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O holandês

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Uma coisa que quase todos contavam era que tinham muita saudade do guaraná, refrigerante que não existia em nenhum outro país - Unsplash
Cada vez que o holandês falava, seu Odrovaldo fazia uma cara de riso contido

Ando me lembrando de histórias do tempo em que a ditadura estava chegando ao fim e muitos exilados voltavam para o Brasil.

Muita gente boa teve que se mandar para não ser presa ou morta, e quando veio a anistia voltou e era recebida com festas.

Quer dizer, tinha muita gente boa, mas tinha também umas pessoas que eu não gostava, uns caras que faziam pose de importantes demais, e achavam que tínhamos a obrigação de fazer rapapés pra eles o tempo todo.

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Estes insinuavam que eram mais vítimas da ditadura do que os que foram presos aqui e sofreram muitas torturas. E muitos deles nem eram exilados de verdade, foram para o exterior porque quiseram.

Pra um desses, eu cheguei a falar:

- Olha... Se você tivesse morrido no exílio, seria tido como um herói, um bom brasileiro que podia participar ativamente da reconstrução do Brasil. Mas agora está todo mundo vendo que você não passa de um babaca.

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Com os bons eu gostava de conversar. Uma coisa que quase todos contavam era que tinham muita saudade do guaraná, refrigerante que não existia em nenhum outro país. E quando chegaram aqui tomavam guaraná como se fosse a maior delícia de bebida.

Alguns haviam se casado durante o exílio e traziam mulheres ou maridos estrangeiros.

A Mariana, irmã de uma amiga minha, esteve exilada na Holanda e não se casou lá, mas arrumou lá um namorado que veio com ela.

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Fizeram uma grande festa no sítio da família, quando ela chegou, trazendo o namorado que conheceu em Amsterdã. Era um holandês legítimo, que mal arranhava algumas palavras em português, aprendidas com a Mariana.

Nessa festa, Mariana era a intérprete do namorado, enquanto um empregado, o seu Odrovaldo, só olhava com cara de curiosidade. Cada vez que o holandês falava, seu Odrovaldo fazia uma cara de riso contido, às vezes até soltava mesmo um sorrizinho maroto. E não falava nada.

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No final da tarde, seu Odrovaldo finalmente criou coragem e soltou seu primeiro comentário sobre o namorado da Mariana:

- Eta hômi que fala esquisito!

A Beatriz, irmã da Mariana, ouviu e explicou:

- É que ele é holandês.

O seu Odrovaldo fez uma cara de espanto e falou admirado:

- Landrês?! Voooorta! Pensei que tinha só boi dessa raça.

Edição: Daniel Lamir