulista. Como é o processo da parceria? Existe algum estudo técnico prévio para avaliar o impacto da cultura na região?
– Quais os impactos que a cultura em larga escala pode causar ao solo? De que forma a empresa atua para minimizar esses impactos?
– Com a finalização do projeto de expansão, a empresa deverá produzir 1,250 milhão de toneladas na fábrica localizada em Lençóis Paulista. Quais são as estimativas de rendimento financeiro no final de cada produção anual?
– Qual é a metodologia utilizada para calcular o pagamento dos proprietários das terras arrendadas?