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Bares da Vila Madalena

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Esses estudantes foram se formando e ficando por aqui. Mas não havia nenhum bar como os de hoje. Tomávamos cerveja em vendas, sentados em sacos de batata e engradados - Henrique Oli / Unsplash
Lá é assim: tem escritor sem livro, cineasta sem filme, arquiteto sem projeto

A ditadura inventou a Vila Madalena do jeito que é hoje, eu digo sempre.
No final de 1968, os militares fecharam o conjunto residencial da Universidade de São Paulo e prenderam quase todo mundo que morava lá.

Cada um que saía da cadeia precisava arrumar um lugar barato e perto da Cidade Universitária para morar.

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E vieram para cá, onde havia muitas casinhas de fundo para alugar. Eram ocupadas por operários, e os estudantes acabaram tomando o lugar deles.

Esses estudantes foram se formando e ficando por aqui. Mas não havia nenhum bar como os de hoje. Tomávamos cerveja em vendas, sentados em sacos de batata e engradados.

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Depois de um tempo uns comerciantes perceberam o potencial da Vila e começaram a abrir bares; uns deles, bares muito bestas.
Um dos primeiros chamava-se Bartolo’s.

Fui lá algumas vezes e não gostei. Não só o bar era meio ruinzinho, mas a frequência também. Quase sempre encontrei lá algo parecido com uma convenção de gente chata.

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As pessoas com quem conversei no Bartolo’s sempre pareciam ser muito críticas, mas só de gogó. Intelectuais e revolucionários de boteco.

Um dia uma amiga, a Fúlvia, quis marcar uma conversa comigo e outros amigos no Bartolo’s, eu disse que preferia outro lugar. Ela perguntou o porquê e expliquei:

- Lá é assim: tem escritor sem livro, cineasta sem filme, arquiteto sem projeto, psicanalista sem cliente... só gente desse tipo.

Ela pediu mais explicações e eu continuei:

- Olha, um dia encontrei lá um sujeito falando mal do García Márquez, dizendo que ele era um péssimo escritor. O sujeito dizia que também era escritor, para se gabaritar para essa crítica. Perguntei que livro ele escreveu e ele respondeu: “Por enquanto, nenhum... mas estou com um projeto!”. Lá é cheio de gente assim.

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Um cineasta que desbancava o Babenco e nunca tinha feito um filme. Um compositor que nunca compôs nada falava mal do Chico Buarque, só gente desse tipo. A Fúlvia ria... e ria. Aí eu é que perguntei o porquê. Ela contou:

- Só fui ao Bartolo’s uma vez... Quem me levou foi um sindicalista sem sindicato e um dono de bar sem bar.

- Como? - perguntei.

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E ela me contou:

- Os dois não trabalham há muito tempo. Um foi dono de bar há cinco anos e até hoje diz que é dono de bar. O outro foi dirigente sindical há mais de dez anos, mas ainda se apresenta como sindicalista.

Ah... Ainda tem gente assim espalhada por aí.

Edição: Daniel Lamir