Educação na pandemia

Chefe de sala do Enem revela desorganização e falta de segurança durante prova

BdF RS entrevistou uma pessoa que trabalhou, neste domingo (17), na aplicação do primeiro dia de prova do Enem

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Vídeo postado no Twitter mostra corredor de local de prova lotado em Porto Alegre; inscritos descobriram que não poderiam fazer Enem quando prova já havia começado - Reprodução

Segundo noticiou o Brasil de Fato, a primeira etapa do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), realizada neste domingo (17), foi marcada por aglomerações e desrespeito às normas sanitárias para prevenir a disseminação da covid-19. Denúncias nas redes sociais de estudantes e entidades mostraram que o distanciamento social não foi respeitado, com relatos de mesas muito próximas, falta de álcool em gel e salas que não tinham sequer janelas.

A matéria também cita problemas de organização, como os diversos casos de estudantes que não puderam fazer as provas porque os locais de prova já estavam lotados. Nesses casos, os candidatos foram informados de que farão a prova nos dias 23 e 24 de fevereiro, mesma data prevista para aplicação do exame no Amazonas, onde a realização foi adiada em função do colapso sanitário da última semana.

No Rio Grande do Sul, o cenário foi semelhante, além de mais da metade dos inscritos se absterem de realizar a prova. O Brasil de Fato RS procurou personagens que participaram do primeiro dia de exame, para ouvir seus relatos e entender como foi participar de uma prova tão importante, em um momento tão delicado da nossa história. Conseguimos conversar com uma pessoa que trabalhou como "chefe de sala", em um local de prova de um município na zona Sul do estado, que deu seu depoimento sob a condição de anonimato.

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Preparação insuficiente

"Eu trabalhei nessa edição do Enem como chefe de sala. Já trabalhei outras vezes no Enem e na realização de outros concursos, então posso dizer que já tenho uma certa experiência na aplicação desse tipo de prova", afirmou a fonte entrevistada logo no começo da conversa.

Questionado sobre como foram os preparativos para a realização da prova neste contexto excepcional, ele respondeu:

"A preparação deste ano começou com um curso a distância de 20 horas, onde foram passadas as orientações de acordo com cada função. Eu considero esse curso ruim, as pessoas demoram para fazer, a plataforma saiu do ar mais de uma vez e foi bastante exaustivo. Na prática, prepara a pessoa pra aplicar o Enem, mas não para essa situação específica da pandemia. Tinha alguns tópicos sobre os cuidados necessários".

O entrevistado afirmou ainda que, no curso, foi orientado que a distância necessária entre as pessoas deveria ser de dois metros em ambientes como salas e corredores. No entanto, no domingo, quando chegaram ao local, a coordenação deu a orientação para os chefes e fiscais de que somente um metro e meio de distanciamento seria necessário, pois o local de prova não daria condições de 2 metros de distância.

"As salas e os corredores eram pequenos. O próprio auditório onde fizemos a capacitação era pequeno, o local como um todo não dava as condições para o distanciamento", relata.

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A capacitação a que o entrevistado se refere é uma formação que aconteceu no dia da prova, ocorrendo das 9h às 11h. "Nem nós pudemos manter o distanciamento. Acredito que os colaboradores que trabalharam na aplicação da prova tinham menos segurança ainda se comparados com os que fizeram a prova", detalha.

Ele relatou também que, inicialmente, foi avisado que essa capacitação aconteceria em dois auditórios, dividindo os colaboradores em dois grupos, o que não aconteceu.

Questionado sobre sua condição psicológica, afirmou que teve bastante medo de trabalhar na realização da prova, mas que não pôde abrir mão do trabalho por necessidade financeira. "Eu tinha consciência dos perigos, mas até agora estou preocupado. Me cuido muito, mas qualquer dor de cabeça já fico pensando que posso ter sido infectado”.

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Abstenções

Ele afirma que este ano, em que o Enem contabilizou recorde de faltas, menos de um quarto compareceu ao exame na sala onde ele trabalhou. As ausências foram percebidas no local de provas como um todo.

“No Brasil todo, mais da metade dos inscritos desistiu de ir. Na minha sala, a desistência foi de cerca de 75%, e nas outras salas do local a desistência foi mais ou menos igual. Conhecendo a realidade da educação pública, todo o contexto da pandemia contribuiu”, conta.

Segundo ele, as desigualdades nos níveis de preparação foram determinantes pra esse nível de abstenções.

“O Enem é o maior concurso público do Brasil. Quando ele acontece nessas condições, há um acirramento das desigualdades sociais, foi uma prova desigual, tendo em vista as desigualdades sociais, raciais e de gênero do Brasil. Muitas pessoas desistiram, pois não tinham a menor condição de fazer a prova", avalia.

O entrevistado lembrou que muitos candidatos são de grupos de risco, tendo problemas de saúde associados. Ainda outros tantos são idosos ou moram com pessoas mais velhas, o que contribui para esse nível de abstenção. Provavelmente, muitos dos inscritos vivenciaram os traumas de perderem entes queridos para a pandemia, o que certamente aumentou a quantidade de pessoas que não foi à prova.

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Diretrizes em cima da hora 

Outro fato relevante relatado foi que, à meia-noite de sábado (16), foi enviado um comunicado do Ministério da Educação para as coordenações dos locais de prova, afirmando que só seria permitido a entrada de 40% da capacidade de cada sala.

“Na minha sala, onde estavam previstos cerca de 20 inscritos, só poderiam ter entrado menos de 10. No local onde trabalhei, não houve problemas com isso, pois houve muita desistência, mas houve casos aqui, na cidade, onde depois de completado os 40% de ocupação, as pessoas simplesmente não puderam entrar.”

O relato coincide com o acontecido e registrado em diversos locais pelo Brasil. Em Porto Alegre, por exemplo, um inscrito que não conseguiu realizar a prova publicou vídeos no seu Twitter, mostrando diversas pessoas aglomeradas nos corredores da universidade Uniritter. O inscrito relatou ainda que as pessoas foram impedidas de entrar nas salas, à medida que os fiscais avisavam que “já estavam lotadas". Os inscritos foram sendo dispensados sem nenhum tipo de documento que comprovasse a dispensa.

“Nossos dados foram preenchidos em uma folha qualquer, à caneta, pela supervisora. Os responsáveis não queria dar nenhum documento que nos respaldasse”, afirmou o candidato, ressaltando que as dispensas ocorreram quando as provas já haviam começado.

Segundo o chefe de sala que foi fonte desta matéria, esta falha de organização gerou um grande transtorno, não só para os trabalhadores. “Fazer o Enem por si só já é um motivo de ansiedade. Fazer durante uma pandemia, ainda sabendo que estamos sob um governo que não teve medidas efetivas para o controle da pandemia, é pior ainda”, salientou.

A decisão de só permitir a entrada de 40% dos estudantes foi tomada menos de 24 horas antes da realização da prova, revelando uma grande desorganização e descaso com os inscritos. Na prática, os estudantes não sabiam que estavam numa corrida: quem chegasse primeiro realizaria a prova. Os outros, mesmo tendo chegado dentro do horário estabelecido, não puderam realizar a prova no dia.

Os colaboradores que trabalharam na realização da prova só ficaram sabendo dessa determinação durante a capacitação que ocorreu horas antes da prova. Ao saber que teriam que barrar inscritos no local, os trabalhadores ficaram todos muito nervosos, relatou o chefe de sala.

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Protocolos sanitários insuficientes

Especificamente sobre os cuidados sanitários, o chefe de sala também teve bastante do que reclamar. “No dia da prova, durante a capacitação, ficamos muito apertados em um auditório pequeno, era impossível ter sequer 1 metro de distância. Houve falta de cuidado de alguns colaboradores também, que tiraram a máscara no final da prova, eu achei muito ruim.

Na sua opinião, o único ponto positivo foi a disponibilização de máscara: foram dadas 3, para serem trocadas a cada 3 horas. Mas reclamou da falta de outros equipamentos de proteção, como luvas e “face shield”. Reclama também que, por mais que houvessem as orientações de manter o distanciamento, há momentos em que é necessária a aproximação para passar orientações aos candidatos ou para coletar assinaturas, por exemplo. Momentos esses em que os equipamentos de proteção adicionais seriam muito importantes.

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Relata ainda que diversos candidatos não utilizavam a máscara corretamente, muitas vezes tirando a máscara ou baixando no queixo, colocando todos os presentes em risco e necessitando de permanente vigilância dos fiscais e chefes de sala.

Outra falha de segurança foi a orientação de que as pessoas deveriam manter distanciamento de dois metros, em locais onde houvesse a formação de filas. Para isso, seriam demarcadas essas distâncias com fitas adesivas no chão, o que não ocorreu. Foram somente demarcados os locais onde os candidatos deveriam aguardar antes de chegar na mesa onde o trabalhador conferia seus documentos.

“Na minha sala, dos poucos que compareceram, nenhum respeitou essa distância, todos chegaram muito perto, alguns colocavam seus pertences pessoais em cima da mesa, mesmo com a gente pedindo uma certa distância, não havia respeito, foi muito complicado, faltou um trabalho de conscientização na mídia, por exemplo.”

Outro exemplo dessa falta de garantias de segurança sanitária, relata, foram os candidatos com doenças infectocontagiosas. Segundo as regras de aplicação do Enem, pessoas com este tipo de enfermidade devem realizar a prova de forma isolada, em um local reservado chamado de “sala extra”. Ou seja, uma pessoa com conjuntivite, por exemplo, não poderia fazer a prova perto de outras pessoas, mas uma pessoa contaminada pela covid-19 pôde prestar o exame sem que ninguém soubesse.

“É muito provável que contaminados pela covid-19 tenham passado pelos locais de prova, o que demonstra que os protocolos de segurança são muito contraditórios”, afirmou o chefe de sala.

Ressaltou, já no final do relato, que se fosse para realizar a prova, deveria ter havido um nível maior de garantias, afirmando que não se sente seguro para o próximo dia de prova.

“Posso afirmar, com toda certeza, que os protocolos, quando aplicados, não foram suficientes”, completou.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Camila Maciel e Katia Marko