Colômbia

Presos políticos da FARC se organizam para combater covid-19 na prisão

Em entrevista exclusiva à jornalista Sasha Yumbila Paz, ex-combatentes falam também do descumprimento dos Acordos de Paz

Tradução: Roxana Baspineiro

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Presos políticos da FARC se organizam em um Conselho dentro da da prisão 'La Picota', localizada no sudeste da cidade de Bogotá - Sasha Yumbila Paz

No quarto pavilhão da prisão de La Picota, no sudeste de Bogotá, capital colombiana, os presos políticos da ex-guerrilha FARC e atual partido político Comunes se organizam para combater a propagação da covid-19 e para seguir lutando pela sua liberdade.

A organização dos ex-guerrilheiros leva o nome de Conselho Local María Cano, em homenagem a uma das maiores líderes sindicais do país da década de 1920, conhecida como a “flor do trabalho”.

Nesta entrevista concedida à jornalista independente Sasha Yumbila Paz, os presos políticos contam sobre a rotina no centro de detenção, onde realizam atividades de estudo, análises políticas nacionais e internacionais, oficinais de arte e outras atividades culturais populares.

Segundo os entrevistados, mais de 282 ex-integrantes da guerrilha estão detidas mesmo após o Acordo de Paz, assinado entre as FARC e o governo de Juan Manuel Santos.

À jornalista independente, eles falam sobre o descumprimento do Acordo de Paz pelo atual governo colombiano, do direitista Iván Duque, e a grave situação da população carcerária no país, piorada pela pandemia de covid-19.

Confira, a seguir, os principais momentos da entrevista.

Sasha Yumbila Paz: Quem são os presos políticos da FARC? Como estão organizados?

Conselho Local María Cano: Os presos políticos das ex-FARC-EP, comprometidos com o processo de paz, são camponeses, estudantes universitários, líderes sociais e comunitários que defendem a vida e os direitos comuns do povo colombiano.

Devido às represálias dos governos de ultradireita do nosso país, fomos forçados a pegar em armas para defender nossas vidas. Quando iniciamos o processo de paz com o governo de Juan Manuel Santos e aceitamos o que foi acordado em três anos, entregando nossas armas, nos tornamos agentes de paz.

Nós, presos políticos do Partido da Rosa [como é conhecido o partido Comunes, formado após o Acordo de Paz], estamos organizados em conselhos locais. No nosso caso, no pavilhão número 4 de La Picota [centro de detenção], em Bogotá, estamos organizados no Conselho Local Maria Cano, o que nos permite desenvolver atividades de estudo e análise permanente dos eventos políticos do país, da América Latina e do mundo, jornadas sanitárias, além de produção de artesanato, obras de arte e jornadas culturais ligadas à luta social do povo.

É importante esclarecer que nas 132 prisões do país, de acordo com o Instituto Nacional Penitenciário e Carcerário (Inpec), a população carcerária corresponde a 97.649 pessoas, A capacidade dos centros de detenção na Colômbia é de 80.683 pessoas e, no início de 2020, havia 122.820 detentos, uma superlotação de 52,07%. Hoje, o número caiu consideravelmente, ficando em 21,03%, mas isto não se deve ao decreto 546 do governo [que determinou a prisão domiciliar de alguns presos devido à pandemia], já que somente 889 detentos foram libertados sob esta decisão. Os demais foram libertados devido a outras medidas já em vigor e aceleradas antes da pandemia.

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Quantos presos políticos comprometidos com o Acordo de Paz estão nas prisões colombianas?

Não há um número exato porque antes de 15 de agosto de 2017, o o governo fechou arbitrariamente a lista de detidos da ex-guerrilha, então muitas não foram credenciadas. O partido da FARC [hoje Comunes] insistiu que deveriam ser levados em conta os membros que não estavam na lista, mas que comprovadamente fazem parte da organização.

Diante dessa situação, em outubro de 2020, o partido denunciou publicamente que 182 presos políticos estão credenciados e sem benefício de liberdade, 204 pessoas estão pendentes de credenciamento e mais de 120 pessoas ainda estão privadas de sua liberdade, apesar de terem sido nomeadas como gestoras da paz pelo próprio governo.

O que foi feito e o que não foi no Acordo de Paz assinado em novembro de 2016 entre as FARC e o governo de Juan Manuel Santos? Qual é o motivo de vocês ainda estarem na prisão? Em termos políticos, significa que o acordo falhou?

Nós, presos políticos, estamos totalmente de acordo que o processo de paz foi bem feito e, portanto, não faltou nada. O que está faltando é a implementação por parte do governo. O processo de paz está colocado para os ex-combatentes das FARC e continuará estando porque nós não temos nenhuma observação.

Em termos políticos, não somos nós que não estamos cumprindo o Acordo de Paz e sim o governo nacional comandando pelo doutor Iván Duque Márquez, do partido Centro Democrático, que quebrou o Acordo no Senado com todas as artimanhas, falácias e calúnias. O resultado mais visível que temos é o assassinato de 246 companheiros, e o governo não mostrou nenhum sinal para deter este genocídio.

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Quais soluções políticas e jurídicas poderiam ajudá-los a recuperar sua liberdade?

Nós acreditamos que o governo deve cumprir, legalmente, o processo de paz, o que foi firmado no acordo, e deixar a Jurisdição Especial para a Paz (JEP) trabalhar livremente a favor e em conformidade com a Lei firmada. A JEP está sendo chantageada pelo governo para que não cumpra o Acordo de Paz.

No que diz respeito à política, o governo deve compreender a dimensão de um processo de paz, a dimensão do fim de uma guerra que vivemos por mais de 50 anos e deve ter a vontade política de levar este acordo, junto com a FARC, a uma conclusão bem-sucedida.

Sabendo da precariedade do sistema penitenciário, quais medidas o movimento de presos políticos têm tomado nas diferentes prisões para evitar o contágio de covid-19?

Mantemos nossa disciplina elevada. O Conselho Local María Cano mantém uma campanha permanente de higiene e podemos dizer que temos controlado a propagação do vírus. Através do partido, recebemos insumos, como sabão, álcool gel e máscaras para continuar com as medidas de prevenção, enquanto outros insumos são fornecidos pelo Inpec.

Contamos também com a solidariedade de nossos familiares. Com os recursos que eles enviam, fazemos uma coleta para comprar água sanitária, sabão e creolina para limpar diariamente o pavilhão e fazer uma limpeza geral do pátio duas vezes por semana.

Também compramos ervas como gengibre, eucalipto, moringa, limão e também rapadura, preparamos bebidas quentes para manter a imunidade alta, não é a vacina, mas ajudou muito a manter o pavilhão livre de covid.

Sabendo da falta de assistência governamental à população carcerária e que 708 detentos [até dezembro de 2020] tinham sido infectados com covid-19, com mais de 85 mortes e os casos continuam aumentando, solicitamos, através do Embaixador da República Popular da China na Colômbia, Lan Hu, um ajuda humanitária do governo chinês, levando em conta que o representante permanente da China nas Nações Unidas expressou seu apoio à implementação do Acordo de Paz. Este pedido foi feito pensando em toda a população carcerária.

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Quais são as violações mais frequentes dos direitos humanos dentro das prisões colombianas?

Há um estado de inconstitucionalidade, assim diz a Corte Suprema de Justiça, e as violações dos direitos humanos são frequentes nas prisões colombianas, sem garantir o direito à saúde, à alimentação, a condições dignas na prisão e o acesso a serviços básicos como água potável e instalações sanitárias, para mencionar as mais recorrentes.

Na área jurídica, a assistência legal nas prisões, encarregada de enviar a documentação aos juízes, não funciona. Os juízes, mesmo nos casos de tutela, não enviam a documentação completa. Antes da pandemia e durante a pandemia, a mesma situação. O à redução penal também é violado e não há política de ressocialização para aqueles que, como nós, estamos privados de liberdade.   

Quais ações humanitárias são necessárias para melhorar as condições da população carcerária?

A solução básica é a criação de uma política estatal de ressocialização para os presos, como deveria ser, para que as mulheres privadas de liberdade tenham direitos iguais e que os direitos humanos delas, assim como os da população LGBTI e demais presos, sejam respeitados.          

Não há necessidade de mais megaprisões, o que falta é a vontade de estabelecer uma política séria em defesa da população privada de liberdade, com respeito aos direitos humanos, fim da corrupção no sistema penitenciário e judiciário, educação e trabalho, para permitir uma ressocialização dos presos comuns e a redução das penas, além de formação profissional para quem está sob custódia.

Que leitura vocês fazem da violência sistemática que está ocorrendo na Colômbia, com o contínuo assassinato de líderes, ex-combatentes e o aumento dos massacres? Não parece contraditório, já que a paz foi firmada?  

A violência sistemática que vem ocorrendo em todo o país, com o assassinato de líderes sociais, ex-combatentes, camponeses e indígenas, nos faz lembrar que já vivemos esta onda de violência com o genocídio de mais de 5.000 membros da União Patriótica após os Acordos de Uribe, assinados em 1984.

O objetivo dos partidos tradicionais e da ultradireita criminosa neste país é permanecer no poder e não permitir o surgimento de outras forças políticas que representem os interesses da maioria, que foi excluída e explorada durante décadas.

Existe uma doutrina de segurança que caracteriza os líderes sociais, sindicalistas, professores, líderes comunitários e todos aqueles que reivindicam direitos comuns, entre eles, o direito de viver em paz, como inimigo interno, tornando-os alvo dos militares.

Rechaçamos toda essa violência que vem acontecendo mesmo que o processo de paz com as FARC tenha sido assinado, mas também queremos recordar que as FARC não são o problema, não são as FARC que geram essa violência; quem gera essa violência são os inimigos da paz que têm interesses econômicos em diversas regiões, como mineração, agronegócio, petróleo, gás natural e megaprojetos, para citar alguns.

Também convocamos a Organização das Nações Unidas, especialmente a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, para exigir que o governo colombiano detenha a onda de assassinatos e massacres em nosso país.

Quais lições podem ser aprendidas por parte das organizações insurgentes, para levarem em conta em futuros processos e Acordos de Paz?

Elas devem buscar sempre uma solução política e negociada para o conflito armado que nosso país está enfrentando, e devem ir à mesa de diálogo e à consulta com a sociedade civil, que possam participar plenamente, para ter testemunhas e garantir que o que está estabelecido em um documento se torne política de Estado e não política do governo, de forma que o que está estabelecido em um documento não possa ter ser modificado nem pelo governo e nem pelo Congresso, para que se cumpra o que foi acordado.

Por outro lado, é preciso garantir que os recursos para o financiamento do processo, fornecidos pelos países garantes e pela comunidade internacional, sejam gerenciados diretamente pelas organizações guerrilheiras com a supervisão de organismos internacionais e da sociedade civil organizada comprometida com o processo. E, para enfatizar e deixar claro: nenhuma arma deve ser entregue até que o último preso político tenha sido libertado.

Como vocês veem as mobilizações na Colômbia e na América Latina? Sentem esperança pelas mudanças?

Vemos como positivas as mobilizações sociais na América Latina. No Chile: o povo chileno, que tanto sofreu com as violações dos direitos humanos promovidas pelos governos estadunidenses, é um exemplo de luta a ser seguido; eles se esforçaram por uma mudança em seu país [com a Constituinte].

A conquista alcançada também pelo povo boliviano, que apesar de um golpe de Estado orquestrado pelos Estados Unidos e liderado pela OEA, resistiu, recuperando a sua democracia. O povo do Equador que rejeitou as políticas neoliberais do governo traiçoeiro de Moreno. Na Argentina, o triunfo da Frente de Todos oxigena as organizações de trabalhadores e de mulheres que rejeitaram as políticas nocivas de Maurício Macri.

O povo bolivariano, da Venezuela, que resiste e continuará resistindo com suas mobilizações em favor da soberania, em favor dos direitos humanos, contra as políticas unilaterais do governo dos EUA  – cujo único interesse é saquear os recursos naturais, sabotar eleições, armar guerras jurídicas e financiar uma oposição que não tem nem pé nem cabeça.

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Qual a mensagem dos presos políticos do partido FARC ao presidente Iván Duque? E às organizações sociais e populares?

A mensagem ao presidente Iván Duque é que possa tomar consciência da importância de um processo de paz, da importância de uma solução política e de um diálogo para um conflito armado com mais de 50 anos, e ter a vontade política para entrar na história da Colômbia como o presidente que realizou a implementação de um processo de paz.

Para as organizações sociais e populares, pedimos que se unam, que deixem de lado as diferenças, se somos indígenas, se somos camponeses, se somos líderes sociais, se somos sindicalistas, se somos professores, se somos donas de casa, somos todos colombianos, e o único objetivo é conseguir a democratização do nosso país, construir as mudanças para que haja uma paz estável e duradoura. Unidade acima de tudo, para além das diferenças.

Edição: Luiza Mançano