Desindustrialização

Dos investimentos bilionários ao fechamento de fábricas: por que a Ford está de saída

Unidades fecham as portas em SP, BA e CE; economistas explicam que “custo Brasil” não é fator preponderante na decisão

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

Ouça o áudio:

Política econômica que favorece desindustrialização e transforma o país em mero exportador de produtos primários, liderada pelo ministro Paulo Guedes, da Economia, está sob questionamento - Marcello Casal Jr. / Agência Brasil

Quatro bilhões de reais em investimentos para fabricação de automóveis no Brasil. O anúncio feito pela multinacional Ford em novembro de 2009 ganhou as páginas dos jornais e mostrou que o país era considerado um terreno fértil para negócios, apesar da crise econômica mundial. Onze anos depois, o mundo enfrenta uma nova crise, mas desta vez a montadora comunica que está de saída – sem discussão ou negociação com os trabalhadores.

Continua após publicidade

Conforme a informação divulgada na última segunda-feira (11), duas fábricas da Ford serão fechadas imediatamente no Brasil, em Camaçari (BA) e Taubaté (SP), e uma no último trimestre de 2021, em Horizonte (CE).

Leia também: Saída da Ford deve fechar 60 mil vagas na Bahia, onde 19,8% já estão desempregados

O Brasil de Fato conversou com economistas e sindicalistas para entender os motivos dessa decisão, após um século de produção de automóveis pela montadora estadunidense no país. Ao analisarem o cenário econômico, todos eles minimizaram a importância do “custo Brasil” na decisão da empresa, na contramão do argumento de entidades como a Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

Leia mais: Recuo da indústria em 18,8% reflete desindustrialização e mercado em “frangalhos”

O “custo Brasil” é entendido como um conjunto de fatores que prejudicariam o ambiente de negócios no país, como a carga tributária, aspectos burocráticos e logísticos e despesas com mão de obra. Ao refutarem esse argumento, os entrevistados relembram o volume de isenções fiscais e benefícios concedidos pelo Estado à Ford e a implementação da reforma trabalhista, que não resultou na geração ou preservação de empregos como propagandeado no governo Michel Temer (MDB).

“É uma canalhice da Ford. Só na Bahia foram mais de R$ 20 bilhões em isenções, de 1999 a 2020”, avalia Paulo Cayres, presidente da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM/CUT). “E é claro que [a saída] também tem a ver com esse desgoverno Bolsonaro, que não aponta nenhum caminho para a industrialização do Brasil”, resume.

Histórico

A Ford produz veículos no Brasil há cem anos. Em 1999, montou sua maior unidade, em Camaçari, com mais de 3 mil trabalhadores. O plano inicial da multinacional era investir no Rio Grande do Sul, mas os incentivos oferecidos pelo governo baiano – incluindo o terreno para instalação da fábrica – foram decisivos. Em solo gaúcho, a empresa pedia 10 anos de isenções, e as exigências foram recusadas pelo então governador Olívio Dutra (PT). O então governador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães (PFL), ofereceu o dobro.


Instalação da montadora em Camaçari (BA) atraiu fabricantes de peças automotivas, que serão diretamente impactadas pelo fechamento / Divulgação / Ford

O investimento bilionário em 2009, citado no início da reportagem, se deu em um contexto de ampliação do investimento público e fomento ao mercado interno, no segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Naquele ano, a venda de veículos no Brasil quebrou recorde e chegou a 3 milhões de unidades comercializadas – mais do que o registrado 2019, antes mesmo da pandemia.

O recorde foi quebrado nos anos seguintes, sob o governo Dilma Rousseff (PT). Uma das principais medidas para estimular a indústria, na época, foi um aumento de 30 pontos percentuais no imposto sobre produtos industrializados (IPI) dos carros fabricados fora do Mercosul e do México.

O fim dessa medida ajuda a compreender a opção da Ford por deixar o país no governo Bolsonaro. “É óbvio que as empresas vão querer produzir em lugares mais baratos e explorar o mercado brasileiro, que é um dos maiores do mundo”, completa Cayres.

Até 2017, funcionava no Brasil o programa Inovar Auto, de fomento ao segmento automotivo, que incentivava montadoras a investirem em pesquisa, engenharia e desenvolvimento. Outro objetivo era o fortalecimento dos fornecedores, por meio de uma política de conteúdo local, em que as empresas habilitadas no programa eram estimuladas a realizar etapas da atividade produtiva no Brasil. 

O Inovar Auto foi substituído em 2018 pelo programa Rota 2030, que não garantiu a política de conteúdo local, aumentando a dependência de importações e prejudicando as fabricantes locais de peças automotivas. 

Desindustrialização

Em 2020, a Ford registrou queda de 39,2% nas vendas de automóveis. A produção caiu 31,6%, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), e as estimativas para 2021 apontam para uma recuperação insuficiente. Mas não se trata apenas do coronavírus.

Em nenhum discurso ou projeto, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ou o ministro da Economia, Paulo Guedes, tratam como prioridade o aumento da participação da indústria no Produto Interno Bruto (PIB). Segundo os entrevistados, esse caminho poderia levar a um ganho de competitividade, com exportação de produtos com maior valor agregado e geração de empregos de qualidade.

Leia também: Para economistas, dívida pública não é um problema, como defende o governo

“O Brasil vive há anos um processo agudo de desindustrialização, desnacionalização de empresas e desmobilização de cadeias industriais”, ressalta Antônio Corrêa de Lacerda, diretor da Faculdade de Economia, Administração, Contábeis e Atuariais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

A participação da indústria de transformação no Produto Interno Bruto (PIB) caiu de 17,8%, em 2004, para 11% em 2019. As políticas neoliberais dos anos 1980 e 1990, e operação Lava Jato, a partir dos anos 2000, foram catalisadores desse processo. Mesmo nos governos PT, essa tendência não foi revertida. Enquanto isso, o agronegócio quebra recordes de exportação, mas o desemprego e o preço dos alimentos no mercado não param de crescer.

“Estamos reprimarizando nossa economia, cada vez mais dependente de commodities. A saída da Ford do Brasil desnuda o equívoco representado pelo argumento de que a orientação de cunho liberal da equipe econômica atrairia investimentos”, completa Lacerda.

Leia mais: O preço da comida está "na boca do povo"

Em 30 de outubro de 2019, a Ford já havia fechado as portas em São Bernardo do Campo (SP). Há um mês, foi a vez da Mercedes Benz encerrar as atividades em Iracemápolis (SP).

Na avaliação do economista, a junção de vários ministérios – Fazenda, Planejamento, Indústria e Comércio Exterior, Emprego e Trabalho (que já havia incorporado Previdência) – em um, da Economia, contribuiu para o fracasso da política econômica. “Houve perda de interlocução com o setor privado e desempoderamento de temas de extrema relevância, como a política industrial”, exemplifica.

Para Antonio Carlos Diegues, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a desindustrialização deve ser entendida como um processo estrutural. "Esse processo leva em consideração a abertura da economia, com taxa de câmbio sobrevalorizada, em um cenário de baixo crescimento, pouco incentivo ao investimento, com juros altos, uma integração produtiva difícil com a Ásia, no sentido da produtividade", analisa. "E o principal motivo é a ausência de uma política industrial clara, sólida, forte, de longo prazo, com força política, orçamento adequado, e comprometida com uma transformação estrutural da economia, como foi de 1930 a 1980".

Mercado em crise

Esse processo diretamente afetou o complexo metal-mecânico, resultando em perda de competitividade da indústria como um todo. Diegues lembra que as empresas reagem ao cenário de desindustrialização aumentando sua integração com fornecedores externos, gerando uma relação de dependência e "esvaziando" as cadeias produtivas.

A alta cotação do dólar foi citada tanto pela Mercedes quanto pela Ford ao fechar as portas. Menos de 40% dos componentes dos carros são fabricadas no Brasil, e a desvalorização do real encarece a importação das peças de fora do país.

A valorização do real era uma das promessas de campanha de Jair Bolsonaro (sem partido), em 2018. Segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), que analisou o desempenho de 30 moedas de diferentes países em 2020, a brasileira foi a que mais desvalorizou.

“Os últimos governos disseram que a reforma trabalhista, da Previdência, e o impeachment da Dilma [PT] iam fazer o Brasil decolar, gerar empregos. Mas nada disso aconteceu”, relembra Paulo Cayres. “O que vemos é uma política de destruição de direitos e empregos, em uma tripla tragédia: o governo, a pandemia, e a própria postura da Ford.”

Além de encerrar atividades no Brasil, a Ford também fechou unidades na Rússia, na França, na Inglaterra e até nos Estados Unidos, o que revela um setor em crise. O valor de mercado de todas as companhias automobilísticas em atividade já é inferior ao da Tesla, que desenvolve carros elétricos, por exemplo. Até o momento, o governo brasileiro não apresentou qualquer ideia, proposta ou sinalização de interesse na transição das montadoras para a economia de baixo carbono.

“Custo Brasil” não é central

Professor da PUC, o economista Antônio Corrêa de Lacerda aponta que a burocracia excessiva, as distorções tributárias, a carência de infraestrutura e logística adequada explica apenas em parte a debandada de investimentos no Brasil.

“Não é a questão determinante”, enfatiza. “O custo da mão de obra representa proporcionalmente pouco. O custo do capital (juros), distorções tributárias e volatilidade cambial, por exemplo, são muito mais relevantes. Falta uma visão mais estratégica do papel das políticas industriais e de medidas nessa área.”

Na interpretação de Diegues, o principal elemento conjuntural para entender o fechamento da Ford é a incapacidade da economia brasileira de retomar, desde 2015, um cenário vigoroso de crescimento. Isso se reflete em dificuldades no setor automobilístico e na indústria de transformação, como um todo. 

“A economia brasileira patinou bastante nos últimos anos, e isso tem inviabilizado a capacidade das empresas terem dinamismo, acumulação e boas taxas de lucro”, analisa. “Lembrando que a Ford está aqui há cem anos. Não é um suposto custo de mão de obra, nesse momento, que levaria a uma saída do Brasil”.

O professor da Unicamp lembra que o "custo Brasil" costuma ser utilizado como desculpa pelos empresários em cenário de baixo dinamismo da economia. 

“Tanto é que essas discussões somem do debate no auge do período lulista, até 2014, ainda com o crescimento registrado no governo Dilma”, acrescenta. “O 'custo Brasil' só é caro quando comparado a mercados emergentes que têm outra lógica de crescimento, com renda mais baixa e economia menos sofisticada. Não é reduzindo salário que a gente vai aumentar a competitividade”.

Leia ainda: Tributar os super-ricos, o caminho é por aí

A manutenção das operações da Ford na Argentina, além de razões de política econômica, está relacionada à produção de peças automotivas. Como o país vizinho concentra parte significativa da fabricação dos componentes de carros, em níveis inferiores apenas ao de países asiáticos, torna-se mais viável produzir em solo argentino do que brasileiro, em um cenário de desvalorização da moeda local e fragilização do mercado.

O Brasil de Fato encaminhou os questionamentos ao Ministério da Economia, que respondeu por meio de nota. A pasta disse que lamenta a decisão "global e estratégica" da Ford, que "destoa da forte recuperação observada na maioria dos setores da indústria no país, muitos já registrando resultados superiores ao período pré-crise."

O Ministério disse ainda que "trabalha intensamente na redução do Custo Brasil com iniciativas que já promoveram avanços importantes. Isto reforça a necessidade de rápida implementação das medidas de melhoria do ambiente de negócios e de avançar nas reformas estruturais".

Edição: Rogério Jordão