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V de Vingança, de Vacina e de Vergonha

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Como era esperado, o fim do auxílio emergencial, o agravamento da crise sanitária e o aumento do preço da carne derrubaram a popularidade de Bolsonaro - Carolina Antunes / Agência Brasil
O cenário internacional prova que a terra é redonda e que o mundo dá voltas

Doria venceu o primeiro round, mas ainda não há vacina para todos. A curto prazo, parece certo que apenas duas coisas não irão mudar: o agravamento da pandemia e o método do governo, mesmo que caiam alguns ministros.

1. NecroMinistro. No dia D os brasileiros comemoraram a chegada da vacina, para no dia E descobrirem que a grande maioria da população terá que esperar muito para ser vacinada. Já na segunda-feira (18), atrasou a entrega do material para pelo menos onze estados, devido a inúmeras falhas logísticas do Ministério da Saúde. Depois da euforia inicial, ficou claro que o lote de Coronavac disponível poderia imunizar apenas 4% do grupo prioritário. E não há data para novos lotes. Nem mesmo um cronograma de vacinação Pazuello apresentou, apesar da exigência do STF, e nesse ritmo vamos adentrar 2022. Além disso, a descentralização dos critérios para definir os grupos prioritários, que ficou a cargo de cada município, abre brechas para práticas de clientelismo e privilégios, como já vem ocorrendo no interior de Sergipe e em Manaus (AM), onde a vacinação chegou a ser temporariamente suspensa.

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Depois de tanto negacionismo, negligência e desorganização, é de se desconfiar que a paralisia do Ministério da Saúde não seja apenas obra de incompetência, mas sim um macabro projeto genocida, como denuncia Jeferson Miola. O caso mais grave continua sendo o Amazonas, onde a falta de oxigênio e de insumos básicos prossegue há duas semanas, problema do qual o Ministério da Saúde já tinha conhecimento desde o dia 8 e que fez muito pouco para resolver, ainda que Bolsonaro se isente dizendo  “fizemos a nossa parte”. Mas, apesar de tudo, o Exército só começou a mostrar preocupação com o desempenho do general ministro quando a Revista Época contabilizou  as mortes ocorridas no norte do país na conta dos militares, que reagiram com a tradicional truculência, mas ligaram o sinal de alerta e já pensam em mandar Pazuello para a reserva. Além disso, depois da morte do general Mioto por Covid-19 fica mais difícil para os militares sustentarem o projeto de seu ministro. O desempenho de Pazuello também preocupa o governo, que já conversa reservadamente sobre a necessidade de mudanças. Acontece que ter um bode expiatório para eventuais fracassos faz parte do método de Bolsonaro e a hora do sacrifício talvez ainda não tenha chegado.

2. Pobre de direita. O cenário internacional prova que a terra é redonda e que o mundo dá voltas. A vitória de Joe Biden nos Estados Unidos, o agravamento da pandemia e, agora, o início da vacinação no Brasil fez com que a nossa diplomacia se tornasse um fardo para o país, criando descontentamento dentro do próprio governo. É em grande medida dos países taxados pelo chanceler Ernesto Araújo como comunistas que se pode esperar alguma ajuda, a exemplo da Venezuela que, junto às centrais sindicais brasileiras, está doando oxigênio para o Amazonas. A direita bem que tentou deslegitimar a atuação do governo bolivariano, disseminando a falsa informação de que o oxigênio doado seria da empresa privada White Martins, quando na verdade a doação foi feita pela estatal Sidor. Em relação às vacinas, só agora, depois de cobrada pelo ministro do STF Ricardo Lewandowski, é que a Anvisa decidiu analisar o pedido de uso emergencial da russa Sputnik V. Já os insumos para a produção da Coronavac vêm da China, país que sofreu sucessivas acusações e ofensas do clã Bolsonaro, de Ernesto Araújo e do ministro Ricardo Salles. Agora a demanda interna da China é enorme e o Brasil não está no topo da lista de prioridades. Por isso, os insumos da Coronavac não têm data para chegar aqui e é provável que o primeiro lote distribuído no Brasil termine antes disso.

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Contando com mais sorte que juízo, depois de muitas idas e vindas, o governo indiano resolveu liberar imediatamente para o Brasil dois milhões de doses da vacina da Oxford/AstraZeneca produzida em seu território. A previsão era de que a entrega fosse feita somente em março. Os motivos da hesitação indiana parecem ser políticos, pois a nossa diplomacia não apoiou a Índia na proposta de suspensão das patentes de vacinas no âmbito da OMC. Ernesto Araújo preferiu fazer do Brasil força auxiliar das nações ricas. Agora, receando as consequências de seus atos, os representantes do Brasil preferem manter o silêncio na reunião da OMC. Ou seja, na discussão da quebra de patentes a nossa diplomacia reproduz com perfeição a mentalidade do pobre de direita: prefere se dar mal do que perder a razão. Ainda assim, pode lhe custar o cargo. Neste caso, Bolsonaro tem muito apreço pelo bode expiatório, mas já pensa numa saída honrosa para o chanceler e há até quem fale em Michel Temer para a pasta.

3. O dilema de Bolsonaro. Como era esperado, o fim do auxílio emergencial, o agravamento da crise sanitária e o aumento do preço da carne derrubaram a popularidade de Bolsonaro. A rejeição chegou a 40%, segundo a XP, maior índice desde julho, e afetou inclusive a base bolsonarista, diminuindo a aprovação entre evangélicos e também nas redes sociais. Sempre que atacado, Bolsonaro reage da mesma maneira. Primeiro, joga apenas para a sua torcida, para a turma do cercadinho. Nestes dois anos de governo, Bolsonaro jamais fez uma ação que fosse universal, para o conjunto da sociedade. Atende sempre os interesses de grupos específicos. E vai insistir no cálculo matemático de que precisa apenas dos seus 30% para chegar ao segundo turno em 2022. Por isso, continuará falando apenas para a sua base social, nas redes sociais e ao mesmo tempo provocando novas ou velhas polêmicas. Como por exemplo acenar para as Forças Armadas e insinuar o apoio às suas pretensões golpistas. Nisso, até Augusto Aras, desaparecido desde a nomeação de Kassio Nunes para o STF, reapareceu para escudar Bolsonaro, com a ameaça de que “O estado de calamidade pública é a antessala do estado de defesa”. Além disso, e em tempos de eleições no Congresso, o insaciável centrão deve ganhar mais 56 cargos.

O dilema de Bolsonaro é de que quanto menos durar a crise sanitária, mais rápido ele precisa responder sobre a crise econômica. Porém, quanto mais se estende a crise sanitária, mais a sua popularidade cai e mais a crise econômica se agrava. A sua salvação depende de acenar para o sistema financeiro ou para as classes mais baixas e órfãs do auxílio emergencial. E em ambos os casos, precisa de Paulo Guedes, ainda que os dois não tenham nada a oferecer a ninguém. Guedes, com sua notória criatividade para inventar números aleatórios, não tem sido capaz nem de aplacar o mercado internacional, nem o empresariado nacional, e, por sua vez, estaria esperando o resultado das eleições no Congresso para ressuscitar sua proposta de CPMF, uma medida que não agrada a ninguém, além de sonhar com a privatização do Banco do Brasil.

4. Dia D de Doria e de Direita. O ato da primeira vacinação no país pode ter desagradado a outros governadores, mas cumpriu exatamente com o que João Doria queria: fustigar Bolsonaro e posicionar seu carro na pole position da direita com vistas à 2022. Assim como ele, Rodrigo Maia - que não pretende sentar no posto de motorista, mas quer continuar jogando um papel central nos próximos anos - também aproveitou a ofensiva. Maia foi em busca da embaixada chinesa para tentar minimizar o dilema dos insumos para as vacinas, portando-se como o "primeiro adulto na linha sucessória". Por mais que queiram desidratar Bolsonaro, nem Dória, nem Maia pensam em impeachment. Dória quer desgastá-lo até 2022, enquanto Maia pensa, por enquanto, só nas eleições do Congresso nas próximas semanas, como provam os 60 pedidos de impeachment guardados na sua gaveta. Porém, a sucessão de erros de Bolsonaro e Pazuello ressuscitou a hipótese de impeachment, inclusive na direita. Especialistas em golpes, MBL e Vem pra Rua já adotaram a bandeira e até - pasmem! - o Centrão já mudou o discurso de "sem chances" para "olha, depende", segundo apuração de Igor Gielow.

É verdade que, neste momento, Bolsonaro ainda teria o apoio de 200 deputados, o suficiente para bloquear a abertura de qualquer pedido. Porém, o gesto da vacinação de Dória também acendeu o sinal amarelo para a oposição pela esquerda. Rede, PSB, PT, PCdoB e PDT decidiram apresentar coletivamente um novo pedido de impeachment, enquanto os senadores da Rede e do PSB propõem uma CPI do Coronavírus. Para o cientista político Vitor Marchetti (UFABC) ainda faltam ingredientes para recolocar o impeachment no cenário: "Crise econômica aguda, manifestações de rua, queda forte de popularidade. Isso tudo poderia fazer com que o parlamento fosse reconstruindo as bases para dar apoio ao impeachment”. Timidamente, algumas manifestações, ainda em condições de pandemia, já são ensaiadas, enquanto as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo convocam uma carreata pelo impeachment neste final de semana.

5. V de vergonha. A desorganização planejada e o descaso não são exclusividades do Ministério da Saúde e da diplomacia brasileira. Na educação ocorre o mesmo. A diferença, neste caso, é que não se encontram vozes de peso para disputar com o governo, nem na direita, nem na esquerda. O primeiro dia do Enem ocorrido no domingo (17) teve tudo o que já se esperava: altíssimo índice de abstenção - superior a 50% dos inscritos - aglomeração, e estudantes impedidos de fazer a prova por falta de espaço na sala. Porém, o evidente fiasco não intimidou o ministro da Educação, Milton Ribeiro, que considerou a primeira prova "vitoriosa". Ele reiterou ainda que não considera a possibilidade de cancelar a segunda etapa do exame, agendada para o próximo domingo (24), exceto por decisão judicial, como se já soubesse o resultado que viria a seguir. Alguns dias depois, a justiça negou o pedido da Defensoria Pública da União para cancelar a aplicação da segunda prova. Já em relação aos estudantes impedidos de entrar na sala, a justiça decidiu que, neste caso, as provas deverão ser aplicadas novamente nos dias 23 e 24 de fevereiro.

Difícil mesmo será saber quem são estes estudantes que deram “de cara na porta” já que eles não receberam qualquer registro de presença no dia. Ou seja, além dos riscos sanitários e do desperdício de recursos públicos, a continuidade do Enem poderá levar o exame à completa desmoralização, é o que avalia a ex-presidente do Inep, Maria Inês Fini, que alerta ainda que as universidades têm autonomia para utilizar ou não as notas do Enem em seus processos de seleção. Neste quadro caótico, a única boa notícia parece ser mesmo o tema da redação, que trouxe à tona o debate sobre o estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira, tema bastante atual num mundo onde o medo da doença e da morte e o isolamento social agravam os transtornos mentais, avalia o psicanalista Christian Dunker no Brasil de Fato.

6. Ponto Final: nossas recomendações

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Ponto é uma publicação do Brasil de Fato. Editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile.

Edição: Rogério Jordão